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Artigo

Nexo político e popular em César Vieira

92 anos de vida, 57 de TUOV

25.10.2023  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Graciela Rodriguez

No intervalo de três meses e meio o teatro nacional se despediu de artistas vitais na fundação de dois de seus grupos há mais tempo em atividade na capital paulista: o Oficina/Uzyna Uzona de José Celso Martinez Corrêa, morto em julho, aos 86 anos, então prestes a completar 65 de trabalho artístico continuado, e o Teatro União e Olho Vivo, o TUOV de César Vieira, que morreu na segunda (23), aos 92 anos e 57 de caminhada coletiva.

Ambos os grupos tiveram origem no contexto da prática amadora estudantil junto ao Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, respectivamente em 28 de outubro de 1958 e 27 de fevereiro de 1966. Portanto, atravessaram os 21 anos de ditadura civil-militar (1964-1985), a veloz virada de milênio e os regressivos quatro anos de governo de extrema direita no país, até dezembro passado, para ficar em três momentos na linha da história.

Vieira estava internado havia cerca de três meses no Hospital Beneficência Portuguesa – Mirante, no bairro da Bela Vista, em razão de pneumonia, doença que causou a morte somada à septicemia e hipertensão arterial.

Segundo a artista multimeios Graciela Rodriguez, diretora de arte do TUOV e com quem ele vivia há mais de 30 anos, Vieira angustiava-se ultimamente com as notícias de guerra envolvendo Rússia e Ucrânia, assim como, com menos intensidade devido à saúde, o conflito Hamas versus Israel na Faixa de Gaza, um massacre ao povo palestino. Diante do cenário global, costumava evocar a filosofia do líder pacifista indiano Mohandas Gandhi (1869-1948), também advogado, que costumava ser chamado de “Mahatma” ou “Grande Alma”, exaltação que o mesmo rejeitava.

Visitar ideias e criações de Vieira em consonância com parceiras e parceiros de TUOV permite constatar o empenho permanente do diretor e dramaturgo em fazer com que a forma popular expresse uma visão política de mundo. A realidade sociopolítica e econômica de 1966, segundo ano de vigência do regime militar e a três anos do Ato Institucional número 5, o AI-5, amplificador da violência de Estado, era muito distinta do panorama de redemocratização em meados da década de 1980, com todas as contradições da chamada anistia.

Tornaram-se conhecidos os modos de organização e produção envolvendo integrantes que trabalham em outras áreas e dedicam horas semanais ao teatro. Ou seja, pessoas não necessariamente com formação em artes cênicas: operário, bancário, professor, advogado, jornalista, biólogo, estudante, artista plástico, enfermeiro, comerciário, sindicalista etc.

Morto na segunda (23), aos 92 anos, César Vieira aprimorou uma gramática expositiva da realidade junto ao TUOV. Soube mediar o cotidiano dos trabalhadores, de comunidades vulnerabilizadas, dos desvalidos. A dimensão popular não é retórica, ela brota na métrica, no modo de narrar, de atuar, de alegorizar, de criticar, de evoluir como num cortejo – aliás, procedimento vinculado à pratica de levar espetáculos a espaços os mais díspares possíveis, do tablado frontal, à italiana, aos espaços multiuso ou não convencionais, passando pelos lugares ao ar livre, como praças, parques e quadras esportivas em estabelecimentos públicos, sobretudo nas regiões periféricas

São determinantes ainda em diferentes esferas do TUOV finalidades como a da “capoeira cultural”, em que os movimentos de ginga e de esquiva desse jogo remontam à sabedoria de escravizados bantos ao atacar ou defender-se. Da “tática Robin Hood”, de cobrar cachê para apresentações em espaços convencionais ou institucionais a fim de subsidiar sessões em áreas descentralizadas e assim alcançar públicos que não podem pagar. E do “clube de futebol de várzea”, a emular manifestações da vida comunitária como o compromisso nos fins de semana, a disciplina técnica e o pro-ativismo.

Gradativamente, essas estratégias sofreram algum nível de adaptação, à medida que as cenas contemporâneas e seus públicos, assim como a cidade e sua gente, sofreram transformações com a passagem do tempo.

Quando o TUOV e demais grupos da cidade de São Paulo passaram a pleitear o apoio do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, a partir de 2002, isso decerto impactou os custos para estruturação da equipe e manutenção do galpão/quintal/território no bairro do Bom Retiro, região central, onde está assentado desde 1982.

