Crítica Militante
Quando o hibridismo de linguagens já se naturaliza na cena contemporânea, chama atenção na peça Hotel Jasmim, de Claudia Barral, o forte enquadramento nas convenções do drama realista. Em especial por ter sido um dos textos selecionados por meio de edital público e premiado com publicação em livro e montagem apresentada na II Mostra Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, projeto de fomento e difusão teatral do Centro Cultural São Paulo.
Décadas depois da explosão não apenas de muitos dos cânones da arte, mas também da própria ideia de que há modelos para a criação, esses teimam em ressurgir. No que diz respeito à dramaturgia, o tempo é de rejeição aos procedimentos caros à forma dramática (trama ficcional construída como recorte da realidade e baseada em conflitos interpessoais, encadeamento de ações por relações de causa e efeito, separação entre palco e plateia, esta última invisível aos atores que assumem completamente seus personagens) enquanto se intensifica a adesão aos recursos advindos da chamada performance art, como o trabalho sobre o corpo do ator e sua presença em tempo real, e não ficcional, assumidos como matéria cênica expressiva.
Evidentemente a recusa a determinadas formas, assim como valorização de outras, não são aleatórias, mas se articulam às demandas e forças em embate de cada época e sociedade. Ainda que sejam distintos os graus de clareza sobre os princípios que regem cada uma delas por parte de quem as adota.
A estreita imbricação entre a troca que se efetiva na relação pessoal da dupla e o campo social produz reflexão crítica
Em síntese de poucos e largos traços, é possível dizer que o drama realista surge no momento histórico em que ocorre um duplo descolamento: tanto da crença na divindade capaz de traçar o destino humano, quando do jugo do soberano com poder de controle absoluto sobre a vida terrena. Nasce, portanto, alicerçado na ideia de um sujeito autônomo. Entre outras teorias, a Psicanálise e o Marxismo demonstraram que a subjetividade é atravessada por forças que escapam ao controle consciente, colocando em crise de uma só vez a autonomia do indivíduo e a forma dramática correlata.
Todo sopro inovador, responsável por tornar visível a corrosão do tempo sobre o pensamento e linguagem artística de sua época, passará a ter sua própria pátina. Até que seja também colocado em crise. Porém não se trata de movimento retilíneo e evolutivo, como acreditou a modernidade. As renovações se dão como pulsações e fluxos e, não raro, atualizam formas antigas.
Hotel Jasmim não ignora o campo social e passa ao largo do drama amesquinhado comum a certos folhetins televisivos nos quais os conflitos se dão estritamente entre indivíduos. Nesses, a trama gira em torno de sentimentos primários como ciúme, inveja, raiva, paixão, e até mesmo competição e sofrimento têm origem unicamente na personagem “má”, cuja punição ou morte restabelece a felicidade de todos. Ao contrário disso, um dos pontos de interesse do texto de Claudia Barral está no modo como a cidade é a mediadora das relações entre os personagens e está na origem da situação urdida.
Jorge Washington (Daniel Farias) e Fernando (Eduardo Pelizzari) dividem um quarto no hotel barato que dá nome ao título, situado no centro da metrópole paulistana. O primeiro acaba de chegar do interior – “na minha cidade não tem nenhum prédio, sabia?”, diz ele na primeira cena ao colega de quarto após observar a paisagem urbana – atraído pelo aceno de uma vaga de garçom num restaurante. O segundo trabalha como michê, palavra cujo significado de prostituição profissional, o interiorano demora a decifrar.
A cidade, entendida como território de interações múltiplas, impulsiona as ações, os diálogos e os conflitos entre os personagens. Aspecto ressaltado pela direção de Denise Weinberg e Alexandre Tenório que desestabiliza o realismo com atos sutis, como a opção pela troca de roupa aos olhos do público nos intervalos entre cenas e, em especial, por meio da cenografia escolhida, assinada por André Cortez, uma espécie de painel/biombo feito de pedaços de madeira cujo formato remete à parte posterior de um outdoor, o lado avesso daquele no qual são exibidos os cartazes publicitários.
Ao longo da encenação, a gradativa queda dessas peças de madeira vai abrindo janelas para a metrópole nesse painel/parede na mesma medida em que o ambiente externo interfere no comportamento dos personagens. Ao contrariar a indicação da autora, que sugere a reprodução de um quarto de hotel com duas camas cobertas com lençóis sujos, a direção intensifica na escrita cênica a presença do campo de tensão urbano, aspecto central da dramaturgia.
Barral desenha os perfis dos personagens com a eficácia exigida pela forma que escolheu, de modo que o atrito pessoal seja inevitável entre eles quando colocados num mesmo espaço. Assim, o interiorano é alguém que acredita na acomodação às regras do sistema socioeconômico vigente; na carteira assinada como provedora de segurança e dignidade; na família tradicional como fonte de afeto e na religião como modo de sanar a angústia existencial e o desejo de transcendência. Fernando, diferentemente, forjado na face mais árida do espaço urbano, aquela exibida aos que estão na base da pirâmide social, vê todo vínculo como sinônimo de exploração. Se o homem é o lobo do homem, a única defesa é manter do outro o máximo de distância possível.
