Crítica Militante
Todo homem, todo lobisomem sabe a imensidão da fome
que tem de viver
Todo homem sabe que essa fome é mesmo grande,
até maior que o medo de morrer.
(Caetano Veloso, Pecado original)
O tríptico, nas artes visuais, é conjunto de três elementos plásticos (em pintura, fotografia, gravura ou outros) que juntos sugerem uma única imagem ou a continuidade das partes em torno de um mesmo tema. Já estava entre os antigos e se popularizou na Idade Média, sendo suporte para obras enraizadas no imaginário cristão.
Cachorro enterrado vivo, peça da dramaturga carioca Daniela Pereira de Carvalho encenada por Marcelo do Vale, com atuação de Leonardo Fernandes, assemelha-se, em uma livre comparação, a um tríptico. Três relatos tomados cada qual como um quadro em si, mas interdependentes. A relação, no entanto, passa longe da mitologia cristã quanto à possibilidade de uma metafísica transcendente. Ou, de outro modo, as narrativas podem ser tomadas como um terço encurtado, composto por orações inúteis, ditas aos céus de uma época sem Deus. São preces desviadas, vãs, em que a autora desenha as histórias de um sujeito abandonado pela mulher, do seu cão, largado à sorte por ambos, e de um camarada que lá pelas tantas aparece para deliberar sobre uma tarefa de vida ou morte.
Nasce daí, da psique canina, um campo de julgamentos ‘morais’ e uma dolorida percepção da vida em tudo inusitada. É um cão urgente, complexo e de ânsia existencial exaltada
Se esta for uma proposição boa, a dramaturgia talvez esteja mais para um tríptico moderno, como aqueles pintados por Francis Bacon (1909-1992). Retratos deformados em que a ordem de apresentação é quase acidental porque tanto faz qual das três faces vem primeiro. Fundamentalmente não há centro, direita ou esquerda. As partes apresentam modificações pontuais, mas em essência é o mesmo retrato, com variações ocasionais. No plano físico (assim como na peça e no espetáculo) não se apresentam em uma ordem necessária no sentido da continuidade narrativa, ainda que as peças alcancem sentido e melhor força expressiva no conjunto. A ordem é arbitrária porque o lamento existencial que serve de matéria para as três peças vaza livre de um a outro plano, que têm o mesmo fundo (como aqui, em um cenário único) e quem sabe (é uma hipótese) a mesma figura.
É leitura que ganha apoio na indicação da autora, de que os três personagens sejam interpretados pelo mesmo ator. Esforço, quem sabe, para fazer coincidir de alguma maneira cada um dos personagens (cachorro, rapaz, homem) em secretas correspondências, apesar das aparentes oposições – uma figura sendo a mimese, em termos, do seu conviva ou oponente. O que indicaria ao fim e ao cabo que não há “outro”. Que o desdobramento em três é artifício para mimetizar o mesmo homem (nós) que se multiplica na dor – na condição dele mesmo e ainda na de cão e de coveiro da própria pequena (grande) desgraça.
As três narrativas nos chegam em primeira pessoa e nos mostram, mesmo nos contrastes de tons e argumentos entre um e outro personagem, características comuns: a pele lacerada e o coração aos pulos ou anestesiado ou sufocado (as variações acidentais); e os músculos à mostra e o vermelho explodindo nas gengivas. Desenham formas de um desejo exausto, desesperado, o lutador no ante momento do nocaute.
Não à toa todos tratam de falar sobre a memória, cada qual do seu ponto de vista. A memória como tábua salvadora em um mar aberto. Capaz de mobilizar novamente os acontecimentos, de tentar refazê-los em espaços novos. A memória mesmo dura ainda guarda, à deriva, a promessa de resgatar o sujeito daquele mundo de quartinhos onde as pulgas te comem dia após dia, as salas seguem entulhadas de lixo e excremento, e a vida se conta entre covas rasas e outros buracos, entre eles o de uma grande falta – a amizade nem mesmo de um cão. A memória pode corrigir, criticar, redimir. A merda é que ela também escapa. A vida é osso.