Aliás, o diretor do TUOV foi uma das vozes interlocutoras nas reuniões do movimento Arte contra a Barbárie, no final dos anos 1990, quando a reflexão sobre a mercantilização da arte convergiu grupos e personalidades da cultura a idear e articular uma lei que fomentasse a pesquisa do teatro de grupo. E assim foi, em rara conjunção política numa Câmara Municipal de São Paulo à beira do recesso de fim de ano dos vereadores.

Já o campo da criação no TUOV é bastante associado ao procedimento coletivo, em que pessoas responsáveis por diferentes funções são propositivas acerca das áreas umas das outras. Nessa troca amadurecida ao longo de décadas, nota-se a prevalência de Vieira na consolidação e consequente assinatura final das dramaturgias. Traço comum, por exemplo, à trajetória do ator, diretor e dramaturgo colombiano Santiago García (1928-2020), do Teatro La Candelária, grupo nascido em Bogotá no mesmo ano do TUOV em São Paulo, 1966.

Graciela Rodriguez Sentados, Neriney Moreira (com coroa) e César Vieira, cofundadores do Teatro União e Olho Vivo, o TUOV, durante ensaio com a equipe criadora do espetáculo ‘Bom Retiro meu amor – ópera samba’ (2018)

Dentre as emblemáticas escritas para a cena de Vieira podem ser citadas O evangelho segundo Zebedeu (1969), dramatização da Guerra de Canudos (1896-1897) que entrecruza Cristo e Antônio Conselheiro; Barbosinha futebó crubi – uma estória de Adonirans (1991), conjunção da paixão nacional pelo esporte com o universo das composições de Adoniran Barbosa; Us juãos i os magalis – chegança de marujos (1996), sobre a tentativa de invasão estrangeira ocorrida no início do século XX e chefiada por um jovem visionário gaúcho, Sebastião Magali, no litoral sul da Bahia; e João Cândido do Brasil – A revolta da chibata (2000), recriação do levante de 1910 dos marinheiros, em sua maioria negros, liderados pelo gaúcho João Cândido Felisberto (1880-1969), contra os castigos físicos impostos pela oficialidade, numa demonstração de que a mentalidade escravista tem raízes fortes na elite brasileira.

Saltando para uma das criações recentes, em crítica a partir de Bom Retiro meu amor – ópera samba (2018) observei que o TUOV fornece respostas poéticas a questões que outros grupos ou companhias também se fizeram ao assumir uma prática artística de ambição popular. O musical decanta as memórias coletivas através de trechos de alguns de seus espetáculos e da investigação sociológica de seu território.

O roteiro joga com as rememorações de Neriney Moreira, ator e cofundador do grupo, num misto de antologia e denúncia. Ali, o texto de Vieira e a atuação inscrita no corpo de Moreira constituíam alicerces humanistas do que sonharam contracenar com a sociedade quando, em 1966, deram os primeiros passos no atalho artístico ao direito com Luiza Barreto Leite, Paulo Gerab, Sergio Pimentel, Miguel Aldrovando Aith, José C. Rstom e outros nomes. A maioria trilhou a advocacia, mas houve quem elegesse o teatro para a vida. Ou quem conciliasse as áreas, como o teatreiro César Vieira e o advogado Idibal Almeida Pivetta, este nascido em Jundiaí (SP) em 28 de julho de 1931.

Além do elenco remoçado em Bom Retiro meu amor – ópera samba, uma das âncoras dessa montagem foi a parceria de César Vieira com o diretor Rogério Tarifa (Cia. São Jorge de Variedades e colaborador em diferentes núcleos artísticos), que tem se notabilizado por procedimentos épicos à maneira de “atos-espetáculos”, obras categóricas no atravessamento da função pública da arte. Ou seja, a perspectiva comunitária, que também diz respeito aos grupos latino-americanos, jamais perde de vista a sua escala do quintal para o universal, do bairro para a cidade, desta para o Estado, deste para o país, deste para o globo terrestre.

Tarifa e Cesinha Pivetta, artista e filho do dramaturgo, conduziram os preparativos para o velório na sala multiuso do TUOV, de segunda (23) para terça (24), bem como compartilharam a fala final na despedida. “Como um padre, mas um padre artista, a nossa religião é o teatro e somos nós que temos a vocação de encaminhar a alma desse amigo de ofício”, disse Tarifa. O corpo de Vieira foi levado para o Crematório Vila Alpina.

