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Artigo

Marionetes e a pluralidade de mundos

A alemã Ilka Schönbein e a brasileira Juliana Notari levam à cena existências outras

18.5.2024  |  por Maria Fernanda Vomero

Foto de capa: Juanjo Palacios

Dia desses, recordei-me de um espetáculo a que assisti já há alguns anos, quando estava no Chile. Eu me encontrava em Coyhaique, uma das cidades contempladas pela 7ª edição do festival de teatro Patagonia en Escena. Fui cativada pelo espetáculo de marionete Chaika, um trabalho da atriz e marionetista chilena Tita Iacobelli, criado em parceria com a também marionetista e diretora belgo-russa Natacha Belova. A peça ─ inspirada em A gaivota, do russo Anton Tchekhov [“chaika”, em russo, significa “gaivota”] ─, leva à cena as angústias e os dilemas de uma atriz madura (a marionete) diante do desafio de interpretar Arkádina pela última vez, confirmando sua despedida dos palcos. Ela sente, no entanto, que já não tem mais a vitalidade ou a memória que o papel exige.

A dramaturgia tchekhoviana discute o embate entre o antigo e o novo, o clássico e o moderno e as distintas perspectivas geracionais. Arkádina é uma atriz consagrada, mãe de Treplev, um jovem escritor apaixonado por Nina, atriz iniciante que se encanta com Trigorin, por sua vez amante de Arkádina e escritor famoso. Em Chaika, uma jovem artista (Iacobelli) contracena com a atriz madura; o espetáculo tece, assim, um delicado relato sobre o fazer teatral, a velhice e as possibilidades da arte. Impressionou-me o apuro técnico de Iacobelli tanto nos solos da velha mulher quanto nos diálogos cênicos entre ambas. Chaika , da Compañía Belova ~ Iacobelli, ganhou prêmios no Chile e no exterior.

Relembrei meu encantamento com esta e outras obras de marionetes ao assistir a vídeos dos trabalhos da marionetista, atriz e dançarina alemã Ilka Schönbein, fundadora do Theater Meschugge (“meschugge”, palavra alemã de origem ídiche, quer dizer “louco”, “maluco”). Não há muitos trabalhos da artista disponíveis nas plataformas online, mas aqueles cujos fragmentos podem ser encontrados parecem ter um poder hipnótico sobre a espectadora e o espectador ─ a exemplo de trechos de Metamorphosen (Metamorfoses, 1993) ou Chair de ma chair (Carne de minha carne, 2006). A simbiose cênica entre Schönbein e as marionetes é instigante. Acompanhamos um jogo coreográfico entre corpos humanos e outros-que-humanos em coexistência.

Humano dilacerado

Cheguei às performances de Schönbein graças ao livro Imagens para rasgar adultos – a morte e o jogo erótico de Ilka Schönbein (Ofícios Terrestres, 2023), da artista e pesquisadora brasileira Thais D’Abronzo, atualmente professora no curso de Artes Cênicas na Universidade Estadual de Londrina. O livro se origina da tese de doutorado da autora, defendida no programa de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas, e é ilustrado por imagens da fotógrafa francesa Marinette Delanné, que desde 1994 registra os trabalhos da artista alemã. Aliás, foi por meio de uma dessas fotos feitas por Delanné e publicada em uma revista francesa que D’Abronzo, nos idos de 2007, “descobriu” Ilka Schönbein.

