Reportagem
Narrador de 12 anos sai de casa para comprar pão, na periferia leste da cidade, sofre abordagem abusiva de um policial e empreende fuga com fortes tintas de realismo fantástico. No centro, travestis e prostitutas são igualmente vítimas de perseguição durante a ditadura civil-militar em entrecho documental que não desbotou. Vide o que se passa noutra geografia mais difusa, onde homens e mulheres soam exasperados nos lugares de fala e discursos intolerantes.
As três peças selecionadas no edital da IV Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, iniciativa do Centro Cultural São Paulo, pintam uma realidade cortante por meio das formas de violência – as dores físicas e morais – que traumatizam as relações interpessoais e sociopolíticas nos dias de hoje.
O resultado publicado na edição de sábado (21) do Diário Oficial da Cidade de São Paulo sugere um estado de conflagração fabulado com liberdade de estilo e de forma.
As dramaturgias inéditas selecionadas foram Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã, de Jhonny Salaberg; as 3 uiaras de sp city, de Ave Terrena; e Necropolítica, de Marcos Barbosa.
O trio vai receber R$ 70 mil cada um, valor bruto, para ver seu texto montado em 2018, em curta temporada de 12 sessões no CCSP. Como praxe, as peças serão publicadas em brochuras e distribuídas gratuitamente ao público.
Este texto é em homenagem a todos os pretos e pretas executados nas periferias de todo o mundo. É uma denúncia ao genocídio da população negra (Jhonny Salaberg, autor de ‘Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã’)
Barbosa, de 40 anos, é o artista com mais estrada entre eles. Conhecido de espectadores paulista e fluminense por textos como Quase Nada, Avental todo sujo de ovo e Auto de Angicos (encenada por Amir Haddad em 2008), passou a metade da vida escrevendo para teatro e, mais recentemente, para cinema. Nascido em Fortaleza, ele morou dez anos em Salvador, onde fez mestrado e doutorado em artes cênicas, na UFBA. Vive em São Paulo há seis anos, onde é professor, também na área de teatro, na graduação e na pós-graduação do Célia Helena Centro de Artes e Educação.
A criação de Necropolítica foi pensada a partir das questões do ativismo, dos discursos de representatividade em curso. “O público há de reconhecer todas as figuras das redes sociais, de engajamentos e contraengajamentos, dos pró-cotas e dos anticotas, das batalhas pelos pontos de vista, pelos direitos. A peça não tem personagens ou enredo, mas uma espécie de mosaico, uma peça-coral. A cada quadro as figuras em foco são abandonadas e podem voltar adiante”, afirma Barbosa.
Pode-se vislumbrar tanto uma sociedade futurista, distópica, na qual os mortos estão reclamando dos que se acreditam vivos, como os paroxismos do momento brasileiro. “É importante demolir certezas, gerar dissonâncias”, diz Barbosa.
A peça estrutura-se em seis quadros nos quais as pessoas vivas surgem identificadas por suas profissões e, as mortas – algumas delas também têm voz –, pelo nome próprio. Dentre as narrativas autônomas, duas delas, não sequenciais, correspondentes a um talk show envolvendo ativista, professora, deputado e mediadora. Sob aparentes firulas semânticas de como contornar a palavra “morte” eles se manifestam a favor ou contrário ao uso da expressão “necropolítica”. Em sentido metafórico, as micropolíticas afirmativas.
Quando a discussão já avançou bastante e os argumentos destoam, a ativista diagnostica a absoluta incapacidade de empatia entre eles. Ao direcionar-se aos outros, parece revelar muito de si:
Não conseguem se colocar no lugar de ninguém, de compartilhar da dor de ninguém. Levam suas vidas como se fossem o centro do mundo e são terrivelmente vorazes em roubar as narrativas de quem quer que seja, para encaixar o mundo, a fórceps, em um modelo que só serve a uns poucos eleitos. Querem negar aos que são diferentes a própria condição de sujeito, porque acham que essa massa gigante da qual cada um deles depende só pode existir como objeto, como fonte de exploração, exploração concreta e, sobretudo, simbólica.
Ao embate próximo da cultura televisiva, apesar da sofisticação de ideias, despontam outras situações nada convencionais, num torvelinho de tensões éticas dentro de casa ou da porta para fora.
“Pode caber muita coisa dentro dos chamados pequenos formatos cênicos. Eu interpretei o edital por meio de questões nucleares da dramática e do drama que me são caras”, diz Barbosa, sentindo-se à vontade ao jogar com categorias “antigas” como personagem, narração, representação e diálogo. “Às vezes ‘Necropolítica’ me soa como uma peça para rádio”.
