Crítica Militante
Uma passagem do livro O inconsciente político (1981), do pensador norte-americano Fredric Jameson, parece concentrar o mote de Viúvas – performance sobre a ausência, encenação coletiva da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz no contexto do Mirada, em Santos: “História é aquilo que fere, o que recusa o desejo, o que coloca limites inexoráveis à prática individual e coletiva. Mas a história pode ser apreendida unicamente através de seus efeitos. E estamos seguros de que suas necessidades alienantes não nos esquecerão, ainda que prefiramos ignorá-las”.
O espetáculo mostra as cicatrizes recentes da nossa tão sangrenta América Latina utilizando, para tanto, uma única história coletiva como princípio constitutivo. Não se tratava de expor, de forma organizada, as relações de causa e efeito de uma materialidade histórica inapreensível em si. Pelo contrário, o trabalho que estreou em Porto Alegre em 2011 e pela primeira vez foi montado em outra cidade sublinhou os efeitos e traumas sociais como fio condutor de um longo percurso marcado pela luta de classes.
O que vemos em ‘Viúvas – performance sobre a ausência’ não é a ação de uma única personagem. Pelo contrário, o espírito coletivo da luta feminina, representado alegoricamente por Sofia, volta-se à teia que a une a todos aqueles que, de baixo, pressionam e tentam se sobrepor às estruturas sociais coercitivas
No entanto, nós, espectadores, ainda não sabíamos o que aconteceria logo ao entrarmos na barca em direção à Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, já na vizinha Guarujá. A previsão de fortes ventanias na cidade santista, bem como a insegurança de que o mar, inescrupuloso, alcançasse a avenida litorânea foram o bastante para que seguíssemos ignorantes e apreensivos rumo a uma construção militar do século XVI. Padronizados em nossas roupas de plástico – capas de chuva fornecidas pela organização para minimizar os possíveis danos naturais –, permanecemos alertas frente ao aviso do perigo iminente: “Assim que chegarem à fortaleza, tomem cuidado com as pedras escorregadias e os declives. E não encostem nem sentem nas muralhas da edificação”.
Nesse momento, irrompe o lamento daquele que, ao ser expulso de sua terra natal, deseja a perda total de referentes, o desenraizamento como panaceia para a dor quase fatal de ver-se excluído do convívio social e familiar. Diz o personagem: “Esperava que as crianças fossem para a cama para que suas vozes não me lembrassem a das minhas crianças do outro lado da parede. Para não ter que me lembrar que as minhas crianças não estavam comigo”. O sentimento de luto do exilado é, a partir de então, redimensionado para a esfera coletiva como uma estrutura de sentimento compartilhada entre aqueles que sofreram a ruptura narcísica e social provocada pelas ditaduras. Tal luto não se volta somente aos inúmeros presos, torturados e mortos, mas também ao próprio fim da possibilidade de uma civilização orgânica e de um determinado modus vivendi. Afinal, continua o personagem que abre o espetáculo, “a pátria importa tanto? Eu tenho que nomeá-la? Entre os tristes países que vemos na televisão e tantos que não vemos nunca, todos os lugares onde uns poucos homens decidem a vida e a morte do restante da população – temos que nomear este país?”
Somos, então, encaminhados em fila até o forte por homens em ternos pretos e óculos escuros espelhados. Vigilantes, eles nos empurram e encaram, fazendo nossos próprios rostos refletirem em seus óculos-máscaras de ditadores. Mais uma vez, o desconcerto: seremos testemunhas, espiadores ou cúmplices numa ilha em que o esquecimento é mola primordial para a construção do futuro?
Enquanto um militar brada, do ponto mais alto da fortaleza, a urgência na construção de fábricas de fertilizantes para a economia de exportação, Sofia, a protagonista de uma história ainda por ser contada, está em estado de vigília em cima de uma pedra, a olhar o movimento pendular das águas. A despeito do que é exigido pelo Estado e pela engrenagem capitalista, Sofia suspende o tempo, consciente de que é preciso destruir o contínuo da história para acender a faísca revolucionária.
Em roupas de alusões camponesas ou indígenas, a personagem nos diz esperar pelo pai, marido e filhos cujos corpos inertes foram tragados pelo rio. Amparando em suas costas cadeiras já deterioradas pelo tempo, Sofia e as mulheres da ilha dançam e cantam uma canção de tom elegíaco, reconhecendo a materialidade da ausência. Tal como o porta-retrato a emoldurar foto alguma na capa da novela homônima do argentino naturalizado chileno Ariel Dorfman, as cadeiras parecem reafirmar o lugar dos homens desaparecidos e esquecidos do povoado, agora habitado majoritariamente por mulheres.
Em meio às rosas brancas atiradas aos cidadãos pelo ditador que, por sua vez, assegurava o caráter pacífico daquele período do pós-guerra, Sofia prosseguia seu ritual, cercada pelas pedras, a perceber que aos vivos só restava imitar os mortos. Num trecho bastante lírico do espetáculo, a protagonista afirma ter costurado as bocas e os olhos dos corpos que a correnteza, desobediente, devolveu para as mulheres da região. Tal ato é representativo do impasse social gerado pela atmosfera de coerção que ganha força na América Latina dos anos 70. Nas palavras de Ariel Dorfman no autobiográfico Uma vida em trânsito (1998), trata-se de um tempo em que “a palavra revolução é relegada a anúncios sobre tênis para jogging, o lucro tornou-se a única base para se julgar o valor, o cinismo é a atitude predominante e a amnésia é justificada como a solução para todo o sofrimento do passado”.
