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Crítica

Utopia musical para a emancipação feminina

21.11.2016  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Juliana Vinagre

Se já existe razoável entendimento sobre a relevância do processo de criação em todos os campos da arte, e em especial em uma atividade coletiva e presencial como o teatro, no musical A cidade e as mulheres, criado de modo colaborativo pelos aprendizes da Fábrica de Cultura Jaçanã, na zona norte de São Paulo, o valor da construção do pensamento que funda o gesto criativo é perceptível na carne mesma do espetáculo.

Dirigida por Antônia Matos e Éder Lopes, com texto final de Alessandro Toller, a montagem aborda as relações de opressão sobre as mulheres, entranhadas na cultura desde tempos imemoriais. Ressalte-se que a dramaturgia sublinha o aspecto da emancipação, procedimento fundamental para evitar a vitimização muitas vezes imobilizadora, sem com isso negligenciar contexto social e relações de poder.

Não é fruto de mero acaso o movimento de descolamento do realismo rumo à construção lúdico-poética perceptível nessa criação. Alicerçando a encenação está O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, a obra de Cervantes, que inspira a base temática nomeada “devaneio utópico”. Trata-se de uma provocação da diretora Eliana Monteiro (Teatro da Vertigem) em parceria com o dramaturgo Ivan Delmanto (II Trupe de Choque), orientadores artísticos do Projeto Espetáculo 2016, ação vinculada à secretaria de estado da Cultura. O tema-plataforma é comum a cinco diferentes montagens teatrais realizadas nas Fábricas de Cultura de Jaçanã, Capão Redondo, Vila Nova Cachoeirinha, Jardim São Luís e Brasilândia.

Criada em colaboração com aprendizes do bairro paulistano do Jaçanã, no projeto Fábricas de Cultura, a encenação de ‘A cidade e as mulheres’ pode ser definida como radical em duplo sentido: ruptura e enraizamento

A partir da sugestão, cada trupe criou seu devaneio poético. Em Jaçanã, a escolha recaiu sobre a utopia da emancipação feminina. Assim, na preparação do espetáculo, foram estudadas personagens como a Ofélia de Heiner Müller, que recusa submissão paterna e o suicídio, ao contrário da noiva do Hamlet shakespeariano; Cassandra – a sacerdotisa da tragédia grega As troianas, condenada a prever o futuro sem que ninguém acredite em suas palavras; e Antígona, a jovem que enfrenta um decreto de morte do rei Creonte para agir de acordo com os valores nos quais acredita. Também debateram sobre as atitudes de figuras históricas como Joana D’Arc, Malala e Maria da Penha. Sempre sob orientação de Antônia e Éder, ela com origem no Teatro Vocacional e ele na Escola Livre de Teatro de Santo André, ambos já com longo caminho traçado na cena paulistana, a trupe leu ainda textos de feministas como Judith Butler e Chimamanda Ngozi Adichie, entre outras. Numerosas, tais referências podem ser reconhecidas no espetáculo, aqui e ali, por quem sabe das matrizes. Mas foram visivelmente apropriadas e ganharam expressão autônoma na dinâmica das cenas.

Cada forma de arte carrega seus próprios riscos. Em se tratando de dramaturgia criada com a participação de jovens que se iniciam na atividade artística movidos por compreensível desejo de expressão pessoal, grande é o perigo da poética se manter atada às questões individuais, em abordagem estritamente subjetiva. Se no aspecto positivo o depoimento pessoal traz para a arena os sentimentos envolvidos na matéria cênica investigada, em sua faceta negativa pode se limitar ao exercício do “re-sentimento”, sem linha de fuga para alcançar contextos para além das relações privadas. O resultado ficaria semelhante aos dramas televisivos, o referencial mais conhecido.

Alguns dos recursos cênicos e dramatúrgicos escolhidos conduzem a encenação a passar ao largo desse risco. O primeiro deles diz respeito à transposição de contexto: em vez da populosa periferia urbana onde está inserida a fábrica, o espaço ficcional escolhido para o desenvolvimento da trama foi o universo interiorano dos rodeios e do agronegócio.

Opção pertinente não apenas por propiciar o necessário distanciamento crítico, como também pela carga simbólica que carrega, com forte possibilidade de atuar sobre a recepção. Afinal, poucos ignoram o machismo impregnado nesse meio cultural um tanto americanizado e reconhecidamente tosco no que diz respeito à autonomia do gênero feminino. O potencial crítico desse deslocamento geográfico é ampliado pelo tom de paródia na apresentação da fictícia Zebuciti, território de uma rebelião de mulheres, justamente no dia da grande exposição de gado, quando a mídia nacional está presente.

