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Crítica

Circo, melodrama e afeto

24.3.2018  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Paulo Barbuto

Pagliacci, espetáculo que comemora os vinte anos da Cia. LaMínima, se avizinha, por força dos seus diferentes materiais, do teatro de variedades. Mas sem que com isso se perca um campo de pensamento bem delimitado, e suas questões. O projeto foi pensado pela companhia ainda na presença do saudoso Domingos Montagner, que não pôde vê-lo de pé.

Certa trupe circense tenta encontrar saída para conquistar o público, mas está sob a liderança de um chefe que quer ser reconhecido como artista “sério”, dispensando os velhos repertórios da lona.  Para isso encomenda a escrita de um drama – que, logo veremos, tende a ser convertido em melodrama. O problema é que os caminhos do desejo na vida “real” das personagens encontram atalhos desobedientes que, enfim, vão criar involuntariamente o nó dramático da peça – não o planejado e sim o inesperado.

A atmosfera etérea com a qual o espetáculo começa e termina nos diz sobre algo que quase já não está. De alegrias ou dramas que se constituíam em modos de afeto baseados em um tipo de convivência hoje em vias de extinção

O dramaturgo Luís Alberto de Abreu capturou o argumento central da ópera I Pagliacci (1892), de Ruggero Leoncavallo, e em torno dele urdiu outras camadas narrativas, inventando uma forma em que a metateatralidade é artifício usado com o maior rigor, sem que, entretanto, o riscado que separa um plano de outro caia no esquemático. As entradas e saídas do núcleo da trama para as suas diversas bordas (inclusive a que alcança a plateia) são facilitadas pela presença do bufão-narrador interpretado por Fernando Paz, que faz às vezes de personagem e comentarista, vivendo o andamento das ações ao tempo em que reflete aqui e ali o entrecho e as implicações morais desdobradas no avançar dos acontecimentos. E fundamentalmente o que acontece é que os planos de todos dão em água porque o amor intui mal o seu destino, começa encontrando o endereço errado e, ao tentar corrigir-se, caminha em direção à tragédia.

Animando esses eixos da história os personagens interpretados por Alexandre Roit, Carla Candiotto, Fernando Paz, Fernando Sampaio, Felipe Bregantim e Carla Martelli dão conta de uma pequena galeria de tipos bem desenhados tanto na dramaturgia quanto na interpretação do elenco: o produtor machista e arrivista, a moça ingênua que desperta tarde para a sinalização verdadeira do coração, o palhaço que se apaixona pela companheira do chefe, a mulher barbada que enxerga o futuro nas cartas, mas resolve tudo no porrete, corrigindo o machismo do argumento original, e o macho da boca para fora, frouxo e delator. E, por fim, a consciência, concentrada no velho bufão, que avalia e comenta cada um dos caracteres e a interação entre eles, os choques entre vontades e perspectivas.

Paulo Barbuto

Sampaio e Keila Bueno (substituída na temporada de 2018 por Carla Martelli): o palhaço enamorado da mulher do chefe

Os atores e atrizes, sem exceção, desenham as suas personagens com os traços bem demarcados que nos fazem vê-las, naqueles termos, inteiras. A direção da montagem tem entre outras essa qualidade, a de equalizar no trabalho dos intérpretes uma medida que nos chega como certa, pelo efeito preciso que tem quanto à exposição das personagens, mas sem dispensar as características particulares e o tempo necessário para a expressão livre de cada ator/atriz. É um espetáculo com notável fluência no jogo entre os atores, o que certamente tem a ver com esta percepção para o equilíbrio entre marca e improviso, entre o desenho pré-definido e o espaço necessário para a anima própria que vem de cada um.

Nesse capítulo, o dos desempenhos singulares, impossível não nos enternecermos especialmente com a arte de Fernando Sampaio, um desses palhaços diante dos quais temos a impressão de que nada se perde, de que todo movimento, gesto ou intenção gera sentido, graça, plena empatia. E também a moça forte de Carla Candiotto, que sem sair do tipo que lhe é pedido o humaniza com a simpatia das mulheres duras, mas sempre cheias de razão. Candiotto mostra um timing excelente para o cômico, com ampla resposta da plateia, o que entre outras coisas vai alimentar a nossa aderência absoluta adiante, nas passagens mais dramáticas.