Em as 3 uiaras de sp city, a paulista Ave Terrena, de 25 anos, dá continuidade ao conceito de “dramaturgia muralista”, derivado do escritor modernista Oswald de Andrade (1890-1954), que por sua vez buscou inspiração nas pinturas dos mexicanos José Orozco (1883-1949) e Diego Rivera (1886-1957), entre outros, para exercer múltiplos olhares sobre a realidade histórica. Trata-se de uma pesquisa realizada junto aos atores do Laboratório de Técnica Dramática, desde 2015 (o LABTD iniciou atividade dois anos antes). São os pares com os quais estreou em março passado, no mesmo CCSP, a peça O corpo que o rio levou, concebida a partir de relatórios da Comissão Nacional da Verdade (2014) e dirigida por Diego Moschkovich.
Com o subtítulo barbante roxo do MURAL DA MEMÓRIA – o barbante de O corpo que o rio levou é amarelo e verde –, a peça as 3 uiaras de sp city é dedicada às “travestis e mulheres trans de ontem e hoje, que lutam para existir”. Debruçando-se sobre documentos da ditadura civil-militar, Ave Terrena sentiu falta de informações relativas à população LGBT, igualmente perseguida no período de exceção, de 1964 a 1985.
“Em geral a gente entra em contato com filmes, peças, livros e teorias que fazem recortes importantes quanto à tortura, a organização política ante os governos militares, mas havia pouca coisa sobre a transgeneridade no meio disso tudo”, afirma Ave Terrena. Até ler Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade (Editora da UFSCar, 2014), organizado pelos pesquisadores James Green e Renan Quinalha. O livro relata a pressão ostensiva das polícias civil e militar no centro de São Paulo, e que a rigor ainda vigoram.
Também foi fundamental a interlocução com a design e trans feminista Neon Cunha, que cobra do Estado brasileiro o reconhecimento legal de seu nome, diverso daquele da certidão de nascimento que a trata pelo sexo masculino, Neumir.
Em tempo: Ave Terrena é o nome da dramaturga nascida Lucas Alves Ferreira. Ela diz identificar-se como uma pessoa não binária. “Assim como os textos que escrevo, eu também vou me transformando.”
Em as 3 uiaras de sp city, há referência, por exemplo, à operação Rondão, comandada pelo delegado José Wilson Richetti na região central da cidade, no início da década de 1980. No texto, duas travestis, a cantora e performer Miella e a cantora, poeta e cabeleireira Cínthia Carolaine são presas pelas identidades de gênero e pelo que pensam. Professora da rede pública, mulher cis (cujo autorreconhecimento de gênero confere com o designado no nascimento), Valéria, a terceira “uiara”, é militante de uma organização política e articula representantes dos direitos humanos e da política para tentar libertá-las.
“Não mi objetifique sexualmente nem mi trate com violência, ouviu?, pelo menus no teatro, já q agora tô ocupando esse espaço”, declara Miella, na grafia de internet adotada pela autora, logo na primeira intervenção. Tanto essa personagem como Cínthia “devem ser interpretadas por atrizes travestis/mulheres trans, pelo menos até o ano de 2047”, observa Ave Terrena na rubrica.
Em sua construção épica dialética, ela reforça o corte brechtiano ao entrelaçar canções para cada uma das três em meio à narração. Vide os versos da Canção da dor nº 1, na voz de Miella:
Si os meios de produção
Fossem socializadus
Será q essa canção
Contaria 1 outro caso?
A criadora afirma que cuidou em não expor as formas de violência como fetiche, equívoco, segundo ela, recorrente em trabalhos cênicos que abarcam transgeneridades.
O texto enviado ao edital do CCSP é ilustrado com três imagens, uma para cada um dos atos de as 3 uiaras de sp city. São pinturas da lavra de Ave Terrena, que costuma elaborá-las durante o processo de escrita. Toda peça pede uma técnica distinta, no caso, tinta a óleo e nanquim no papelão. Ela escreve – ou inventa livremente, como diz – desde os 8 anos. Aos 15, fez parte do grupo Quem Não Cai se Joga, forjado no Centro Cultural do Jabaquara, zona sul paulistana. Cursou artes cênicas na Unicamp, mas não concluiu, e hoje estuda letras na USP. Integrou a turma do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-British Council, em 2014, onde escreveu O amor canibal.
Ave Terrena também é poeta: o livro Segunda queda será lançado no ano que vem, contemplado em edital do ProAC, programa da Secretaria de Cultura do Estado. A peça O corpo que o rio levou foi publicada este ano pela Giostri.
Em paralelo, a autora colabora com o grupo Frêmito Teatro, de Macapá (AP), desenvolvendo dramaturgia para o projeto “Lugar da Chuva”, que reflete a respeito das relações entre humanidade e natureza ambicionando uma revisão crítica e poética das dinâmicas predatórias de ocupação de terras na Amazônia.
