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Crítica

A claustrofobia da dor

26.4.2017  |  por Afonso Nilson

Foto de capa: Cristiano Prim

O bailarino Diogo Vaz Franco e a coreógrafa Elke Siedler, em sua pesquisa sobre a dor em Oscar Wilde, mais especificamente a partir do texto epistolar De profundis, nos trazem uma metáfora sobre o tempo e seu fluxo como referência ao sofrimento. Não há uma narrativa, não há um personagem, não há alusões ao período em que Wilde ficou preso por sodomia e “comportamento indecente” na conservadora Londres do final do século XIX. Mas há no espetáculo de dança contemporânea Recluso a dor em sua latência, em sua contínua expansão dentro do espaço, em seu fluxo que soçobra as linearidades narrativas em direção a uma dramaturgia construída por estados.

A opção por procedimentos performáticos é uma constante na obra coreográfica de Elke Siedler. A partir de sua saída do grupo Cena 11 e criação da Siedler Cia. de Dança, em 2003, a pesquisa sobre as intersecções entre dança, performance e multimídia se intensificam em seus espetáculos. Os recentes Recluso e Rec(L)usadax, ambos de 2016, ampliam esse escopo tratando das relações de vínculo e afetividade na contemporaneidade e encarceramento.

É visceral a potência dolorosa com que Diogo Vaz Franco dança no quase silêncio; ‘Recluso’ é claustrofóbico e angustiante

Em Recluso, a ambientação sonora claustrofóbica de Nelson-d e a penumbra geométrica construída pela iluminadora Priscila Costa dão ao espetáculo a sensação de algo em suspenso, mas com um “peso” que dialoga com a performance do bailarino, que parece transitar entre a lentidão quase meditativa e o tônus de uma força confinada prestes a explodir. Não há pausas, o fluxo do movimento persiste contínuo em sua velocidade quase nula durante todo o trabalho. O tempo dilata-se em uma espécie de improviso direcionado, onde os movimentos de solo são preponderantes.

A proximidade do público contribui para melhor apreensão do espetáculo. O esforço entre as torções, entre os impulsos e contra-impulsos é notório. A ambiência do conjunto remete metaforicamente a espaços sombrios, gélidos e solitários. Não há paredes para se chocar, mas há a escuridão para as tentativas de desaparecimento. Tal como Wilde em De profudis, talvez a dor maior a ser evocada não seja a física, do encarceramento, mas a emocional, a psicológica, a dor do amor perdido, da desilusão e da decepção. O tipo de dor que nos remete ao lado mais sombrio de nossos movimentos.

Cristiano Prim

Solo de Vaz Franco tem brechas para outras correlações

A aparente simplicidade com que a performance se desenvolve é enganadora. Um bailarino dançando sozinho em quase completa escuridão, sonoridades industriais, ruidosas, em meio a uma luz difusamente recortada dão subsídio para a exacerbação desses detalhes, para a grandiloquência do mínimo, do breve, do tempo expandido, dilatado, transportado. É visceral a potencia dolorosa com que Diogo Franco dança no quase silêncio, é claustrofóbico e angustiante.

A opção por um tempo dilatado, o cerceamento do movimento dentro do espaço delimitado pela luz e os jogos de desaparecer e aparecer do bailarino em meio à obscuridade abrem brechas para correlações com a invisibilidade dos encarcerados e o fracasso da privação da liberdade como estratégia correcional. A multidão de detentos que permanecem invisíveis a não ser quando são chacinados, massacrados e torturados, o tédio e o desperdício de vidas dentro das prisões são nuances que permanecem quase abstratas durante a performance, mas que permeiam os espaços expandidos entre uma ação e outra como uma metáfora tristemente presente durante a encenação.

Como corrigir indivíduos já privados do básico necessário para exercer a própria dignidade, teoricamente prevista pela cidadania que compartilham, quando os submetemos a ambientes que mais parecem câmaras coletivas de tortura institucionalizada? No caso de Wilde, a prisão foi destruidora. O brilhante autor britânico jamais se recuperou da humilhação do cativeiro, e morreu poucos anos depois de ter sido preso. No caso dos presos brasileiros, submetidos à barbárie das decapitações em massa pelos companheiros de cela, acredito que qualquer tipo de recuperação também seja improvável. A única opção é tentar sobreviver ao tempo que se dilata, como nos movimentos de Diogo Franco em Recluso, com lentidão avassaladora.

Serviço:

O espetáculo circulará por 25 cidades de Santa Catarina a partir de 3 de maio. A programação das cinco primeiras cidades está aqui.

Equipe de criação:

Concepção e direção: Elke Siedler

Performance: Diogo Vaz Franco

Ambientação sonora e trilha: Dadive Nelson de Merra (Nelson-d)

Fotos: Cristiano Prim

 

 

Gestor de cultura em Santa Catarina, crítico e dramaturgo. Escreve ocasionalmente para os jornais Notícias do Dia e Diário Catarinense. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres (Chiado Editora/Portugal), coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.

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