As criações artísticas contemporâneas e mesmo a produção crítica e teórica sobre as artes vêm incorporando gradativamente perspectivas menos antropocêntricas e mais ‘tentaculares’, como costuma dizer a bióloga e filósofa da ciência estadunidense Donna Haraway. A partir desse ponto de vista, então, as práticas com as marionetes realizadas pela brasileira Juliana Notari e pela alemã Ilka Schönbein talvez possam ser consideradas experiências que contemplam as várias modalidades de existência que se instauram em aliança, tendo o corpo humano e seus sentidos como um território partilhado. Seus processos criativos e artísticos revelam-se campos de cultivo de novas possibilidades de convívio

A análise do trabalho da artista alemã é precedida por reflexões acerca da conceituação da imagem e do erotismo e pela apresentação das linhagens da marionete segundo uma plêiade de autores: Georges Didi-Huberman, Georges Bataille, Gordon Craig, Tadeusz Kantor, Bruno Schulz, Marion Girard-Laterre, entre outros. De acordo com a autora, há algo de infamiliar, sombrio e obsceno (fora de cena, quase monstruoso) nas performances de Schönbein. Quando examina os espetáculos da artista alemã e suas escolhas éticas e estéticas, D’Abronzo mobiliza noções como aparição (Didi-Huberman), corpos-imagens, fantasmagorias ou assombrações, corpo sem órgãos (Antonin Artaud), dançarina doente (Hijikata Tatsumi), corpo esgotado (leitura de Kuniichi Uno para Tatsumi) e esqueletos selvagens (Ilka Schönbein), para citar algumas. Àquelas e àqueles mais familiarizados com a produção teórica das Artes da Cena, esse conjunto de noções fornece pistas bem interessantes.

Ainda que no livro as descrições sobre as performances da artista alemã sejam um tanto abstratas ou difusas, é possível imaginar a relação lúdica e profunda entre Schönbein e as figuras cuja existência ela instaura em cena, usando não apenas marionetes propriamente ditas, mas também próteses ou máscaras (que têm, no rosto da artista, seu molde e se parecem com máscaras mortuárias). A vulnerabilidade do corpo e a morte ─ mais como dilaceramento do humano do que como finitude biológica ─ são recorrentes no trabalho de Schönbein. D’Abronzo destaca a dinâmica entre o jogo erótico e o desvelamento do sombrio nas performances. Deduzo, então, que os processos que acontecem em cena interessam mais à artista alemã que os temas em si, aos quais talvez sempre volte de um modo ou outro. É a experiência da alteridade, esse Outro que parece brotar do próprio corpo de Schönbein, que guia o jogo cênico. Talvez sejam essas as “aparições” que D’Abronzo assinala: as “revelações” da marionete. Aquilo que fica visível quando a marionete ganha presença e agência.

Marinette Delanné Cena do espetáculo ‘Voyage d’hiver’ (Viagem de inverno, 2003), da alemã Ilka Schönbein, marionetista e dançarina que tem sua trajetória analisada em ‘Imagens para rasgar adultos – a morte e o jogo erótico de Ilka Schönbein’ (2023), da professora e pesquisadora brasileira Thais D’Abronzo

O texto termina com o encontro cara a cara entre a pesquisadora e Ilka Schönbein, que se deu em 2017 na cidade francesa de Charleville-Mézieres, durante a 19ª edição do Festival Mundial dos Teatros de Marionetes. Naquele então, após um período distante dos palcos e das ruas, a marionetista alemã voltava com dois espetáculos: um criado e dirigido por ela, Ricdin Ricdon, e outro, Et bien, dansez maintenant (Pois bem, dance agora), no qual também atuava e tinha a companhia de duas artistas responsáveis pela música ao vivo. No penúltimo dia do festival, pesquisadora e marionetista finalmente tomam um chá juntas. O relato do diálogo fragmenta-se ao longo de algumas páginas. Em determinado momento, D’Abronzo comenta que Schönbein às vezes fecha os olhos quando dança com a marionete. A artista parece espantar-se: “Eu fecho os olhos?” Diante da confirmação da pesquisadora, a alemã então afirma: “Para mim o momento mais importante é quando fico em silêncio e a marionete começa…”

Antropocentrismo em xeque

“E a marionete começa…”

