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Crítica

A perpetuação da ausência

19.3.2017  |  por Daniel Schenker

Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena

Na encenação de Branco: o cheiro do lírio e do formol, apresentada dentro da programação da 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), Alexandre Dal Farra propõe uma conjugação aparentemente imprevisível entre o tortuoso processo de criação dramatúrgica e a intrincada relação pai/filho.

Algumas cenas do espetáculo realçam essa conexão: um ator comenta que terminou de escrever uma das versões do texto no dia em que o pai voltou a ser internado para tratamento de um câncer; a atriz conta que, no momento em que se encontra ao lado do pai no hospital, recebe a notícia de que o projeto de montagem do texto está evoluindo; um ator fala sobre a morte do pai, enquanto os outros dois queimam a peça.

Os conflitos na esfera profissional (a concepção do texto) e no âmbito pessoal (o vínculo pai/filho) fazem com que os atores se conscientizem de seus comprometimentos com uma determinada problemática (no caso, o racismo) e com elos afetivos obstruídos.

Tanto o relato autêntico quanto a atuação artificial decorrem de interpretações da realidade e não da oposição entre a captação fidedigna e o falseamento da mesma

Os atores negam o texto ao queimá-lo. Não se cansam, porém, de produzir novas versões com o intuito de expressarem com precisão aquilo que desejam dizer. A morte do pai não significa necessariamente finitude. Ao contrário, ele pode se perpetuar – “na presença de um cadáver, de alguém que não está mais lá”, como afirmam em dado instante. Assim, Branco: o cheiro do lírio e do formol aborda questões contundentes sem impor uma leitura definitiva para elas. A morte pode se tornar eternização de uma ausência. O texto pode renascer sob outra perspectiva. Por mais que as situações apontem nesse sentido (a morte – do pai ou do texto), o espetáculo lança a possibilidade do contrário.

Dal Farra, que acumula funções – dramaturgia, direção (com Janaína Leite), cenário e figurinos (nos dois quesitos, em parceria com os atores) –, concilia extremos. Essa articulação é potencializada pelos modos diversos como trabalha com os planos – em especial, o da sugestão de registro documental, na qual os atores portam a primeira pessoa, e o da evidenciação do ficcional, nas passagens em que surgem como integrantes de uma família – da encenação.

Os atores (André Capuano, Clayton Mariano e Janaína Leite) transitam entre a interpretação invisível, contida, da narração confessional e a composição acentuada, caricata, dos personagens (pai, filho e tia) de uma família emocionalmente arruinada, fim de linha. Mas tanto o relato autêntico quanto a atuação artificial decorrem de interpretações da realidade e não da oposição entre a captação fidedigna e o falseamento da mesma.

Guto Muniz/Foco in Cena

Janaína, Capuano (esq.) e Mariano

Afinal, quando parecem confessar experiências pessoais, os atores mais embaralham identidades do que se mostram transparentes. Capuano, Mariano e Leite dão continuidade uns aos depoimentos dos outros, mais unificando do que particularizando os discursos. Suscitam no público a dúvida sobre a autoria das vivências descortinadas. Os atores/autores também não individualizam os relatos (apesar de falarem individualmente) sobre a insistência na formulação de novas dramaturgias diante da crescente insatisfação com os resultados alcançados.

Enquanto resistem a se reconhecerem como constituídos pelo racismo, eles descartam os materiais existentes, queimando ou simplesmente jogando fora, a julgar pela grande quantidade de folhas espalhada de forma caótica pelo chão.

Branco: o cheiro do lírio e do formol lembra outra encenação presente na MITsp – a chilena Mateluna, dirigida por Guillermo Calderón. A montagem de Calderón evoca espetáculos anteriores, considerados inconclusos diante da tentativa de desvendar os acontecimentos ligados à prisão do militante Jorge Mateluna. A de Dal Farra destaca o material rejeitado, abortado antes de chegar ao público, durante todo o percurso realizado para abordar o racismo.

Não por acaso, há no espetáculo de Dal Farra uma aparência de esboço, sublinhada pelo cenário, formado por elementos (tapete de grama parcialmente desenrolado, carcaça de sofá, mesa repleta de garrafas e com laptop, tela, geladeira, cabine com chapéus, mala, bicicleta) dispostos de maneira intencionalmente desordenada no espaço, e pelos figurinos mais do que sintéticos. Em Branco: o cheiro do lírio e do formol, o inacabado se impõe como escolha e não como insuficiência. Não é uma proposta inédita, tendo em vista que marcou muitas montagens nas últimas décadas, mas essa constatação não diminui a pulsação de um teatro como o de Dal Farra, no qual o rascunho é a arte final.

O domínio dessa cena poluída se deve à integração entre os artistas, pertencentes ao grupo Tablado de Arruar e responsáveis (Dal Farra e Leite) por um trabalho filiado à vertente do Teatro Documentário, Conversas com meu pai, que provavelmente influenciou na concepção dessa nova empreitada.

Equipe de criação:

Autoria: Alexandre Dal Farra

Direção: Alexandre Dal Farra e Janaina Leite

Com: André Capuano, Clayton Mariano, Janaina Leite

Concepção cênica, cenário e figurinos: Alexandre Dal Farra, André Capuano, Clayton Mariano e Janaina Leite

Direção de arte: Melina Schleder

Luz: Daniel Gonzáles

Sonorização: Miguel Caldas

Provocadores do processo: Eugênio Lima, José Fernando de Azevedo e Mawusi Tulani

Produção: Alexandre Dal Farra, Gabriela Elias e Janaina Leite

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.

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