Crítica
É na armadilha de uma estrutura artificial que a realidade do tema será aprisionada
(Francis Bacon, em entrevista a David Sylvester)
Em Belo Horizonte
O espetáculo 19:45!, apresentado no Festival Estudantil de Teatro (FETO) é trabalho dos formandos do curso profissionalizante do Centro de Formação Artística e Tecnológica (Cefart) da Fundação Clóvis Salgado. A montagem tem dramaturgia e direção de Rita Clemente, que cumpre a função de artista convidada.
Certamente alguém da terra e com acompanhamento mais regular da cena já deve ter se dedicado a estudar a recorrência, por aqui, do que se convencionou chamar teatros do cotidiano. Salvo engano ela é expressiva entre os mineiros. Passa, talvez acidentalmente, por um grupo central como o Galpão (ao menos o de Pequenos Milagres); tem sido praticamente o mote do trabalho de um grupo mais jovem e também importante, o Espanca! – do princípio até agora (Por Elise, Amores surdos – dirigido pela mesma Rita Clemente –, Marcha para Zenturo, Dente de leão, etc). E estende-se por coletivos ainda mais novos. Lembro, entre os que conheço, o Quatroloscinco, especialmente o solo de Assis Benevenuto, Get out! , mas também, em certos aspectos, o ótimo Outro lado. Sobre este último, embora o imaginário visitado e as formalizações cênicas sigam outras coordenadas distintas, há parentesco evidente quanto ao tema de uma ars combinatória regida pelo acaso, nessa mesma linha da lupa sobre vidas cotidianas que está em 19:45!. Senão, vejamos: “Elas poderiam ter tomado outros caminhos, talvez nunca teriam se encontrado, milhões de combinações possíveis” (da apresentação de Outro lado).
O jogo de montar e desmontar as ações e os artifícios de linguagem empregados totalizam um espetáculo exigente, com a Miúdad Cia., que vai se contando ao tempo em que testa o nosso interesse em aderir ou não às convenções
Estas recorrências são a tradução atual, entre nós, do que o teórico francês Jean-Pierre Sarrazac identificava como uma das linhas de fuga que na crise do drama se desenhavam. Se por um lado a tentativa de solução estética foi dar em um teatro “para fora”, como no exemplo da épica brechtiana; por outro muitos artistas se dedicaram a traçar caminhos “para dentro”, notadamente através do expressionismo e da variedade de “teatros íntimos” (termo usado por Sarrazac, a partir de Strindberg) dos quais derivam as estratégias de subjetivação que marcam não só o modernismo mais avançado como também boa parte da cena contemporânea.
Do ponto de vista dos recursos de linguagem estes teatros mantêm personagens (quando existem enquanto tal) tensionados entre o eu e o mundo, de uma maneira deliberadamente lírica, tendendo ao ensimesmamento, mais que no teatro dramático tradicional. E têm como uma das características mais evidentes a alternância entre os gêneros, oscilando o gosto pela narração e a poesia, quando da representação dos estados e percepções íntimas.
Sem querer fazer a experiência caber dentro da teoria, há sem dúvida um pouco de tudo isso em 19:45!. E como não poderia deixar de ser o espetáculo passa a carregar, nas feições e questões expressivas próprias, uma parte dos impasses relativos à teatralidade que uma cena com estas vocações demanda. A dramaturgia de Rita Clemente, pensada aqui não só em temos de texto como no imbricamento texto-representação, conta, no plano da trama (a palavra é ótima para o contexto) sobre uma série de acontecimentos colhidos na vida ordinária, que parecem ter sido disparados do encontro entre dois jovens – uma moça surda e um rapaz que passa de bicicleta – e um acidente que ocorre naquela circunstância. Dali seguem os flagrantes na vida de uns tantos outros personagens e situações, de maneira que a encenação vai nos mostrando a secreta articulação entre eles. O naturalismo é uma das linguagens, mas não a única. Nesse mundo de fatos comezinhos, expectativas frustradas, como um noivo que espera uma noiva que não chega, dramas familiares, impasses amorosos e profissionais, a montagem (outra palavra boa) desenha um mundo no qual o acaso parece ser mais que acidente. E nos chega de duas formas curiosas.