O terceiro texto selecionado pela comissão – não há uma ordem valorativa – equivale à primeira peça escrita por Jhonny Salaberg, de 21 anos. Ele atende ao telefone celular na tarde de domingo. Ensaia com um coletivo da zona sul de São Paulo para o qual escreve a segunda peça. Mas é a sinopse de Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã que vem na ponta da língua:
“Conta a história de um menino de 12 anos que mora em Guaianazes. É manhã de Ano Novo, ele sai para comprar pão, é abordado por um policial na frente da padaria, enquanto sai. O policial o ameaça, ele corre, o militar corre atrás e ele roda o mundo… A cabeça dele dá uma volta no quarteirão, mas na imaginação ele foi para o mundo e visita lugares, países da América Latina. Tudo que ele queria era voltar para casa com o pão, mas foi atingido por 111 tiros”, resume Jhonny Salaberg, paulistano criado pela avó mineira e pela mãe baiana: esta é solteira, o sustentou sozinha e o batizou com o nome do pai dela.
“Fui procurar saber a origem de “Salaberg” e parece que significa ‘uma pessoa que sobe montanha’, não tenho certeza”, diz o aprendiz que cursa o terceiro ano da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT), que forma ator, e desenvolveu sua peça ao participar do núcleo de dramaturgia ao longo de 2016, coordenado pela artista e pedagoga Solange Dias.
Salaberg já diz a que veio na dedicatória de Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã:
Este texto é em homenagem a todos os pretos e pretas executados nas periferias de todo o mundo. É uma denúncia ao genocídio da população negra. É um grito de socorro. É bandeira da paz estiada nos corações daqueles que carregam o poder.
E emenda a voz da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), de Quarto de despejo: Diário de uma favelada, obra icônica publicada em 1960:
Que Deus abençoe os brancos para que os negros possam dormir tranquilos.
No dicionário Houaiss, o vocábulo “picumã” é definido como “fuligem”, “teia de aranha coberta de fuligem” ou, informalmente, “cabelo pixaim”, “carapinha”.
O rapaz assume o fundo biográfico, dada a condição de jovem e negro que nasceu e vive na zona leste da cidade. “Eu não rodei o mundo, é uma metáfora, claro, mas já passei por várias daquelas situações”, afirma, avesso a ler a realidade ao pé da letra, ciente de que a fábula não trai a denúncia e a contundência que deseja expressar.
“Não conseguiria alcançar o público com o que quero dizer se não trabalhasse com o realismo fantástico. Na história, a única coisa à qual o menino-narrador consegue se amarrar é a imaginação”, pondera.
Com o corpo transfixado por balas, o personagem vê barriga, braços, costas e outros órgãos desfazendo-se na fuga insólita, ao sabor do vento que o leva a caminhar sobre a fiação dos postes, a rasgar o céu com as mãos, a conversar com lápides, a percorrer Lima, La Paz ou Cité Soleil, esta a maior favela do Haiti, tudo num piscar de olho narrativo, como nesse trecho:
Aqui começa a jornada pra salvar esse pequeno corpo negro ambicioso que corre com uma sacola de pães nas mãos. Por essas ruas a saga é diária e preciso ser ligeiro. Os pássaros voam ao meu lado tentando bicar os pães dentro da sacola. Por aqui, cria-se asas em dias de emergência. Os meninos pretos desta terra nascem com ligamentos nas costas ao lado das escápulas, são pequenas penas que se desenvolvem à medida que o perigo aumenta.
Salaberg se considerava mais ator que dramaturgo. Foi estudar na ELT para entender como falar o texto em cena. “E acabei me apaixonando. O núcleo de dramaturgia resgatou uma coisa que sempre tive, que é escrever. Quando mais novo eu criava minipeças, curtinhas, escrevia músicas, poemas. Nunca me aprofundei, como agora, mas sempre gostei de criar histórias. Agora, enquanto ator e dramaturgo, a minha vontade é também falar das coisas que acontecem na periferia”, explica.
A segunda peça está em processo. Ele colabora com o coletivo Carcaça de Poéticas Negras, de Cidade Ademar, zona sul, voltado à pesquisa da negritude fundindo teatro, artes plásticas, música e outras artes. O mote do roteiro é migração, conforme projeto aprovado em edição recente do programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Secretaria Municipal de Cultura. Entre os pontos a investigar está o mítico túnel que começaria em Cidade Ademar, passaria pela Casa da Ressaca e alcançaria Santos, traçado percorrido pelos escravos para escapar do quilombo em direção a Jabaquara.
Jhonny Salaberg vai completar 22 anos em 19 de novembro, véspera do Dia da Consciência Negra, leia-se homenagem a Zumbi, líder do levante de resistência dos escravos no Quilombo dos Palmares (AL). No plano pessoal, declara que nadou contra a maré para trilhar a arte e a cultura. Em criança, havia pouco incentivo à leitura, quer em casa ou na escola. “O apoio foi minha força interior”, consola-se, reconhecendo hoje a receptividade e entusiasmo de familiares e amigos do bairro.
A comissão da IV Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos foi composta pela jornalista e pesquisadora Beth Néspoli (editora deste Teatrojornal), pelo diretor, dramaturgo e pesquisador José Fernando de Azevedo (Teatro de Narradores) e pela atriz, dramaturga e pesquisadora Lucienne Guedes, sob coordenação do curador de teatro do CCSP, o jornalista, crítico e pesquisador Kil Abreu.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.