Essa frase, que parece ao mesmo tempo estar incompleta e bastar-se em si mesma, traz à baila uma reflexão interessante sobre os efeitos de presença e a mobilização da imaginação que o jogo cênico com as marionetes dispara. Podemos partir do princípio de que o corpo do/a marionetista instaura um corpo outro, o da marionete. Mas isso não se dá ao acaso: trata-se de um percurso criativo, que não envolve apenas técnica e escolhas estéticas, mas também a invenção de novas relações e percepções com a matéria. Um esmiuçamento desse processo é narrado no “livro-festa-manifesto” Pedagogia da Marionete Livre (Edição do autor, 2022), da marionetista brasileira Juliana Notari. Antes, porém, de comentá-lo, gostaria de tecer brevemente algumas considerações a respeito do debate atual sobre o antropocentrismo. Afinal, a centralidade do humano, como denota o radical antrophos, vem sendo posta em xeque.

No campo das humanidades, o questionamento da supremacia conferida à perspectiva antropocêntrica têm permitido a emergência e/ou o reconhecimento de cosmopercepções não hegemônicas e, com elas, de outras maneiras de produzir presença e de se relacionar com o mundo. Esses saberes diversos vêm abrindo a possibilidade de vislumbrar planos de existência e outras subjetividades para além das realidades sólidas e manifestas que a chamada razão ocidental sempre privilegiou. Mesmo que pareça extravagante, escreve o filósofo húngaro-brasileiro Peter Pal Pélbart[1], “o pensamento contemporâneo tende a admitir múltiplos feixes de experiência ou de sentires (feelings, conforme o conceito de Whitehead[2]), bem como maneiras de ser diversas, segundo uma pluralidade de mundos”. Por isso, Pélbart defende uma arte de instaurar modos de existência que “não existem” – entre aspas, pois não existem para quem? – a fim de que possamos superar a ideia de um único e genérico modo de existir, ideia que persiste como estratégia mercadológica e expressão de um pensamento ainda colonial e colonizador, excluindo subjetividades divergentes, incompreensíveis, incompreendidas, não catalogadas etc.

A expressão “modos de existência” (ou de existir), segundo Pélbart, tanto pode referir-se “a uma maneira de viver dos ditos humanos (por exemplo, modo ativo ou reativo, nobre ou vulgar, afirmativo ou negativo, cheio ou vazio, majoritário ou minoritário)” quanto “aos modos de existir dos seres com os quais esses mesmos humanos têm um comércio íntimo (seres fenomênicos, solicitudinários, virtuais, invisíveis, possíveis ou, para usar uma outra série, espíritos, deuses, animais, plantas, forças etc.)”. Na sequência, o filósofo menciona uma citação do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro[3]: “A diversidade dos modos de vida humanos é uma diversidade dos modos de nos relacionarmos com a vida em geral, e com as inumeráveis formas singulares de vida que ocupam (informam) todos os nichos possíveis do mundo que conhecemos”. Outras contribuições para esse instigante debate podem ser encontradas no pensamento de nomes como Ailton Krenak, Bruno Latour, Donna Haraway, Isabelle Stengers, Marisol de la Cadena e Vinciane Despret, para citar algumas e alguns.

Transformação da matéria

Levando em conta o viés da pluralidade de mundos e modos de existir, retomo o livro de Juliana Notari mencionado anteriormente, Pedagogia da Marionete Livre. Logo no início, Notari afirma: “A marionete não é somente um objeto que deve ser manipulado, não possui essa passividade intrínseca que habita o imaginário e o vocabulário limitado”. Mais adiante, acrescenta: “Reivindico a marionete como ideia de liberdade criativa, de emancipação, como ato transgressor de mutação da matéria, de exageração da prática poética. Não se trata de fios, varas, luvas. É a matéria em movimento, é o cinetismo da vida em si, do gesto de pulsar com tudo que nos rodeia”. A meu ver, a Pedagogia da Marionete Livre – essa prática afetiva de criação da e com a marionete, desenvolvida por Notari – é um processo artístico que visa instaurar existências que ainda não existem por meio da relação que se estabelece entre corpos: o da/o marionetista e o da marionete.

