Crítica
Trinta anos separam a morte do argentino Copi e a revisita do Teatro Kunyn à sua vida e obra com a peça Desmesura, que estreou em São Paulo em maio. O ator, diretor, dramaturgo e ilustrador morreu na França, em dezembro de 1987, em decorrência de complicações da Aids, não sem antes transformar a própria doença — àquela época, inevitável caminho da morte — em uma das particularidades e um dos eixos de sua escrita.
Este é o terceiro trabalho do Kunyn, um grupo cuja pesquisa cênica se debruça nas tensões da homoafetividade e da homossexualidade. Nessa trajetória, surgida em 2010, estão ainda as peças Dizer e não pedir segredo e Orgia – Ou de como os corpos podem substituir as Ideias. Da primeira até a mais recente, as obras foram erguendo um discurso sobre descoberta, aceitação e ratificação da sexualidade, tomando como norte vieses e falas de vários formatos. Em Dizer…, o grupo encenou relatos de cartas de homossexuais em apartamentos e pequenos ambientes intimistas, lidando com as descobertas da sexualidade; e em Orgia, os atores se apropriaram de praças e espaços públicos para narrar o diário do também argentino Tulio Carella e os casos de amor e sexo dele com homens negros do Recife da década de 1960.
‘Desmesura’ se passa em uma espécie de arena, com um buraco no centro do palco, de onde saem as figuras imaginárias de Copi. O círculo é passível a várias leituras: por ora sugere ser um abismo, poço sem fundo, em que aquele homem está prestes a entrar; mas por ora é também o ânus, origem do prazer e da dor na vida de Copi
Agora, com Desmesura, o Kunyn rompe com as questões espaciais/geográficas que delimitavam ou norteavam suas encenações para entrar num campo psicológico, atemporal e subjetivo da temática. Às vésperas de morrer, em 14 de dezembro de 1987, Copi se encontra com seu passado e seu presente, num labiríntico e bem escrito jogo de devaneios — alguns deles frutos de alucinações causadas pela doença que o acometia. Nesses sonhos quase reais e biográficos, o artista conversa com sua avó (morta quando ele tinha 14 anos), o ex-amante Jorge (homem que jamais esquecera), um soldado e uma travesti.
Os personagens-encontros criados por Copi são simulacros que servem, como ele mesmo afirma na peça, de projeção das suas dores e angústias. A fuga pela graça foi um caminho de ilusão, talvez um paliativo que o argentino criou como casca para esconder o sofrimento; ou mesmo a maneira que encontrou para lidar com algo até então estranho. Ronaldo Serruya protagoniza um Copi extremamente fiel a si. Não há uma caricatura ou busca pela precisão de recriação da personagem, mas uma força da verdade de quem se apropria ou tira dele próprio aquilo que se diz.
Desmesura carrega no seu próprio título a noção de falta de medida: o real e o ficcional caminham juntos. O conflito estabelecido pelo tempo incerto, pelos diálogos que beiram o desvairado, lançam um caminho de desconformidade entre compreensão e certeza. A dramaturgia coloca o espectador diante da descrença e da desconstrução de verdade. Esta é a primeira peça escrita por Serruya, que antes assinou coletivamente ou atuou como supervisor das dramaturgias do Kunyn. O texto nos apresenta um dramaturgo maduro e incisivo nas suas reflexões, com apontamentos pertinentes aos debates contemporâneos relacionados não só à temática LGBT como, principalmente, ao que diz respeito à Aids — uma questão que toca a todos, independentemente de gênero e orientação sexual.
No espetáculo, Copi escorrega em dois tempos: o passado, em 1987, e o presente, 30 anos depois da sua morte. O personagem vai e volta nos anos de maneira a nos fazer refletir sobre os estigmas ligados à síndrome da imunodeficiência. Neste sentido, Ronaldo Serruya possibilita o confronto de gerações frente à discussão deste tema que, mesmo com o passar das décadas, continua incômodo, tabu e uma realidade na vida de milhares de pessoas.
Tempos bélicos
O texto da montagem é sinuoso. Embora tome como princípio a história de vida de Copi, Desmesura vai além de uma biografia; ela traz outras tantas questões caras à contemporaneidade. Nisso, Serruya se valeu da potência metafórica da obra do dramaturgo argentino, que usava da ironia ferina para não apenas falar de sua doença, mas, antes de qualquer coisa, afrontar o moralismo da sociedade — e nisto consiste a singularidade do espetáculo. Não há, porém, uma melancolia comum às abordagens do tema, típicas das obras do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, mas uma crítica ao incoerente preconceito e à ignorância que ainda paira sobre homens e mulheres nos tempos de hoje — tempos de “pílulas que matam os vírus que nos deixam vivos, mas causam medos que nos deixam mortos”, como resume a personagem.