Primeiro, no tratamento do assunto – os lances aparentemente fortuitos que encontram articulação entre si –, que é a coisa mais interessante do trabalho. Talvez mais que o próprio assunto porque cria fricção com ele. Uma fricção entre assunto e dispositivos. E aqui há o seguinte: ainda que uma consulta rápida ao material da companhia e ao que foi publicado na imprensa indique certa mística ou ao menos certa aura metafísica em torno do tema (o acaso), o mais produtivo da encenação é justamente que esse canto da sereia do espontaneísmo, salvo engano, foi contornado no processo. O que observamos no palco, ao contrário, tem muito mais a ver com uma construção rigorosa, artificial, erguida em uma matemática bem calculada, que com qualquer apelo à tautologia. A “armadilha” a que se refere Francis Bacon quando comenta a criação artística é o próprio processo de invenção, através do qual o tema, para resultar em forma expressiva, tem que ser apreendido e negociado porque o acaso, para desenhar-se como obra, pede de todo modo investimento construtivo. No caso do espetáculo este investimento na construção é explícito. Feliz e bem aproveitado paradoxo.
O segundo aspecto da formalização passa pelo enfrentamento das demandas de linguagem que a dramaturgia coloca ao grupo. Uma delas é a de como manter o frescor e o interesse na fala das personagens quando estas tendem à autorreflexão lírica (mesmo em chave irônica). Pois o fato de a cena tornar a ação aqui e ali rarefeita, em favor de uma filosofia do cotidiano não abole a necessidade de manter acesa a teatralidade. Muda-se a chave, mas a demanda de comunicação permanece. Isto é algo recorrente na cena contemporânea e entre nós encontra a grande dificuldade de se deparar com padrões de percepção forjados majoritariamente pelo naturalismo televisivo, que nos educaram para ouvir as coisas e ver as ações em linha reta, sem curvas nem muitas considerações senão aquelas que movimentem imediatamente a ação para a frente. Não somos muito afeitos a tolerar as suspensões. E o efeito teatral não é só uma questão da cena, tem a ver, sobretudo, com as expectativas e os repertórios da recepção.
Nessa linha, o jogo de montar e desmontar as ações e os artifícios de linguagem empregados totalizam um espetáculo exigente, que vai se contando ao tempo em que testa o nosso interesse em aderir ou não às convenções. Uma boa notícia é que independente do rendimento desta dinâmica o elenco segue inteiro, em situação de jogo, do início ao fim, e equilibrado quanto aos desempenhos. Algo importante para o contexto de um projeto que é ao mesmo tempo artístico e pedagógico e que, no entanto, tem direção e dramaturgia externas ao grupo de aprendizes. Nestes casos a apropriação dos materiais é mesmo indispensável porque, é claro, não se trata apenas de chegar a um bom resultado e sim, sobretudo, a um processo de criação em que os formandos passem de fato por uma experiência vertical de formação.
A despeito desta apropriação e dos bons desempenhos (que se estendem aos planos de luz, música e cenografia, todos com contribuições importantes), parece claro que a inventiva estrutura narrativa do espetáculo às vezes não suporta a retórica. É coisa que talvez mereça atenção e um olhar (sugiro) em duas direções: ao volume do que se diz e à qualidade dos argumentos – neste aspecto menos no sentido das ideias e mais quanto à sua potência teatral. Ouvir para saber o que o palco está fazendo render e o que ele está rejeitando pode ser, no contexto formativo, um bom exercício.
De um modo ou de outro este trabalho inaugural da Miúda companhia não nos parece nada miúdo. É um projeto de porte. Naturalmente não estamos falando de produção e sim dos desafios estéticos propriamente ditos – colocados no lugar alto de uma cena inquieta, sofisticada, por isso mesmo uma cena útil, no melhor lugar da utilidade, para os artistas que estão chegando.
.:. O jornalista, crítico e curador Kil Abreu viajou a convite da organização do Festival Estudantil de Teatro (FETO).
Ficha técnica:
Texto e direção: Rita Clemente
Com: Alunos do 3º ano profissionalizante do curso de teatro do Centro de Formação Artística e Tecnológico da Fundação Clóvis Salgado – Cefart (Carolina Cândido, Diego Roberto, Éder Reis, Babú Pereira, Flor Barbosa, Natália Pereira, Marina Tadeu, Priscilla Zopelaro, Ramon Brant, Tom Castro e Vanessa Machado)
Cenário e figurinos: Thálita Motta
Trilha sonora: Márcio Monteiro
Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.