Crítica Militante
Terminou nesse domingo a 17ª edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Ainda que com orçamento reduzido, foram apresentados 29 espetáculos, nacionais e estrangeiros, além de atividades paralelas de formação de público e de intercâmbio cultural e artístico.
De maneira geral, a programação reflete uma contemporaneidade fluida, com ênfase em processos e experiências. Algumas das obras que mais mobilizaram o público não se inserem nos limites das linguagens artísticas estabelecidas. Em alguns casos, não se trata de hibridismo ou interdisciplinaridade, mas sim de projetos que resultaram em fazeres poéticos inéditos pois, apesar de utilizarem suportes conhecidos, apresentam novas formas de utilização e interação dos mesmos. Esta é uma chave de entrada, por exemplo, para A floresta que anda, da brasileira Christiane Jatahy, e La Wagner, do argentino Pablo Rotemberg.
A porosidade das linguagens, a recorrência de temas relacionados a gênero e sexualidade, a autoficção, a paródia, a ironia e o cinismo justificam o rótulo ‘cena contemporânea’ do festival
Em A floresta que anda, telas de cinema são manipuladas como marionetes. É possível pensá-la como uma crítica ao amortecimento do público, decorrente das estratégias de alienação da indústria cultural. Os espectadores assistem a projeções audiovisuais sobre pessoas que foram vítimas da violência, enquanto compartilham um clima de vernissage. O título da obra foi retirado da peça Macbeth, de William Shakespeare, em alusão aos sangrentos jogos de poder e às traições políticas. Assim como na tragédia elisabetana, uma vida pouco vale nas favelas, no terror imposto pela Polícia Militar, em chacinas e outros crimes. Enquanto imagens e depoimentos falam de assassinatos, os espectadores se distraem com comidas e bebidas servidas por garçons uniformizados. A atmosfera descontraída vai se tornando cada vez mais tensa, sobretudo com a performance da atriz Julia Bernat.
Na mesma linha, La Wagner é uma obra avessa a classificações. O uso do artigo feminino diante do nome do compositor alemão Richard Wagner revela claramente seu objetivo: desfazer estereótipos e revelar preconceitos relacionados à feminilidade. Trata-se de um tema já tradicional nas artes contemporâneas, que têm entre seus traços definidores o tensionamento das identidades e a crítica aos discursos de ódio contra segmentos oprimidos. A forma criada por Rotemberg, porém, não estabelece vínculos com qualquer linguagem tradicional. Quatro mulheres nuas dançam, fazem exercícios físicos, cantam, declamam pequenos textos, muitas vezes só algumas palavras. Entre uma sequência e outra, anunciam trechos de óperas de Wagner. Elas chamam a atenção pelo vigor corporal e pela falta de pudor. Exibem e manipulam suas genitálias em movimentos ritmados, acompanhando a trilha sonora. Wagner defendia a “obra de arte total”. Ironicamente, as atrizes/dançarinas de La Wagner trazem à tona performatividades femininas, de corpos dominados e ausentes no universo wagneriano.
Com A floresta que anda e La Wagner, já não basta falar de uma crise de identidade nas artes cênicas, ou na indefinição do estatuto epistemológico do teatro. São obras que estão além desse debate e procuram uma configuração própria, ainda que sem nome. Não deixam de ser teatro, mas rejeitam concepções totalizantes e organizam novos vetores de leitura.
Outros dois elementos associados às artes contemporâneas, o cinismo e a paródia estão presentes nessa duas obras e em Otelo, montagem da companhia chilena Viajeinmóvil para o clássico shakespeariano. Em cena, dois atores manipulam bonecos para narrar a trama de ciúmes e intrigas de Otelo, sua esposa Desdêmona e o amigo traidor Iago. A opção da companhia foi transformar a peça em um melodrama radiofônico, recurso que muitas vezes extrai risos dos espectadores. A violência de gênero aparece, novamente, como tema, mas a montagem aborda também a amizade na política e a relação entre o âmbito privado e a esfera pública. Não é um trabalho contundente como A floresta que anda e La Wagner, mas que seduziu o público por sua singeleza. Diferente dessas duas obras, nas quais a relação com os clássicos é apenas um ponto de partida, Otelo manteve o texto original, respeitando sua sequência e seus desdobramentos. A subversão ocorre na transposição para a linguagem do rádio e para um novo contexto, o das classes médias latino-americanas.