De volta à análise de Bom Retiro meu amor – ópera samba: “Bairro fabril cujos paroxismos do passado ajudam a entender os fios soltos do comércio e da produção de roupas nas brechas da economia que faz vistas grossas à exploração de mão de obra, o Bom Retiro é contado e versado pelo grupo que mora no pedaço desde 1982, quando tinha 16 anos. O TUOV dispõe fatos e elabora ficções por um futuro mais justo – a rigor, a mesma sina de origem que o levou a denunciar processos de escravização nos estágios do capitalismo lá no século XX e agora no XXI”, escrevi, em fevereiro de 2020.

Graciela Rodriguez Os codiretores Rogério Tarifa e César Vieira no intervalo de ensaio de ‘Bom Retiro meu amor – ópera samba’, no espaço do grupo

É impossível entrar em contato com a memória e o presente sem considerar, justamente, a perspectiva histórica, especialmente a travessia do TUOV no período ditatorial. Pivetta advogou para presos políticos e Vieira foi, ele mesmo, preso político, como relatou a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), órgão oficial da Presidência da República. Em 6 de maio de 1973, ele e dois integrantes do grupo, Roberto Cunha Azzi e Tânia Mendes, foram detidos por envolvimento com organizações consideradas subversivas, o Movimento de Libertação Popular (Molipo) e a Ação Libertadora Nacional (ALN). Vieira encontrava-se no Presídio do Hipódromo, no bairro Bresser – mesmo local em que, desativado, o Teatro da Vertigem encenaria Apocalipse 1,11 em 2000 –, quando foi solto em 11 de julho do mesmo ano, 66 dias depois, conforme dados oficiais reproduzidos no livro Em busca de um teatro popular, de sua autoria, principal fonte da trajetória do TUOV, como se lerá mais adiante.

O repertório avançou nesses anos todos a contrapelo da desmemória, essa doença infectocontagiosa que corrói os erros que não deveriam se repetir. Denunciar as agruras de viver sob as doutrinas do neoliberalismo econômico que perpetua injustiças não implicou, obviamente, abrir mão da qualidade artística.

César Vieira aprimorou uma gramática expositiva da realidade, soube mediar o cotidiano dos trabalhadores, de comunidades vulnerabilizadas, dos desvalidos. A dimensão popular não é retórica, ela brota na métrica, no modo de narrar, de atuar, de alegorizar, de criticar, de evoluir como num cortejo – aliás, procedimento vinculado à pratica de levar espetáculos a espaços os mais díspares possíveis, do tablado frontal, à italiana, aos espaços multiuso ou não convencionais, passando pelos lugares ao ar livre, como praças, parques e quadras esportivas em estabelecimentos públicos, sobretudo nas regiões periféricas.

É dessa vontade-mutirão que provém a força-motriz das gerações que se achegaram à sede do TUOV. Da mesma maneira, é alentador constatar como dramaturgias de Vieira foram encenadas por outros coletivos, mapeando as influências e releituras, como nas proposições da Brava Companhia (SP) em Corinthians, meu amor (1967), em espaço não convencional, e da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS) em A saga de Canudos, adaptação ao teatro de rua de O evangelho segundo Zebedeu.

Na mesma crítica a Bom Retiro meu amor – ópera samba, recorri a inquietudes lançadas no 1º Seminário de Teatro Independente que o TUOV ajudou a realizar em São Paulo, em 1976, na Fundação Getúlio Vargas. Na ocasião, foram veiculadas provocações como:

– O teatro popular feito para um público não popular continua sendo popular?

– Em sua opinião, é possível existir um conteúdo popular numa forma burguesa, ou vice-versa?

– Considera compatíveis qualidade artística e facilidade de entendimento por uma plateia popular?

Enunciados que hoje podem até soar anacrônicos, mas preservam sua margem reflexiva de provocação.

Uma das premissas do grupo consiste em documentar muito bem a sua experiência. Para tanto, seu principal veículo tem sido as sucessivas edições do livro Em busca de um teatro popular, organizado por Vieira e equipe. Foi publicado pela primeira vez em 1977 e está na 6ª edição, sempre atualizado, impresso e distribuído com recursos próprios.

Na 5ª edição (2015), obtida no contexto do Programa Municipal de Fomento ao Teatro, lemos Neriney Moreira detalhar no artigo O porquê do nome artístico César Vieira, de 2003: “O codinome César Vieira foi um estratagema adotado para escapar à arbitrária censura que vigorava nos anos de chumbo e que proibia, sem sequer ler, todas as obras que traziam a assinatura do defensor de presos políticos Idibal Pivetta”.