Das três faces a mais bem contornada é a do cachorro, justo esse em que “a memória entra pelo nariz – junto com o oxigênio”. É uma inversão potente. A ideia de instinto como coisa objetiva leva a autora a desenvolver a fala do bicho a partir de uma filosofia chã, que ganha expressões sempre concretas. Nasce daí, da psique canina, um campo de julgamentos ‘morais’ e uma dolorida percepção da vida em tudo inusitada. É um cão urgente, complexo e de ânsia existencial exaltada. São “250 milhões de células olfativas” trabalhando, obcecadas para ver e rever a única coisa que ainda faz sentido e matiza com ternura desesperada aquele beco miserável e sem saída: o amor incondicional à mulher que por algum motivo incompreensível o largou ali, nas mãos do algoz:
Um pouco de desordem me caía muito bem ao ânimo… Mas claro que diante do caos que ele instaurou nada disso faz mais sentido. O quarto e, até agora, último ataque, esse que me rendeu o acorrentamento foi por puro desalento. Eu olho em volta agora e não sei mais o que posso fazer da minha vida. Comer o pouco que ele me serve, beber o pouco que ele me dá. Cagar o que consigo, mijar o que posso. Latir, uivar, grunhir, vociferar, arranhar as portas, arrancar com as unhas a tinta das paredes. Tudo isso, praticamente nada.
Talvez por contraste deliberado (o que certamente marcaria uma posição crítica) os dois outros personagens surgem em construção mais rarefeita. São razoavelmente mais genéricos, embora as questões, recorrentes, estejam lá. O rapaz contratado para enterrar o cão vivo é um cara que queria ter um Porsche. Adotara um vira-lata mirrado, mas de pelo brilhante (batizado Porsche) que do nada amanhecera morto. Perda total. Ele se apresenta como o sujeito que vai fazer a mediação distanciada entre os dois personagens que abrem e fecham a narrativa, mas logo exibe a ferida e o tamanho do próprio abandono. Pergunta ao cachorro e depois, em espelho, a si: “Você mal parece um ser da sua espécie. Que tipo de monstro é você, hein? E eu? Será que eu sou o tipo de monstro capaz de te enterrar vivo?”.
O terceiro personagem, Paulo (tanto quanto o cão) fica refém não só da mulher que o abandonou como também de si mesmo (e do cão si mesmo?). A diferença fundamental em relação ao cachorro representado é que se trata de um aprisionamento deliberado porque a racionalidade permite entre outras coisas, ao menos idealmente, um tipo específico de poder que o animal não tem: o da escolha. É, portanto, na liberdade difícil do arbítrio que o drama acha espaço. Mas, no limite, também é um arbítrio de cão, e pior, porque menos capaz de potencializar a liberdade.
Ossatura firme
A natureza do monólogo já é quase sempre um desafio para o ator. Quando a narrativa se quebra em três, e com esta novidade que é o trânsito entre a composição do animal e dos homens, a tarefa artística se dimensiona ainda mais interessante. O jovem ator mineiro Leonardo Fernandes soube aproveitá-la. As três criações, que são na verdade a mesma, têm ossatura firme para suportar os personagens não só nos termos das interpretações em si como também nos modos particulares como o ator as concebe: criando na gestualidade, no trabalho vocal e nas intensificações medidas dos estados não só os campos reconhecíveis de diferença como também de semelhança entre os caracteres. Esta é a operação fundamental intuída para alcançar uma das possibilidades de leitura cênica, em ato, do texto: a percepção de que não se trata apenas de operações de contraste entre a razão humana e um imaginado ethos canino, mas ao contrário, do cruzamento intencional, provocado, entre instinto e razão. É coisa que nos coloca à frente a parte mais valiosa do objeto de pensamento que o espetáculo passa a ser. E está bem apontada no trabalho do ator. Exceção a essa dinâmica é um ou outro momento do terceiro quadro, em que o personagem de fato tem contorno menos demarcado e em que a direção de ator acabou encontrando solução mais próxima do tom melodramático, que tem lá seu efeito, mas não alcança a mesma sintonia fina dos dois quadros anteriores.
Épica íntima à brasileira
Uma das frentes que a peça nos ajuda a experimentar se o ponto de vista for o dos estudos teatrais é a de certa épica íntima, recorrência na cena, inclusive a brasileira e, entretanto, das mais difíceis de vingar como boa poesia. Nos diz o teórico francês Jean-Pierre Sarrazac que se trata de formas com expressão própria já na dramaturgia do final do século XIX. E presença constante por todo o século seguinte e agora. Uma épica paradoxal porque, como aqui neste espetáculo, é tecida pelo avesso do que se espera de uma narrativa épica, tanto no sentido vulgar de um relato sobre acontecimentos de grandes proporções quanto no sentido específico do teatro brechtiano (uma cena que foge das formas do drama para tentar alcançar melhor a dialética dos jogos sociais).
