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Crítica Militante

A fúria por um papel e o amor ao teatro

7.10.2016  |  por Afonso Nilson

Foto de capa: Bruno Ropelato

A ambivalência entre o real e o ficcional é um dos motes para a encenação de Cena morta, da Persona Cia. de Teatro, de Florianópolis. Esse duplo lugar onde o que de início parecia ser recepção informal e o que é de fato encenado engendra um modo de ver que oscila entre o riso, a dúvida e o desconforto. Além desse lugar ambíguo de onde se vê uma trama de mal-entendidos e conspirações, há ainda um tipo de violência sub-reptícia que se desvela a partir das relações entre os personagens, já que essa oscilação entre o que é ou não verdade, afeto, amizade, interesse e rancor, tal como a ficção, permanece sempre em terreno movediço.

A textura que se estabiliza em meio ao exagero e aos carões não é a da violência em si, mas a da paixão pelo teatro, pelo estar em cena

O enredo gira em torno das ilusões de uma mulher de se tornar atriz de sucesso. Os jogos de pequenos poderes, conhecidos influentes e artistas ególatras são  postos em cena com ironia ácida. As chantagens e pretensas genialidades dos diretores, os malfadados testes que não testam nada além do rosto mais bonito, as pequenas traições de colegas e estratagemas em prol de papéis irrelevantes são tratados com mordacidade, tocando a sátira, e traçam uma bem humorada crítica aos clichês de ensino das escolas de atuação para teatro e TV, bem como às superficialidades de parte do meio artístico.

A referência ao cinema noir, uma constante nos trabalhos do diretor e autor Jefferson Bittencourt, é abrangente. As construções arquetípicas das femmes fatales, da ingenuidade feminina e da fraqueza moral da mulher invejosa se desvelam com vigor no trabalho das atrizes Juli Nesi, Raquel Stüpp e Giselle Kincheski. A opção pela violência mascarada e a intricada trama de traição, subserviência e poder tendem ao mistério e ao suspense, embora elementos que subvertem o realismo e a narrativa linear acabem por abarcar um universo com maiores pretensões do que a mera referência cinematográfica.

A atriz Juli Nesi: femme fatale é uma das figuras trabalhadas pela encenaçãoBruno Ropelato

A atriz Juli Nesi: femme fatale é uma das figuras em cena

As quatro personagens assumem estruturas narrativas que coadunam com a potência de enganos e falsas expectativas que permeiam a trama. Os jogos entre o que se acredita e o que se espera constitui um fabulário repleto de pistas forjadas, sinuosidades e engodos, oscilando entre o metateatral e o novelesco. O uso da máscara como elemento de desenlace encaminha para o simbólico as derrocadas das ações-chave, que, entremeadas com a inserção musical fortemente narrativa, dão o tom a um percurso imagético que se fecha em ciclos de altos e baixos, claros e escuros.

Mas, especificamente, sobre o que fala Cena morta? Sobre o amor ao teatro. Em meio a tramas de traições e violência, egos inflados e a ganância pela cena, o espetáculo é uma declaração de amor ao teatro, suas vicissitudes e incoerências, suas dificuldades e vícios. As apropriações de textos clássicos nos monólogos, a fúria por um papel das atrizes iniciantes e sua grandiloquente esperança em brilhar desvelam um mundo de engrenagens internas que fazem o teatro funcionar. Cena morta esbarra em alguns lugares-comuns, alguns jargões e clichês, mas não se afasta de um universo cotidiano de relações dos artistas com seus colegas e a atuação em si.

Raquel Stüpp, Clei Grött, Juli Nesi e Giselle Kincheski: Cena morta é declaração de amor ao teatroBruno Ropelato

Raquel Stüpp, Clei Grött, Juli Nesi e Giselle Kincheski: do amor ao ofício

Poderia ser apenas uma trama urdida para desvelar com sarcasmo o submundo da competitividade nas artes cênicas (embora esse tipo de selvageria seja bem mais comum no mundo da TV), mas as estratégias de montagem e construção dos laços que unem e esgarçam as relações entre os personagens dão maior envergadura ao trabalho. Ultrapassa a história pela narração, da mesma maneira que o real não é apenas o que é visível. A textura que se estabiliza em meio ao exagero e aos carões não é a da violência em si, mas a da paixão pelo teatro, pelo estar em cena. É essa a força motriz que move todas as personagens em direção aos desfechos que a dramaturgia do espetáculo impõe.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Serviço:
Cena morta
Onde: Teatro Ary Garcia, Sesc Itajaí (Rua Almirante Tamandaré, 259, Centro, Itajaí, tel. 47 3249-3850)
Quando: 20/10, às 20h30
Quanto: gratuito

Onde: Teatro Sesc Prainha (Travessa Siryaco Atherino, 100, Centro, Florianópolis, tel. 48 3229-2200)
Quando: 22 e 23/10, às 20h
Quanto: gratuito

Ficha Técnica:
Autoria e direção: Jefferson Bittencourt
Com: Clei Grött, Giselle Kincheski, Juli Nesi e Raquel Stüpp
Figurinos e objetos: Valéria de Oliveira
Costura: Lilian Bandeira
Maquiagem/Visagismo: Alan Silveira
Fotos: Bruno Ropelato
Trilha sonora e iluminação: Jefferson Bittencourt

Gestor de cultura em Santa Catarina, crítico e dramaturgo. Escreve ocasionalmente para os jornais Notícias do Dia e Diário Catarinense. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres (Chiado Editora/Portugal), coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.

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