Graciela Rodriguez Vieira encontra o diretor e dramaturgo Augusto Boal na sede do Teatro do Oprimido, no Rio de Janeiro, no final da década de 1990

Já no depoimento Arte e dignidade no TUOV, escrito em 2006, o diretor e dramaturgo Augusto Boal (1931-2009) elabora acerca de “coerência política e excelência artística” no trabalho do grupo e, consequentemente, de César Vieira, de quem foi professor de dramaturgia. E testemunhou o quanto assumiu riscos e enfrentou perigos:

Tanto quanto centenas de outros dos seus amigos, eu atesto sua coragem: estava eu exilado em Buenos Aires, para onde fui banido em 1971; o consulado brasileiro, obedecendo ordens, recusou-se a revalidar meu passaporte, em 1976, ano cruento. Avançavam ditaduras, aqui e por boa parte da América Latina, e eu não podia ficar por lá, nem podia voltar. Destemido, o dramaturgo César Vieira assumiu-se cidadão Idibal Pivetta, advogado, e processou o então ministro da injusta Justiça da ditadura.

Poucos teriam coragem de fazê-lo. Ele o fez, e venceu: o ministro foi obrigado a renovar meu passaporte – peguei o primeiro avião para a Europa e por lá fiquei por mais dez anos!

Em contatos jornalísticos com César Vieira desde os anos 1990, sempre chamou a atenção o seu entusiasmo em trabalhar com o teatro. Era patente a alegria de criar, de encontrar na forma popular o nexo político em arte.

Graciela afirma que costumava recitar para César Vieira, em espanhol, o poema Te quiero, do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), conterrâneo dela:

Te quiero

Si te quiero es porque sos

Mi amor, mi cómplice y todo

Y en la calle, codo a codo

Somos mucho más que dos

Somos mucho más que dos

Tus manos son mi caricia

Mis acordes cotidianos

Te quiero porque tus manos

Trabajan por la justicia

Si te quiero es porque sos

Mi amor, mi cómplice y todo

Y en la calle, codo a codo

Somos mucho más que dos

Somos mucho más que dos

Tus ojos son mi conjuro

Contra la mala jornada

Te quiero por tu mirada

Que mira y siembra futuro

Tu boca que es tuya y mía

Tu boca no se equivoca

Te quiero porque tu boca

Sabe gritar rebeldía

Si te quiero es porque sos

Mi amor, mi cómplice y todo

Y en la calle, codo a codo

Somos mucho más que dos

Somos mucho más que dos

Y por tu rostro sincero

Y tu paso vagabundo

Y tu llanto por el mundo

Porque sos pueblo, te quiero

Y porque amor no es aureola

Ni cándida moraleja

Y porque somos pareja

Que sabe que no está sola

Te quiero en mi paraíso

Es decir que en mi país

La gente viva feliz

Aunque no tenga permiso

Si te quiero es porque sos

Mi amor, mi cómplice y todo

Y en la calle, codo a codo

Somos mucho más que dos

Y en la calle, codo a codo

Somos mucho más que dos

Acervo pessoal César Vieira, a diretora de arte Graciela Rodriguez e o ator Oswaldo Ribeiro em encontro na residência dela e do dramaturgo, em 19 de fevereiro de 2023
Chris Ameln Lucas Pivetta, de nome artístico Cesinha Pivetta, ao lado do pai César Vieira na exposição ‘TUOV – História e resistência’, no Centro Cultural São Paulo, em 2019
Graciela Rodriguez Vieira na sede do TUOV, no Bom Retiro, em novembro de 2021
Graciela Rodriguez Vieira troca mimos com o ator Aílton Graça após uma apresentação no galpão do grupo, em 9 de junho 2018
Graciela Rodriguez Artistas da Companhia Estudo de Cena durante o cortejo ‘Rastro vermelho’ no quintal do TUOV, em julho de 2019
Graciela Rodriguez A ação do cortejo cênico musical da Estudo da Cena enterra uma cápsula do tempo em locais que cultivam a memória e a cultura da resistência popular, como aconteceu no território do TUOV em 2019

No vídeo a seguir, César Vieira dialoga com o ator, diretor e dramaturgo Reinaldo Maia (1954-2009) no projeto Conversas Folianescas, sob direção de Zeca Rodrigues. O encontro no Galpão do Folias, sede do grupo Folias d’Arte, foi gravado em meados da década de 2000.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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