Crítica
Em São José do Rio Preto
A necessidade de abordar a realidade inflamada de maneira direta parece nortear duas montagens de rua apresentadas na recém-encerrada edição do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto: Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno, do Teatro Imaginário Maracangalha, de Campo Grande (MS), e Terra abaixo, rio acima, da Cia. Cênica, de Rio Preto (SP). Ambas contam com dramaturgias que deixam a impressão de terem sido concebidas com o intuito primordial de conscientizar a plateia em relação a questões emergenciais, sejam aquelas que vêm atravessando o tempo e permanecem na pauta do dia, sejam as que despontaram recentemente no noticiário. Em certa medida, os grupos priorizam a contundência do discurso em detrimento de elaborações mais sutis, o que não significa que não haja, nos espetáculos, propostas de teatralidade.
Em algum grau, os espetáculos de Campo Grande e São José do Rio Preto valorizam mais o teatro como instrumento de contestação do que a criação artística sofisticada
Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno evoca o assassinato do líder guarani Marçal de Souza (1920-1983) para, a partir disso, prestar homenagem “a todas as pessoas que foram mortas no Brasil lutando por justiça”. O Teatro Imaginário Maracangalha procura estabelecer uma ponte entre um fato específico – mas, nem por isso, menos importante – do passado (o assassinato de Marçal) e o generalizado quadro de impunidade (“mais doloroso do que a morte”, como dizem em dado momento) imperante no Brasil de hoje. Por meio dessa articulação, o grupo frisa a perpetuação da violência promovida por uma parcela dos que detêm o poder com o objetivo de obter vantagens políticas e econômicas ilícitas. Tekoha se afirma como um espetáculo que, ao realçar sua sintonia com o panorama de crise aguda no aqui/agora, tenta estimular o público a partir para a ação (“a paciência acabou”, “vamos quebrar tudo”). Já Terra abaixo, rio acima chama a atenção para práticas nefastas que vêm sendo eternizadas – como a aniquilação da natureza em prol de interesses escusos (justificada, com hipocrisia, como etapa fundamental para o progresso e depois imposta pela força) e a expulsão de trabalhadores e indígenas de suas terras pelos mais abastados.
Nas duas montagens, porém, vem à tona, por meio de procedimentos distintos, uma relativização do real na construção das cenas. Essa característica é mais flagrante em Terra abaixo, rio acima através do destaque a elementos simbólicos (a corda azul – que tanto pode representar o rio quanto, em esfera mais abrangente, o elo umbilical do homem com a natureza – presa à grande roda que os atores arrastam durante o percurso); à inclusão de situações fantásticas (a exemplo da que ocasiona a súbita transformação do capataz em porta-voz dos direitos do povo); a um visual que, apesar de escorado na realidade (as roupas gastas dos trabalhadores), expõe uma estilização (as maquiagens borradas, os acessórios nos figurinos); e a determinadas atuações que, diferentemente da empregada para o capataz, mais próxima do cotidiano, foram estruturadas a partir de composições bem marcadas. Em Tekoha, os atores transitam entre a narração e a vivência dos acontecimentos. Demonstram adesão a interpretações intencionalmente tipificadas que localizam de modo caricatural os personagens em seus lados da História. O grupo buscou um registro de atuação que sublinha a dramaticidade das denúncias, sem muito espaço para ambiguidades. Proclama as agruras do real, mas sem a ambição de reconstituir sua complexidade e suas nuances. O afastamento de um padrão realista também se manifesta na defesa de uma cena sintética, a julgar pela sugestão de circunstâncias de confinamento através de poucos bambus e pela costura vermelha dos figurinos, que, como a corda azul de Terra abaixo, rio acima, abre-se a variadas possibilidades de associação, sem se prender a decodificação mais evidente – no caso, o sangue dos oprimidos que escorre sem trégua década após década.
Em Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno e em Terra abaixo, rio acima, a proximidade com a plateia é acentuada, mesmo que não por meio da interatividade – esta ocorre pontualmente em Terra abaixo…, na qual os espectadores acompanham os atores em itinerância. Em Tekoha, o elenco fala para o público que, disposto em círculo, é contagiado pelo tom acalorado das reivindicações, mas sem ser propriamente trazido para dentro da cena. Em algum grau, os espetáculos valorizam mais o teatro como instrumento de contestação do que a criação artística sofisticada. Ainda que não sejam polos excludentes, a transmissão sem subterfúgios de uma tomada de posição, de uma postura de cidadão, tende a implicar na renúncia a uma dramaturgia mais refinada. Essa discussão não é nova. Basta lembrar de iniciativas teatrais emblemáticas em instantes decisivos da história brasileira (e, claro, de outros países). Num contexto turbulento como o de hoje é natural que reverbere.
.:. O crítico viajou a convite da organização do festival.
.:. Leia a crítica de Valmir Santos a partir de Tekoha – Ritual de vida e morte do Deus Pequeno.
Equipe de criação – Tekoha- Ritual de vida e morte do Deus Pequeno:
Dramaturgia: Teatro Imaginário Maracangalha
Direção: Fernando Cruz
Com: Estefânia Martins, Fernando Cruz, Fran Corona, Moreno Mourão e Renderson Valentim
Pesquisa: Patrícia Rodrigues
Alegoria: Lício Castro
Cenografia: Zéduardo Calegari Paulino
Figurino: Ramona Rodrigues
Preparação corporal: Breno Moroni
Produção: Ana Capilé
Sistematização de conteúdo e assessoria de imprensa: Rafaela Muniz
Fotografia: Uári Arruda
Equipe de criação – Terra abaixo, rio acima:
Dramaturgia: Graziela Delalibera e Fagner Rodrigues
Direção: Fagner Rodrigues
Com: Cássia Heleno, Clara Tremura, Diego Guirado, Fabiano Amigucci, Glauco Garcia, Márcia Morelli e Simone Moerdaui
Pesquisas histórico-culturais: Cia. Cênica e Claudia Borges
Orientação de pesquisa em intervenção no espaço urbano: Juliana Calligaris
Composições inéditas: Márcia Morelli e Diego Guirado
Preparação vocal: Babaya Morais e Elaine Matsumori
Preparação musical e direção de texto: Babaya Morais
Figurinos e adereços: Adbailson Cuba
Cenografia: Fagner Rodrigues
Arte de adereços cênicos: Laura de Paula Barbeiro
Iluminação: Fagner Rodrigues
Oficina de orientação em interpretação: Tiche Vianna
Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e das revistas Preview e Revista de Cinema. Escreve para os sites Questão de Crítica (questaodecritica.com.br), Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. Membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio e Questão de Crítica.