O livro é resultado de um projeto comemorativo, contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural, dos mais de vinte anos de exercício criativo e pedagógico da artista com o movimento batizado de “Marionete Livre”. Na obra, Notari combina relatos autobiográficos com uma exposição generosa da metodologia que tem desenvolvido ao longo da trajetória como marionetista. Comenta também as experiências vividas durante a residência artística para o projeto Velhas Caixas, em casas de repouso na França no ano de 2010, cujo resultado foi a criação de cinco espetáculos. Imagens de oficinas, marionetes e peças oferecem um percurso visual complementar.

Juanjo Palacios A artista, marionetista, diretora, dramaturga e pedagoga Juliana Notari em ‘Habitada’ (2018), obra cênico-musical cuja dramaturgia ambiciona uma espiral no tempo-espaço como um parto de um corpo lotado de brechas e espasmos; ela é autora do livro ‘Pedagogia da Marionete Livre: festa-manifesto’ (2022); vale observar que a paulista Juliana Notari é a mesma grafia do nome de uma artista visual pernambucana

Para compreender o universo em torno da marionete, como a própria artista escreveu numa das citações destacadas acima, é preciso ampliar tanto o imaginário quanto o vocabulário. No texto de Notari, alguns termos revelam-se chaves, como indícios importantes para que se dê o acontecimento, isto é, o “começar” da marionete: matéria, drama, corpo, contração, expansão, disponibilidade, cinética, intenção, vida, morte, transformação e interdependência. Segundo a autora, o/a artista deve primeiramente reconhecer-se como corpo ativo, presente e pulsante, para então identificar a pulsação naquela ─ a marionete ─ que poderia ser tomada apressadamente como mero e subserviente objeto.

Não há nada místico ou etéreo na Pedagogia da Marionete Livre: Juliana Notari parte da concretude das coisas ─ ou seja, da matéria ─ para propor uma atitude criadora, criativa e interrelacional a fim de instaurar existências (não em uma acepção biológica, obviamente, mas em outras possíveis e variadas: filosófica, artística, afetiva etc.) e estabelecer uma poética da comunicação por meio dos sentidos. Nada mais afinado com o pensamento contemporâneo ─ simpoeisis: fazer com, fazer junto[4]. Aquilo que é, a princípio, abstrato e selvagem vai ganhando forma; a matéria respira, logo passa a existir: para Notari, aí acontece a passagem da morte à vida (novamente, não em uma acepção biológica).

Especialmente instigantes são as passagens nas quais a artista brasileira relata a escolha dos materiais para a fabricação das marionetes. As coisas são per se matérias dramáticas, ao carregarem histórias, memórias e/ou questões políticas e poéticas, conformam a pele e a substância singular das personagens: tecidos diversos ─ como um vestido de noiva de brechó francês ─, folhas secas de plantas usadas em rituais de cura, cartas antigas, saquinhos de chá, coadores de café, cabelos, papelão descartado etc. Misturados a fibras naturais e cola branca solúvel em água, os materiais são moldados em um processo de descoberta e diálogo com ritmo próprio.

A artesania dos olhos é a etapa final da fabricação da marionete. Já se trata de um ser em vias de existir, em estado de latência de vida, como diz a autora. Os olhos permitem olhares ─ e por isso o cuidado nesta etapa. O olhar da marionete será o disparador de sua comunicação com o mundo, a despedida de uma condição inanimada e o acolhimento em outra, cinética, de produção de presença. O olhar antecede o gesto e o condiciona ─ na marionete e na marionetista. Em seguida, o coração ─ feito simbolicamente de algo íntimo, um pedacinho de roupa, unhas ou um pouco de cabelo, por exemplo ─ passa a pulsar com micromovimentos (quase como resposta aos sentidos da marionetista), indicando quais serão as possibilidades motoras da marionete e sua forma de expressão.