No entanto, a linha e a agulha não podem calar ou cegar corpos rígidos, anêmicos e sem vida. “Não havia sangue na linha!”, murmura Sofia, já desencantada, ao passo que as mulheres da ilha suplicam o esquecimento e, até mesmo, a negação da morte de seus familiares. Nesse momento, justamente por dar-se conta da potência revolucionária do vazio, que não se podia fazer calar, Sofia chama por todos aqueles cujos nomes eram impronunciáveis – a maior parte deles brasileira, em referência direta às mais de 400 vítimas da ditadura no Brasil (contabilizadas até agora pela Comissão Nacional da Verdade). Milhares de grãos de milho irrompem, com violência, do teto da fortificação, derrubando a personagem e demonstrando simbolicamente o verdadeiro peso da cadeira a ser carregada.
Seriam as mulheres as protagonistas em um tempo de exceção e, com isso, as únicas capazes de romper o silêncio e reviver o sonho, ainda que utópico, de uma civilização orgânica, baseada no trabalho coletivo agrícola. A partir daí, em vez de sermos conduzidos a participar da história pelos ditadores, passamos a seguir os passos de uma criança a chorar, pois ainda não havia aprendido a amarrar as pontas de um passado mítico com um presente em que as águas do rio já estão envenenadas com as cerca de 34.000 mortes de latino-americanos. Contudo, o corte ocasionado pelo choro já é suficiente. Uma das personagens femininas, segurando a criança contra seu peito, diz: “Você ainda não aprendeu a falar, só isso. Com o tempo, saberá contar a história. E haverá quem queira ouvi-la”.
Assim como as inúmeras mães e avós da Praça de Maio, as personagens ressaltam a importância primordial das mulheres não só na resistência ao estado de exceção permanente, mas na própria condução revolucionária, a qual não deixa de ser inerente a determinadas produções simbólicas. Ao retirar o manto azul e mover a orientação natural do rio, Sofia expõe os cadáveres dos homens nus. Com tal gesto, além de desvendar as raízes sociais daquilo que é comumente naturalizado, Sofia também expõe as fraturas entre oprimidos e opressores, que remontam ao processo mesmo de formação da periferia do capitalismo.
Contra uma visão evolucionista e “etapista” da história, Viúvas: performance sobre a ausência sublinha os sucessivos embates travados pelas classes subalternas e, portanto, reconhece a história através do ponto de vista dos vencidos. E, no entanto, isso só se torna possível porque há uma espécie de inconsciente político a organizar a obra como uma produção de combate ao estado de coisas, a despeito do irracionalismo que insiste em avançar no meio artístico contemporâneo. Segundo o atuador e cofundador Paulo Flores, a própria forma de trabalho coletivizado do grupo em todas suas produções responde a uma série de inquietações relacionadas à função social da arte: “Essa é a origem do Ói Nóis Aqui Traveiz, uma vontade de fazer um teatro que fizesse uma reflexão crítica da sociedade em que a gente vivia”.
Já dizia Fredric Jameson que apenas a dialética poderia fornecer um caminho para a descentralização concreta do sujeito e para a transcendência do ético em direção ao político e ao coletivo. O que vemos em Viúvas não é a ação de uma única personagem. Pelo contrário, o espírito coletivo da luta feminina, representado alegoricamente por Sofia, volta-se à teia que a une a todos aqueles que, de baixo, pressionam e tentam se sobrepor às estruturas sociais coercitivas. É a partir dessa aspiração totalizante que as mulheres do espetáculo, tal como amautas – expressão quéchua que designa pedagogos do Império Inca e, por sinal, epíteto do pensador peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) –, sinalizam sua permanência na ilha ao final, aliando um passado sangrento à perspectiva de que o sol possa, enfim, se levantar no céu da história e produzir o que o filósofo alemão Walter Benjamin chamou de “verdadeiro estado de exceção”.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
.:. Íntegra da apresentação de 2012 na Ilha das Pedras Brancas, ou Ilha do Presídio, no Rio Guaíba, já na cidade de Guaíba, há cerca de 2,5 quilômetros de Porto Alegre, em registro audiovisual de Pedro Isaías Lucas:
https://www.youtube.com/watch?v=qG12VF1-qsQ
Ficha técnica das apresentações no Mirada 2016:
Viúvas – performance sobre a ausência
Criação coletiva a partir do texto de Ariel Dorfman
Dramaturgia, iluminação, figurinos e direção: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
Com: Paulo Flores, Tânia Farias, Clélio Cardoso, Marta Haas, Paulo Carvalho, Eugênio Barboza, Jana Farias, Lucas Gueller, Roberto Corbo, Letícia Virtuoso, Júlio Kaczam, Mayura Matos, Keter Velho, Luana Rocha, Alex dos Santos, Pascal Berten, Pedro Isaías Lucas, Dalvana Vanso, Aline Ferraz, Alessandro Muller, Eduardo Arruda, Daniel Steil e Márcio Leandro
Operação de luz e som: Daniel Steil e Clélio Cardozo
Música: Johann Alex de Souza e Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestra em Artes Cênicas e bacharela em Letras com habilitação em português e inglês pela USP. Desenvolve pesquisa sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no período de exílio latino-americano, atuando principalmente nas áreas: estudos culturais, teoria crítica, história do teatro brasileiro e teatro político.