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Artigo

Cantando, o poeta é sem morte

7.12.2016  |  por Patricia Freitas

Foto de capa: Divulgação/Fronteiras do Pensamento

Um apontamento de Terry Eagleton encontra forte ressonância no trabalho do maranhense José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar (1930-2016). A literatura, disse o crítico inglês, não se define somente como um escrito de ficção, muito menos como um registro documental da realidade externa. Tampouco a capacidade imaginativa ou criativa é capaz de dar conta de um conceito tão espinhoso como “literatura”. Seu poder de, a um só tempo, colar e desprender-se da materialidade histórica advém de sua própria forma organizativa, que se volta contra o que Eagleton chama de “fala comum”, ordinária e cotidiana. Não que a literatura exclua as minúcias que nos rodeiam. Pelo contrário: ela é capaz de fazer-nos enxergar os detalhes pelas relações inusitadas que tece, pelo trabalho formal que articula significantes dificilmente associados caso tomados apenas através da esfera semântica e pela maneira como evidencia a materialidade contida na aparente abstração das letras.

Poeta, crítico de arte, dramaturgo, biógrafo, ensaísta, artista plástico, Gullar insistiu durante toda a sua longa trajetória na importância da arte como princípio sobretudo aglutinador de ideias, de pessoas, de vida. De fato, o poeta que buscava de forma recorrente o espanto racional e a suspensão do sentido habitual das coisas – inclusive das miudezas – também reconhecia a invencibilidade do canto perante o tempo inexorável. Mas não se trata de um canto melancólico, similar ao do albatroz baudelairiano “exilado no chão em meio à corja impura”. É antes um constructo que alça expor a potência humana ainda que na selva das cidades, dando voz ao ímpeto coletivo revolucionário que guiou a geração dos anos 60. Mesmo em sua mais famosa criação, Poema sujo – chamado por Gullar de “poema de memória, da perda, da recomposição do mundo perdido, poema-limite” (1998), o eu-lírico não cede ao processo de reificação e de alienação em curso durante os anos de chumbo: “tictactictac/ pulsando há 45 anos/ esse coração oculto/pulsando no meio da noite, da neve, da chuva/ debaixo da capa, do paletó, da camisa/ debaixo da pele, da carne,/combatente clandestino aliado da classe operária/ meu coração de menino” (2004).

Depois do dia 4 de dezembro de 2016, o que resta é a convicção de uma poesia cuja principal finalidade está em revelar a complexidade do universo, visto de forma metafísica, para afirmar a sua inutilidade frente a questões mais urgentes, materiais e cotidianas

Talvez tenha sido por essa necessidade de comunhão com a base social que Gullar se aproximou de artistas do meio teatral e realizou trabalhos extremamente significativos para os palcos nacionais. Após sua incursão poética entre os concretistas e neoconcretistas, o poeta integra o Centro Popular de Cultura da UNE, fortemente influenciado pelo marxismo-leninismo, bem como pela convicção de que o Brasil teria condições reais de realizar uma revolução similar à ocorrida em Cuba. No CPC, estreita laços com o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho e atua principalmente como escritor engajado, preocupado em ativar a consciência da base da pirâmide social através de uma linguagem direta e pedagógica. Gullar chega a afirmar em Cultura posta em questão – livro publicado em 1964 e queimado pelos militares posteriormente – que ao intelectual/artista brasileiro só restavam duas opções na época: “participar ou não da luta pela libertação econômica do país, vale dizer, pela implementação da justiça social, que só se fará com a distribuição justa das riquezas criadas pelos que trabalham. Para o intelectual, a questão se põe no nível mesmo de sua atividade criadora, uma vez que é através dela que ele afirma sua identidade social.” (1965)

O artista, portanto, não poderia estar isolado, muito menos encerrado numa torre de marfim. Depois da experiência em meio às atividades de agitação de propaganda e do trágico incêndio da UNE em 1964, o poeta uniu-se a seu colega Vianinha na fundação de um novo empreendimento, desta vez voltado ao teatro, chamado Grupo Opinião. Segundo a pesquisadora Miliandre Garcia (2011), a criação do grupo ocorreu poucos meses após o golpe no próprio apartamento de Ferreira Gullar, onde também estavam Armando Costa, Vianinha, Paulo Pontes, João das Neves e PichínPlá. A principal proposta dos envolvidos era resistir ao contexto político brasileiro através da arte. Nasce assim o Show Opinião, espetáculo musical dirigido por Augusto Boal e encenado no Teatro Super Shopping Center, no Rio de Janeiro. Nele, o papel de Gullar foi de extrema importância: traduzir trechos da obra de José Martí, revolucionário cubano, para integrar o material dramatúrgico.

Já em 1966, Gullar escreve com Vianinha e João das Neves a peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, dirigida por Gianni Ratto e agraciada com os prêmios Molière e Saci. Lançando mão da literatura de cordel e de aspectos da cultura popular, os autores definiram a peça como “um voto de confiança no povo brasileiro”: “O bicho é o impasse. Impasse em que nos metemos não devido à nossa irresponsabilidade e corruptibilidade. Ao contrário – o homem é capaz de viver esse impasse porque é altamente responsável e incorruptível. E, felizmente, também é capaz de, em determinado momento, sofrendo o insuportável, superar o impasse. (1966)”

Cena de 'Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come' (1966)Cedoc/Funarte

Cena de ‘Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come’ (1966)

Gullar colaborou ainda em outras peças do Grupo Opinião, extinto na década de 80, tais como: A saída. Onde fica a saída?, com Armando Costa e Antônio Carlos Fontoura; Dr. Getúlio, sua vida, sua glória, com Dias Gomes; Um rubi no umbigo; Um romance nordestino e Mal chegava a primavera. As duas últimas continuam inéditas.

O reconhecimento do quão precipitado havia sido o anúncio da primavera deu-se principalmente a partir da prisão e exílio compulsório do poeta em diversos países da América Latina e Europa. Curiosamente, seu retorno ao Brasil e sua iniciação aos escritos como comentarista político no jornal Folha de S.Paulo parecem ter catalisado um posicionamento político a contrapelo do engajamento anterior – fenômeno não raro para aqueles que tiveram que lidar com as significativas perdas da militância em períodos mais que turbulentos.

No entanto, podemos afirmar que, depois do dia 4 de dezembro de 2016, o que resta é a convicção de uma poesia cuja principal finalidade está em revelar a complexidade do universo, visto de forma metafísica, para afirmar a sua inutilidade frente a questões mais urgentes, materiais e cotidianas. Está aí a grandiosidade de Gullar: saber que o sublime está nos olhos azul-safira de um gatinho e não nas estrelas inalcançáveis.

Em 2015, em conversa bastante produtiva com o jornalista e tradutor Eric Nepomuceno, fui aconselhada a conversar com Gullar para compreender a trajetória de artistas vinculados à arte politizada dos anos 70. Guardei seu telefone com muito cuidado, contudo, no afã de terminar um trabalho cujo prazo já se extinguia, nunca pude convidá-lo para uma entrevista ou algo do tipo. Enfim, nada melancólico. Gullar seria o primeiro a reconhecer que, cantando, o poeta é sem morte.

Leia artigo de Fernando Marques relativo a Ferreira Gullar.

 

 

 

 

 

 

Doutoranda pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Mestra em Artes Cênicas e bacharela em Letras com habilitação em português e inglês pela USP. Desenvolve pesquisa sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no período de exílio latino-americano, atuando principalmente nas áreas: estudos culturais, teoria crítica, história do teatro brasileiro e teatro político.

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