Perspectivas tentaculares

Não sei se Juliana Notari conhece o trabalho de Ilka Schönbein; em seu livro comemorativo, a brasileira infelizmente não comenta sobre suas influências artísticas ou cênicas. Tampouco sei sobre o processo de manufatura de marionetes utilizado por Schönbein, tópico que pouco aparece no livro escrito por Thaís D’Abronzo. Porém, imagino que existam pontos de semelhança entre os processos criativos das duas artistas, no que tange à manufatura das marionetes e à interação técnica e afetiva com elas. Nos dois casos, as marionetes ganham existência em vínculo estreito com o corpo das marionetistas, mas sem perder sua singularidade; trata-se, para trazer à baila mais um conceito presente nas teorias contemporâneas, da formação de “alianças”.

Marinette Delanné Cena de ‘Métamorphoses’ (Metamorfoses, 1993), criação de Ilka Schönbein que ganhou versões para a rua e para o palco e faz parte do repertório de sua companhia, a Theater Meschugge (Teatro Louco), em atividade desde 1992

A cena artística também reverbera os debates multidisciplinares sobre o chamado Antropoceno em consonância com as premissas de um pensamento assumidamente anticolonial. Pesquisadores e pesquisadoras avaliam se é possível precisar quando e como o impacto das ações humanas nos ciclos naturais e nas dinâmicas do planeta teria culminado em uma nova época na escala do tempo geológico da Terra ─ a definição de Antropoceno ─, dada a irreversibilidade de muitos processos; as mudanças climáticas, por exemplo. Segundo um paradigma puramente geológico, talvez não seja possível formalizar o início exato de uma era caracterizada pela influência da atividade humana no sistema planetário; isso não significa, contudo, que tais repercussões não tenham sido ou não continuem sendo agressivas ou nocivas. Cientistas de distintas áreas afirmam: urge que repensemos nossas formas de compreender o mundo e estar nele ─ em especial, porque vivemos em relação de interdependência com outras formas de vida. Para isso, é preciso que confrontemos continuamente a ainda perseverante lógica colonial, que pressupõe a superioridade de uns e umas (vidas, modos de existência, saberes, grupos etc.) em relação a outros e outras.

A bióloga e filósofa da ciência estadunidense Donna Haraway tem destacado em suas publicações mais recentes a importância de um pensamento especulativo e fabular a fim de ampliar as potencialidades imaginativas ─ vislumbrar outros futuros e futuros outros que não o do colapso planetário ─ e a criação de “refúgios” (não só na acepção ecológica) que possam garantir a sobrevivência dos seres e de seus modos de existir sem a imposição das categorias humanas, isto é, que existam nos seus próprios termos. Para isso, Haraway propõe a criação de alianças entre humanos e outros que humanos como expressões de parentescos não convencionais. Inclui-se nesses elos solidários e simpoiéticos também o universo não vivo ─ montanhas, vento, sol, rios etc. ─, dotado de um modo de existir próprio segundo as cosmopercepções de povos originários.

As criações artísticas contemporâneas e mesmo a produção crítica e teórica sobre as artes vêm incorporando gradativamente perspectivas menos antropocêntricas e mais “tentaculares”, como costuma dizer Haraway. A partir desse ponto de vista, então, as práticas com as marionetes realizadas por Juliana Notari e por Ilka Schönbein talvez possam ser consideradas experiências que contemplam as várias modalidades de existência que se instauram em aliança, tendo o corpo humano e seus sentidos como um território partilhado. Seus processos criativos e artísticos revelam-se campos de cultivo de novas possibilidades de convívio. “A marionete pode se embrenhar em qualquer que seja o espaço de troca e criação, desde fábricas, escolas, casas de repouso, ocupações, até a nossa intimidade”, escreve Notari. “Ela pode ser a ponte para a transformação de um sistema que está baseado na normalidade e em formatos fechados de existência, que excluem a diversidade e a pluralidade.” (Eu ressaltaria que se trata de uma “suposta normalidade” ou uma “normalidade convencionada”).