O crítico Anatol Rosenfeld já nos salvava, há décadas, dos perigos da departamentalização dos gêneros nos estritos cercados do formalismo ao lembrar que eles (a épica, a lírica, o drama) não existem como formas puras. Estão sempre mais ou menos misturados, miscigenados uns aos outros. E, mais importante: que tanto a existência dessas arquiformas como a sua mistura se dão como coisa necessária, no sentido que o gênero (assim como a técnica) se inventa no pedido efetivo da expressão humana, no gosto por circunstâncias, temas e disposições existenciais que irão forjá-los assim ou assado. Mais adiante é o próprio Sarrazac quem vai dizer que o interesse maior da cena contemporânea não está, como muitos pensam, na extinção do drama, mas na mistura liberal que o teatro do nosso tempo inventa através dos seus patchworks formais em que os elementos dramáticos estão assimilados e nos quais é possível ver os procedimentos expressivos em contraste assumido, ou alinhavados em justaposição e em oposições estilísticas francas, sem pudores nem vergonha.
Cachorro enterrado vivo pode ser visto também como um exemplar dessa linhagem, no campo dessas dramaturgias impuras. Está em diálogo com outras cenas da mais jovem e fresca produção nacional, em que as noções de gênero aparecem borradas e, portanto tecendo aventuras necessárias, razoavelmente livres daquelas formas modelares. O que aproxima a peça desse épico pelo avesso e o contrapõe àquelas duas versões usuais é o fato de estabelecer como primeiro plano do ponto de vista narrativo a voz de um sujeito não em franco confronto dialógico com outro sujeito, nem o sujeito enredado nas malhas dos enfrentamentos sociais. Mas o sujeito decididamente em embate consigo mesmo, ainda que o ‘consigo’ possa projetar, como de fato quase sempre projeta, algum tipo de disposição para o dissenso com o outro (é o caso). A dificuldade está em encontrar o ponto de teatralidade nas expressões muitas vezes por demais ensimesmadas e aborrecidas que resultam desse tipo de experiência. Porque a voz lírica que quase sempre matiza esses relatos é caprichosa quando se lhe aponta o palco. Um dos méritos da montagem é dar inteireza a ela.
Por fim, vale lembrar que o exercício de criar uma forma imaginada de pensamento não comprovável é, como queria Derrida, tarefa praticamente abandonada pela filosofia, que a arte moderna abraçou: “pois o pensamento do animal, se pensamento houver, cabe à poesia”[1]. A aventura em que esse grupo de artistas (dramaturga, ator, diretor e equipe) se lançou tem, portanto, implicações não só estritamente estéticas no sentido dos procedimentos de linguagem procurados e encontrados, como também necessariamente éticas. Porque um dos temas de fundo desse tríptico cênico é sem dúvida o da alteridade, no sentido de figurar, dar acabamento e reconhecimento ao outro. Mas não qualquer outro e sim um outro em princípio impossível, tornando-o não só verossímil como altamente empático na inteireza do seu drama. Um outro que paradoxalmente pode ser inclusive um desconhecido “eu mesmo”. Esse talvez possa ser um atalho para compreender esses seres postos à margem da vida para que reconheçamos ali, na beira do precipício, a dor e a delícia da nossa condição. Como diriam os românticos, a peça talvez seja sobre a nossa infinita capacidade de desejar, de inventar futuros, em contraste com a única condição indubitável, que a contesta: a da morte. Daí, para ficar com a fala de uma mineira importante, o belo está em intuir que não é uma coisa ou outra. São as duas coisas ao mesmo tempo, no mesmo movimento:
Aqui é dor, aqui é amor, aqui é amor e dor.
Onde um homem projeta seu perfil e pergunta, atônito:
em que direção se vai?”.[2]
[1] DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (a seguir). Trad. Fábio Landa. São Paulo: UNESP, 2002
[2] PRADO, Adélia. O coração disparado. São Paulo: Record, 2002.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Serviço:
Cachorro enterrado vivo
Onde: SP Escola de Teatro (Praça Roosevelt, 210, tel. 11 3775-8600)
Quando: Sábado, domingo e segunda, às 21h. Até 26/9
Quanto: R$ 30
Duração: 50 min.
Classificação: 12 anos
Ficha técnica:
Autoria: Daniela Pereira de Carvalho
Direção: Marcelo do Vale
Com: Leonardo Fernandes
Preparação corporal: Eliatrice Gischewski
Cenário e figurino: Cícero Miranda
Trilha sonora original: Márcio Monteiro
Criação de luz: Wladimir Medeiros
Técnico de luz: Daniel Hazan
Projeto gráfico: Lampejo
Fotografia: Lia Soares e Suzana Latini
Cenotécnico: Ronaldo de Deu
Produção executiva: Eliatrice Gischewski
Produção São Paulo: Marcelo Carrusca
Produção: Leonardo Fernandes
Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.