É inescapável a remissão à dramaturgia de Plínio Marcos, em especial à peça Dois perdidos numa noite suja, paralelismo reforçado numa das primeiras cenas, quando um incidente envolvendo a posse de um bem torna a disputa corporal iminente. Porém a dramaturgia logo se desvia da similitude com o autor santista, cujos personagens têm traços trágicos, no sentido de que não conseguem escapar ao destino implacável que a condição social de miséria extrema lhes impõe. Sem amparo de instituições ou da família, só lhes resta brigar contra seus iguais pela sobrevivência.
Barral separa os corpos em luta de Jorge e Fernando e convida o espectador a olhar através da janela. Desse modo, desvia o foco para as questões que estão além do controle deles e, no entanto, moldam a subjetividade de ambos. Sem otimismos infundados – não há falseamento na dureza das trajetórias – ela imprime neles um grau de permeabilidade reduzido, mas suficiente para que sejam afetados pelo convívio forçado com a alteridade. E o faz sem quebrar exigências da linguagem de sua escolha, tais como veracidade nos diálogos e coerência nos comportamentos.
A estreita imbricação entre a troca que se efetiva na relação pessoal da dupla e o campo social produz reflexão crítica. Uma delas diz respeito ao aprendizado da tolerância intrínseco ao compartilhamento do espaço público nas grandes cidades. A demarcação de cidadelas, condomínios murados e centros de compras, numa espécie de regressão feudal reduz o convívio entre os diferentes, contribuindo para tornar mais inóspito e violento o território urbano.
A trama de Hotel Jasmim provoca uma indagação sobre a relevância de uma geografia que mescle comércio e residências construídas para abrigar classes sociais distintas, ideia defendida por uma vertente da arquitetura e do urbanismo. Também o tratamento dado à religião, tema que se alterna e se altera ao longo da peça, faz pensar sobre a expansão das religiões neopentecostais e sobre os vazios que elas prometem preencher.
No drama, a percepção dos problemas sociais tem de passar pelo corpo dos personagens. O jogo proposto à plateia é o da identificação. Para alcançar tal eficácia, os intérpretes precisam ser capazes de produzir tensão entre gesto e palavra. Não basta se apropriar do texto, é preciso levar o espectador a desconfiar das vozes que muitas vezes falam para esconder e não para revelar, aspecto que não escapou à dupla de atores. Em especial nas cenas em que ambos narram incidentes trágicos, Pelizzari e Farias expressam as emoções dos personagens com um equilíbrio bastante preciso entre intensidade e contenção, evitando assim serem capturados pela armadilha da vaidade da dor.
Hotel Jasmim é fruto de um projeto de fomento teatral que igualmente nada contra a corrente. Neste caso, trata-se de certa suspeição para com a dramaturgia criada fora do processo de ensaio e, mais ainda, tomada como ponto de partida da cena. Contra isso é possível argumentar que o chamado “autor de gabinete” não é necessariamente um ser em estado de isolamento e ainda que a encenação posterior à escrita não necessariamente se configura como submissão textocêntrica.
Em países nos quais os teatros públicos não são apenas edifícios, mas abrigam companhias estáveis, o investimento em autoria é permanente. Enquanto a dramaturgia já sedimentada ocupa a sala principal, leituras cênicas e montagens de novos textos tomam as salas menores. Dali, invariavelmente, surge o sopro inovador. Conscientemente ou não, talvez tenha sido a fonte inspiradora da expressão Pequenos Formatos Cênicos no título desse projeto de política pública, ambicioso no modo como investe em continuidade e permanência em contraponto com a efemeridade do evento.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Serviço:
Hotel Jasmim
Onde: Teatro Itália (Avenida Ipiranga, 344, República, tel. 11 3120-6945)
Quando: Sextas, às 21h30; sábados, às 21h; e domingos, às 18h. Até 28/8
Quanto: R$ 50 e R$ 25
Duração: 60 minutos
Bilheteria: Aberta de terça a domingo, a partir das 15h
Não recomendado a menores de 14 anos
Ficha técnica:
Autoria: Claudia Barral
Direção: Denise Weinberg e Alexandre Tenório
Com: Eduardo Pelizzari e Daniel Farias
Cenário: André Cortez
Iluminação: Wagner Pinto
Música e sonoplastia: Miguel Briamonte
Figurinos e adereços: Adriana Hitomi
Designer Gráfico: Alessandro Romio e Adriana Hitomi
Cantora/Voz: Andrezza Massei
Gravação: AudioMan
Mixagem: Luciano Lobato
Fotografia: Erik Almeida e Priscila Bellotti
Assistente de Cenografia: Carmem Guerra
Assessoria de Imprensa: Flavia Fusco Comunicação
Operador de Luz: Marcus Filomenus
Operadora de Som: Alexandra Rocha
Cenotécnicos: André Ferreira e Rafael Boese
Operador de Luz: Marcus Filomenus
Operadora de Som: Alexandra Rocha
Contrarregra: Henrique Silva
Equipe de Produção: Juliana Paltrinieri e Vagner Luciano
Direção de Produção: Valdir Archanjo
Produtores: Bira Saide e Valdir Archanjo
Realização: U.S. Saide Produções Culturais e Val Archanjo Produções Culturais
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.