Diante das fabulações que se instauram em cena (novos mundos, existências outras, experiências de alteridade), estamos nós ─ espectadoras e espectadores. A recepção (ou expectação) tem um papel crucial na conformação dos sentidos criados/propostos cenicamente. No caso dos trabalhos com marionetes, o efeito de presença gerado também depende daquelas e daqueles que assistem. “O que costumamos ver confirma o que somos”, escreveu o crítico de arte e escritor inglês John Berger[5]. Vivemos em constante troca com o conjunto de aparências à nossa volta, geralmente familiares e cotidianas, vez ou outra inesperadas ou novas. Pode acontecer, contudo, que vislumbremos repentinamente “uma ordem visível diferente, em intersecção com a nossa, mas que não tem nada a ver com ela”. Para Berger, a ordem visível a que estamos habituados não é a única; ela coexiste com outras. Esse vislumbre que Berger comenta pode indicar o acesso a visibilidades que se encontrem fora da ordem humana; “interstícios” é o termo que ele usa. Assim, seguindo o fio da reflexão proposta até aqui, talvez o trabalho com marionetes ─ o de Ilka Schönbein e o de Juliana Notari, por exemplo ─ propicie a ampliação da ordem visível com a qual estamos acostumadas ou acostumados e “abra” a cena a outros modos de existir. Na cena coletiva, ou seja, no espaço cotidiano de convívio sociopolítico, o vislumbre de outras presenças ─ aquelas que ainda não existem ─ pode, quem sabe, finalmente incentivar o reconhecimento e a aceitação das relações de interdependência que nós, humanas e humanos, cultivamos com outros seres e coisas, visíveis e invisíveis, iguais a nós ou totalmente diferentes. Afinal, para que estejamos bem, tudo e todos também precisam estar bem.


[1] PELBART, Peter Pál. A arte de instaurar modos de existência que ‘não existem’. Em: Como falar de coisas que não existem. São Paulo: Bienal de São Paulo, 2014, pp. 250-265.

[2] O filósofo e matemático britânico Alfred North Whitehead (1861-1947), referência para muitos pesquisadores contemporâneos.

[3] Apud SZTUTMAN, Renato (org.), Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2008, p.256 (col. Encontros).

[4] Ver HARAWAY, Donna. Ficar com o problema: fazer parentes no Chthluceno (n-1 edições, 2023; trad. Ana Luiza Braga).

[5] BERGER, John. Por que olhar para os animais? (Fósforo, 2021; trad. Pedro Paulo Pimenta).

Michael Gálvez A atriz e marionetista chilena Tita Iacobelli em ‘Chaika’ (2018), criada em parceria com a marionetista e diretora belgo-russa Natacha Belova a partir da peça ‘A gaivota’, do russo Anton Tchekhov

Livros-base para o ensaio

Imagens para rasgar adultos – a morte e o jogo erótico de Ilka Schönbein

Thais D’Abronzo

Campinas: Ofícios Terrestres, 2023

292p.

Livro esgotado. Está prevista segunda edição ainda em 2024.

*

Pedagogia da Marionete Livre: festa-manifesto

Juliana Notari

São Paulo: Edição do Autor, 2022

144p.

Em 18 de maio, no site Estante Virtual, havia 3 exemplares à venda em sebos com preços de R$ 40 a R$ 48.

Jornalista, performer e doutora em pedagogia do teatro pela Universidade de São Paulo (USP), com uma investigação sobre artes cênicas, processos artísticos e experiência política na América Latina. No mestrado, debruçou-se sobre as experiências teatrais realizadas na Palestina. Tem especialização em Documental Creativo pela Universitat Autònoma de Barcelona (UAB). Atua como provocadora cênica em diversos coletivos da cidade de São Paulo. Foi curadora das ações pedagógicas da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp, 2015-2020). Autora e intérprete de conferências performáticas, apresentadas na capital paulista, em Santiago (Chile) e em Oaxaca (México). Instagram: @_mafeentrelivros

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