A encenação de Chico Pelúcio segue a intuição livre da dramaturgia e arregimenta a cena em várias direções sem perder o sentido de unidade. Costura em ação o trânsito entre diferentes gêneros e recursos teatrais vindos de várias fontes: palhaçaria, números tradicionais de circo, estilização de melodrama, passagens de canto lírico e popular. Conta com a fundamental colaboração da música pensada por Marcelo Pellegrini, que tanto na criação original quanto nas citações sonoras ajuda muito a criar os diferentes estados do espetáculo nas tantas frentes visitadas.

Há no aparentemente simples, mas complexo esquema expressivo da encenação um encontro poético dos mais felizes entre música, luz (Wagner Freire) e cenografia (Marcio Medina e Maristela Tetzlaf). As panadas de fundo que remetem aos cenários antigos pintados em telões já não são painéis cuja concretude se evidencia. São feitas em tecido fino, como se o local da ação fosse uma marca d’água, uma paisagem quase impressionista, delicadamente explorada pela iluminação. É um achado que escapa ao mero efeito. E traduz de uma maneira potente mas subliminar, não descritiva, o que talvez seja a questão de fundo do LaMínima. Essa história nos diz, não por acaso a partir de um entrecho envolvendo artistas, sobre um mundo em que aquelas formas de expressão dos sentimentos já são relativamente estranhas nós. A atmosfera etérea com a qual o espetáculo começa e termina nos diz sobre algo que quase já não está. De alegrias ou dramas que se constituíam em modos de afeto baseados em um tipo de convivência hoje em vias de extinção.

Paulo Barbuto

O contato humano é representado quase que como uma fantasmagoria

Em outras palavras, o espetáculo nos diz sobre relações não mediadas pelo mundo da informação e sim pelo contato humano direto. E não à toa representa isso quase que como uma fantasmagoria. Se esta leitura fizer sentido, o LaMínima e seus parceiros convidados para a montagem estão nos contando mais do que a história de uma trupe ou sobre a dialética tragicômica da condição humana. Além disso, talvez estejam intuindo uma mudança já perceptível nas estruturas de sentimento da época. É uma percepção fina e um teste. Entre as tarefas mais nobres da arte está a de perceber o que é aquilo que escapa e o que essas mudanças geram em nós, como reagimos a elas. A tomar pelos olhos mareados de muitos no final da apresentação de Pagliacci, pode-se dizer que apesar do estado das coisas a afetividade vista como coisa livre ainda nos parece algo caro e importante. Além da beleza do espetáculo como obra artística, esta talvez seja a melhor notícia que ele nos traz.

.:. Mais informações sobre Pagliacci no Encontro com o Espectador e participação dos artistas da Cia. LaMínima. Dia 25/3, domingo, às 15h, no Itaú Cultural.

.:. O site da Cia. LaMínima

Serviço:

Pagliacci

Onde: Teatro do Sesi (Avenida Paulista, 1.313, São Paulo, tel. 11 3146-743)

Quando: Quinta a sábado, às 20h; domingo, às 19h. Até 25/3

Quanto: entrada franca (retirar ingressos com antecedência)

 

Equipe de criação:

Concepção: Domingos Montagner e Fernando Sampaio

Texto e adaptação: Luís Alberto de Abreu

Direção: Chico Pelúcio

Diretor assistente: Fabio Caniatto

Com: Alexandre Roit (Canio), Carla Candiotto (Strompa), Fernando Paz (Peppe), Fernando Sampaio (Silvio), Filipe Bregantim (Tonio) e Keila Bueno/Carla Martelli (Nedda)

Direção musical e música original: Marcelo Pellegrini

Iluminação: Wagner Freire

Cenografia: Marcio Medina e Maristela Tetzlaf

Figurinos: Inês Sacay

Adereços: Cecília Meyer

Visagismo: Simone Batata

Pintura artística dos telões: Fernando Monteiro de Barros

Assistente de pintura: Jonathas Souza Braga

Costureiras: Benê Calistro, Célia Calistro e Cidinha Calistro

Direção de produção: Luciana Lima

Produção executiva: Priscila Cha

Administração: José Maria (Nia Teatro)

Assistência de produção e de administração: Chai Rodrigues

Assistência de produção: Karen Furbino

Assessoria de imprensa: Márcia Marques (Canal Aberto)

Programação visual: Sato Brasil e Murilo Thaveira (Casa Da Lapa)

Fotos: Carlos Gueller e Paulo Barbuto

Supervisão geral: Fernando Sampaio e Luciana Lima

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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