Copi não se prendeu a uma pauta “gay”. Como disse, esteve centrado no humano, no que consiste as ideias de liberdade do humano. Essas subcamadas da poesia irreverente do argentino tornam-se palpáveis nas cenas pela metáfora ou por imagens extremamente simbólicas criadas pelo Kunyn. Um exemplo disso é a primeira cena da peça, em que os três homens e atores nus se colocam diante da plateia para uma votação. O público tem de responder quem daquele elenco é soropositivo. Uma representação da plateia-sociedade do dedo apontado para o outro, cujas respostas são criadas com os critérios preconcebidos. É uma cena que constrange e nos obriga a relembrar as sentenças das quais somos os juízes.
Essa ideia de policiar e estigmatizar o outro volta mais vezes à cena com a figura de um soldado que relembra a Copi, sempre que pode, da morte que o espera. Essa polícia representa o conservadorismo, agente da tortura física e psicológica da sexualidade. Outrossim, a censura vem também alegórica, através da armadura que reveste o corpo do ex-amante do argentino, numa alusão à impossibilidade do sexo e do medo da contaminação que assustava os portadores do vírus HIV, naquela época, e continuar a assombrar hoje.
O salto no tempo, 30 anos depois, coloca Copi de frente para uma travesti inacabada, barbada, personagem que ele começou a escrever mas abandonou no meio do processo. Ela vai à cena para abrir um outro debate sobre estigmas e preconceitos: a força que tem a voz real versus a representação de uma realidade. Luiz Gustavo Jahjah, que vive a personagem, interrompe a peça e critica o fato de ele — homem — interpretar aquela figura. Na quebra do campo ficcional para um diálogo, Jahjah e Ronaldo Serruya discutem a representatividade e a representação no teatro das temáticas de gênero e sexualidade, neste atual “tempo bélico”, assim chamado em cena pelos atores. O que os coloca de frente, neste questionamento, é a correlação dos estigmas que matam as duas personagens: de um lado, na travesti, a sua identidade visível; do outro lado, do soropositivo, a “condição” invisível.
Se o texto envereda para um campo do surreal, o jogo de devaneios de Copi é a possibilidade de uma encenação extremamente criativa. A direção de Luiz Fernando Marques imprime na cena leveza e humor, ainda que os questionamentos sejam tão intensos. Toda a peça se passa em uma espécie de arena, com um buraco no centro do palco, de onde saem as figuras imaginárias de Copi. O círculo é passível a várias leituras: por ora sugere ser um abismo, poço sem fundo, em que aquele homem está prestes a entrar; mas por ora é também o ânus, origem do prazer e da dor na vida de Copi. Tocar e transitar por esse cu, sem pudores, faz parte do desejo de liberdade que o argentino tanto projetou para o futuro — quando, inclusive, esperava que falar sobre o cu não seria algo constrangedor; ou mergulhar nesse buraco é também fugir do centro de olhares e julgamentos. O Copi do Kunyn vai usar a escuridão, metáfora da morte, como disparador de inúmeras reflexões sobre o estar vivo.
Texto e cena ganham ainda mais coesão com a interpretação dos três atores. Serruya vive Copi, enquanto Luiz Gustavo Jahjah e Paulo Arcuri se revezam entre os outros papéis. Eles trazem registros de outros personagens das histórias do Kunyn — como a expansividade da travesti, que faz lembrar outro papel de Jahjah em Dizer e não pedir segredo. No entanto, ainda que as cargas de humor e sarcasmo sejam evidentes na teatralidade desta montagem, o elenco dá a ela a medida pontual sem incorrer para algo desconexo com o tom do espetáculo. A graça não se confunde com a ironia e nem abstrai o peso do real.
Desmesura não é uma peça de respostas. Pelo contrário, abre muitas perguntas e auto-reflexões. É uma obra para incomodar os padrões e os estigmas que a gente atravessa na frente das relações. Quem dentre nós é soropositivo? Pouco importa, neste momento. Quem dentre nós precisa de humanidade? Isso sim é o que importa, em todos os momentos
Serviço:
Desmesura
Onde: Centro Cultural São Paulo – anexo da Sala Adoniran Barbosa (Rua Vergueiro, 1.000, Liberdade, metrô Vergueiro, tel. 11 3397-4002)
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 20h. Até 11/6.
Quanto: R$ 20
Equipe de criação:
Criação: Teatro Kunyn
Direção: Luiz Fernando Marques
Dramaturgia: Ronaldo Serruya
Com: Luiz Gustavo Jahjah, Paulo Arcuri e Ronaldo Serruya
Direção de Arte: Yumi Sakate
Iluminação: Wagner Antônio
Dramaturg: Renata Pimentel
Designer Gráfico: Jonatas Marques
Direção de Produção: Fernando Gimenes
Produção Executiva: Vânia Lima
Produção: Teatro Kunyn e Mofo Produção Cultural
Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).