O 'devaneio utópico' do 'Dom Quixote', de Cervantes, norteou Jovens da periferiaJuliana Vinagre

O ‘devaneio utópico’ do ‘Dom Quixote’, de Cervantes, norteou Jovens da periferia

O lugar é assim definido por um coro no prólogo: “Zebuciti é uma grande propriedade, uma cidade-curral, um labirinto bovino. Nós somos as mulheres no labirinto, e há um touro que guarda cada uma das cinco porteiras. Um touro eleito, um touro campeão”. O título do grande evento local, EXPOBEL-ZEBU, antecipa o humor ácido que perpassará o espetáculo sem prejuízo da densidade trágica. Toller, e com ele toda a equipe, demonstra não ter medo da prosa poética e nem de resvalar o fantástico, mesmo tratando de uma realidade dura.

A cidade e as mulheres é a segunda montagem realizada pela dupla de diretores Antônia e Éder, com basicamente os mesmos aprendizes. Enquanto na primeira, Bando Jaçanã, a linguagem era coral, desta vez o grupo queria se experimentar na criação de personagens.

A busca por um certo equilíbrio no que diz respeito ao espaço de cada participante no espetáculo final – fruto de um desejo inescapável e que deve ser contemplado num trabalho dessa natureza na qual o processo de criação é mesmo mais importante do que o resultado – não se configura problema nessa encenação. Ao contrário, a multiplicidade de figuras fica esteticamente justificada na linguagem da cena que ganha o formato de semi-arena e uma cenografia de grandes tambores que servem de instrumento musical, de esconderijo para personagens e ainda guardam adereços.

A abordagem temática ora remete a questões muito próximas dos jovens, como ocorre, por exemplo, no manifesto da ‘garota inconformada’ contra as condições de ensino em Zebuciti – “nossas escolas viraram depósito pra pecuária, o gado foi empurrado pra dentro das salas de aula, dividimos nossas carteiras com bundas de vaca”. Ora traz ecos de lutas ancestrais, como no seguinte trecho da fala da veterinária: “Arde o vento. O fogo na madeira de currais antigos e novos. Com as chamas nos olhos eu vejo. É preciso queimar o fogo que queima as mulheres em todos os tempos.”

O humor corrosivo perpassa a construção de outras personagens como no trio de mulheres nomeadas como Família, Tradição e Propriedade, sempre de braços dados, prontas a condenar todo gesto libertário; o Pecuaristão, dono do boi premiado que será morto pelas revoltosas; o Agroboy colecionador de picapes subitamente obrigado a perceber a diferenças entre vacas e mulheres ou a Esposa no Rolete, obrigada a ser vaca doméstica.

Aprendizes do Jaçana e outros quatro bairros vão se apresentar no Sérgio CardosoJuliana Vinagre

Aprendizes do Jaçana e de outros quatro bairros ocupam palco do Sérgio Cardoso

São dezenas de figuras estreitamente articuladas ao tecido social costurado em cena. Juntas elas compõem uma espécie de laboratório para a observação crítica de uma cultura pronta a impedir qualquer movimento de emancipação afetiva e intelectual. Se num primeiro momento o público é apresentado à cidade e sua gente, ao soar o alarme do assassinato do boi premiado em plena festa, a arena do rodeio se transforma em tribuna para julgamento das supostas criminosas.

Numa reversão de expectativa, ao assumirem as acusações afirmando seus comportamentos, em vez de negá-los, as mulheres promovem a difusão de suas ideias. Ato que terá efeito contaminador, interferindo no comportamento de figuras até então alinhadas com os poderosos latifundiários, como a veterinária e a miss rodeio.

A encenação de A cidade e as mulheres pode ser definida como radical em duplo sentido: ruptura e enraizamento.  Ruptura pelo efeito que produz em comportamentos regulados por normas de convívio não escritas, porém socialmente aceitas e compartilhadas, cujo questionamento está no cerne da cena. A linguagem lúdica permite à trupe escapar da armadilha de reproduzir a brutalidade criticada.

No segundo sentido, na apresentação acompanhada na Fábrica de Cultura Jaçanã, o estreito vínculo entre espectadores e criadores – perceptível no comovente debate que se seguiu à sessão – produziu uma espécie de movimento às raízes do teatro como rito coletivo de interesse público, capaz de provocar reflexão sobre o elo indivíduo e sociedade, e interferir sobre modos de estar no mundo. É visível ainda no espetáculo o aspecto do enraizamento no sentido de uma certa verticalidade, fruto da continuidade de trabalho, algo que só a permanência em um território permite.

.:. A crítica Beth Néspoli foi convidada pela Secretaria de Estado da Cultura para debater o espetáculo A cidade e as mulheres no âmbito da Mostra de Teatro Fábricas de Cultura – Projeto Espetáculo 2016.