Nesse sentido, o recurso ao melodrama mostrou-se potente, pois permitiu a identificação com Desdêmona, acusada de um pecado que não cometeu. Por não saber o porquê de estar sendo acusada pelo marido, que supôs seu adultério após intrigas inventadas por Iago, Desdêmona é apresentada como uma metáfora da injustiça sofrida por aqueles a quem é negado o direto de defesa.
A questão da violência de gênero é também o tema de Hysterica Passio, texto da espanhola Angelica Lidell com montagem da companhia paulistana Teatro Kaus, e de BR-Trans, espetáculo criado pelo ator e transformista Silvero Pereira. Esses dois espetáculos fizeram temporadas recentes em São Paulo. Ainda sobre as voltas do feminino, Ladrão de mim, da brasiliense Lucianna Mauren, mostra uma mulher cuja existência foi modificada pela experiência da maternidade.
Em termos formais, Mauren trabalha com o hibridismo de linguagens, valendo-se projeções de vídeos e composições sonoras para ilustrar seu monólogo. É um trabalho, portanto, diferente de A floresta que anda e La Wagner. Nessas obras, os diferentes recursos estéticos utilizados não possuem uma hierarquia. Ladrão de mim é um relato de autoficção no qual o registro teatral prevalece, com um intenso trabalho de dramaturgia e interpretação. Sobre a questão de gênero, o texto revela que não é preciso uma ação agressiva direta para o sofrimento se instalar. Os próprios padrões de comportamento esperados de uma mulher também causam dor e desespero.
Em larga medida, a porosidade das linguagens, a recorrência de temas relacionados a gênero e sexualidade, a autoficção, a paródia, a ironia e o cinismo justificam, de maneira exemplar, o preceito “cena contemporânea” adotado pelo festival. Há que se atentar, porém, para algumas questões de produção que mereciam um tratamento mais cuidadoso da organização. A primeira apresentação de Ladrão de mim, no Teatro da Caixa, foi marcada por inúmeros problemas técnicos de som e de luz, superados com cativantes improvisos da atriz e diretora Lucianna Mauren. No espetáculo de dança contemporânea Tormenta, da companhia espanhola Cielo Raso, a vinheta do festival foi solta quando o espetáculo já havia começado, quebrando a difícil construção de uma cumplicidade entre intérprete e público feita pelo bailarino Marti Güell.
Em relação à curadoria, alguns trabalhos de performance foram apresentados somente em unidades do Sesc nas cidades de Gama e Taguatinga, de acessos difíceis, sem outras opções de atividade nos locais. De qualquer forma, é conhecido o esforço que as mostras e festivais de teatro em todo o Brasil têm feito para continuarem a existir nesses tempos sombrios de crise econômica e de descaso com a cultura. Nesse sentido, é louvável que o Cena Contemporânea tenha alinhavado em sua programação as discussões mais prementes da contemporaneidade.
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
.:. Leia a crítica de Clarissa Falbo a partir de A floresta que anda.
Fichas técnicas:
A floresta que anda
Inspirado em Macbeth, de William Shakespeare
Criação, e direção ao vivo: Christiane Jatahy
Com: Julia Bernat e performers convidados
Direção de fotografia, iluminação e câmera ao vivo: Paulo Camacho
Classificação indicativa: 18 anos
Duração: 90 min.
La Wagner
Dramaturgia e direção: Pablo Rotemberg
Com: Ayelén Clavin, Carla Di Grazia, Josefina Gorotiza e Carla Rímola
Iluminação: Fernando Berreta
Classificação indicativa: 16 anos
Duração: 60 min.
Ladrão de mim
Concepção, direção, dramaturgia e atuação: Lucianna Mauren
Criações sonoras: João Lucas
Conceituação e roteirização de imagens em vídeo: Roberta K. Matsumoto
Captação e edição de vídeo: Ádon Bicalho
Identidade cenográfica: Roustang Carrilho
Iluminação: Rodrigo Lélis
Classificação indicativa: 16 anos
Duração: 90 min.
Otelo
Texto: William Shakespeare
Adaptação e direção: Jaime Lorca, Teresita Iacobelli, Christian Ortega
Com: Nicole Espinoza e Jaime Lorca
Classificação indicativa: 12 anos
Duração: 70 min.
Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).