Serviço:
Mostra de Teatro Fábricas de Cultura – Projeto Espetáculo 2016

Onde: Teatro Sérgio Cardoso, sala Paschoal Carlos Magno (Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista, tel. 11 3288-0136)
Quando: 21 a 25 de novembro, às 15h
Quanto: gratuito, retirar ingresso
Recomendado para maiores de 12 anos

21/11, segunda – O dia depois do último dia – Projeto Espetáculo de Vila Nova Cachoeirinha. Direção: Thomas Holesgrove e Ícaro Rodrigues. Dramaturgia: Camila Damasceno. Debate de apreciação crítica: Valmir Santos;

22/11, terça: A cidade e as mulheres – Projeto Espetáculo de Jaçanã. Direção: Antônia Matos e Éder Lopes. Dramaturgia Alessandro Toller. Debate de apreciação crítica: Beth Néspoli;

23/11, quarta: Ponto de fuga – Projeto Espetáculo de Brasilândia. Direção: Fernanda Machado e Luiza Romão. Dramaturgia: Sofia Boito. Debate de apreciação crítica: Evaldo Mocarzel;

24/11, quinta: Cantos de um naufrágio esquecido – Projeto Espetáculo de Jardim São Luis. Direção: Natacha Dias e Paula Bellaguarda. Dramaturgia: Marina Tranjan. Debate de apreciação crítica: Dedé Pacheco;

25/11, sexta: Ensaio sobre a Mancha! – plano piloto de voo – Projeto Espetáculo de Capão Redondo. Direção: Rodrigo Batista. Assistência de direção: Bruno Moreno. Dramaturgia: Nathalia Catarina. Debate de apreciação crítica: Antônio Duran.

Equipe de atuação de 'A cidade e as mulheres',Juliana Vinagre

Equipe de atuação do espetáculo ‘A cidade e as mulheres’

Ficha técnica:
A cidade e as mulheres

Direção: Antônia Matos e Éder Lopes
Dramaturgia: Alessandro Toller
Direção musical: Tulio Crepaldi
Preparação vocal: Claudia Felisberto
Design de aparência: Rafael Bicudo
Cenografia: Hémon Viera
Iluminação: Danilo Mora
Vídeo: Alexandre Gomes
Orientação artística: Eliana Monteiro e Ivan Delmanto
Coordenação artístico-pedagógica: André Vilela
Coordenação de projeto: Luanah Cruz
Assistência de coordenação: Tiago Luiz
Direção de produção: Cris Klein (Dionísio Produção)
Assistência de direção: Flávia Santos e Wesley Cardiolli
Produção local (Jaçanã): Juliana Vinagre
Com: Agatha Luiza Silva Batista (garota inconformada), Alisson Florindo Silva dos Santos (touro campeão, boi fantasma), Andressa dos Santos Oliveira (Marcela, pastora de agroboys), Beatriz Maia Gomes (rainha do rodeio), Carine Rocha Oliveira (uma das três irmãs, família), Dayane Ramos Nogueira (a grande vendedora de hambúrguer), Deborah Silvester (a musicista da cidade), Dhessyca Karolainy da Conceição Souza (juíza da expobel-zebu), Emilly Nataly de Souza (uma das três irmãs, propriedade), Felipe Rodrigo (músico sanfoneiro), Gabrielly Almeida Nunes dos Santos (a última condenada), Geovanna Nataly Queiroz Nascimento (coro mídia), Iara Ilária Perri Martins (veterinária Cassandra), Karolaine Lucia da Silva Faleia (descendente de escravos com mordaça), Kauan Cristiano Brito Silva (locutor 1, agroboy), Luan da Silva Lopes de Melo (pecuaristão), Luiz Felipe dos Santos Pereira (locutor 2, defensor), Henrrique Onorato da Silva (lady vaca profana), Marcelo Evangelista Barbosa (patrocinador milionário), Ruby Maximo dos Santos Figueredo (coro mídia), Sarah da Cruz Queiroz (esposa no rolete), Stephany de Oliveira dos Santos Vieira (uma das três irmãs, tradição), Taynan Santos de Souza (segurança do rodeio), Thayna Onorato da Silva (cidadã zebucitense), Thiago Marchetto de Lima (palhaço salva-vidas do rodeio),  Vinicius Veloso Fernandes Santos (locutor 3 e promotor), Pedro Emanuel Rita Freitas (coro mídia), Ketyllyn Ximenes Ferreira (Carmen, prostituta da zona leste), Breno Máximo (cidadão zebucitense), Kildery Nunes (cidadão zebucitense)
Aprendiz da trilha de cenografia: Mariana Leite Pereira de Souza
Aprendizes da trilha de iluminação: Rafael Tenorio e Rodinei dos Santos Junior

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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