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Crítica

Mulheres fora da ordem

31.5.2018  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Claudia Ferrari

De Fassbinder a Ester Rios (ou de Ester Rios, fictícia autora de novelas, a Fassbinder), do folhetim televisivo à experiência viva do teatro, L, o musical é espetáculo que transita por muitos diferentes caminhos, arranjados em um chão comum pelo dramaturgo e diretor Sérgio Maggio. A peça trata de mulheres fora da ordem, do amor lésbico e da perspectiva trans. Colabora com uma cena teatral que já foi subterrânea, de exceção, mas que neste momento ganha volume e tem feito subir às tábuas as questões de gênero em perspectiva inusual, que pouco a pouco vai, no entanto, tornando-se parte da vida ordinária do teatro. Assim como acontece, por exemplo, entre os americanos já há algumas décadas. A gay-play é praticamente um gênero em muitos países, com o desenvolvimento de um amplo campo de produção dramatúrgica e com a segmentação de plateias prontas a acompanhá-la. Nos Estados Unidos transformou-se, no quadro da cultura mercantil, no que se pode chamar “nicho de mercado”.

O espetáculo ‘L, o musical’ é movido pela empatia e pelo exercício da alteridade, que além da resposta generosa dada pelas plateias, significa também um apaixonado trabalho para fazer do justo algo artisticamente mobilizador

Entre nós é experiência mais fresca e sem dúvida é resultado das tantas lutas micropolíticas que vêm sendo levadas ao centro do debate nos últimos anos, junto às questões de raça, etnia e variantes. Como sabemos, são temas não pacíficos, que dividem a sociedade, mas que chegaram a um ponto de afirmação que felizmente é irreversível. E seguimos na abertura desta cena nova, experimentando do nosso jeito os discursos políticos e estéticos e suas formas neste momento de emergência – emergência no sentido do que surge tanto quanto no sentido do que urge.

A peça conta sobre um grupo de mulheres em torno da autora de novelas Ester Rios (Elisa Lucinda) – sua assistente, Anne (Luísa Caetano); a filha, Elle (Tainá Baldez); a ex-namorada, Rute (Luíza Guimarães) e a companheira atual desta, Simone (Gabriela Correa). O teatro “começa” no momento em que a novela termina, com uma novidade que projeta do campo da ficção uma espécie de utopia feminina para a “vida real”: o folhetim acaba com um casamento triplo, de mulheres. Se a pena/teclado de Ester Rios dá, com estrondoso sucesso, o ponto final naquele momento, a trama agora segue no plano teatral, através do que, logo mais veremos, será o drama da autora e dos outros núcleos dramáticos. É quando percebemos que na passagem entre os dois planos – o da novela e o do espetáculo – Sérgio Maggio como que assume o papel de Ester Rios, conduzindo a trama teatral aproximadamente nos mesmos termos de linguagem do melodrama televisivo, com suas mudanças de rumo e seus pontos inesperados de virada. Entre estes os mais salientes são uma questão grave à própria Ester e a revelação de Simone, que anuncia o desejo de ser um homem trans e, de fato, coloca em movimento o processo de transição.

Divulgação

Luísa Caetano no espetáculo visto por mais de 20 mil espectadores

Tudo isso já somaria um número razoável de pontos de fuga para a dramaturgia, mas não é só. Além destes núcleos há ainda um programa de web TV apresentado por Xena Charme (Luíza Guimarães). É o recurso brechtiano da encenação. Parênteses pedagógicos em que se discute, na linha do humor, questões relacionadas à mulher lésbica – do abuso sexual ao vocabulário próprio, passando por piadas auto-irônicas sobre comportamento.

Na costura (ou na justaposição) de todos esses planos está o repertório musical, que pontua ou comenta o sentido das cenas, dando-lhes graça e respiro em uma mistura que vai do cancioneiro de gosto classe média até o popular popularíssimo. A escolha das canções segue, segundo o grupo, “as cantoras que se declararam publicamente lésbicas ou bissexuais, ou que têm uma identificação afetiva com esse público”.

Novela e teatro

No caminho que enlaça política e estética L, o musical aponta um gosto declarado pelo popular – no espelhamento entre dramaturgia teatral e teledramaturgia e na própria escolha do repertório musical. A decisão por levar ao palco histórias de mulheres homossexuais ganha ainda um ingrediente que corrige outra falta histórica: o protagonismo da mulher negra. Na ficção como no plano não ficcional. Aqui, então, trata-se não só da mulher lésbica como também da mulher de sucesso, lésbica e negra. No contexto em que arte e vida se encontram, a diva interpretada por Elisa Lucinda ganha os contornos certos no caminho que vai da TV ao palco: da  atuação televisiva ao encontro com o teatro, em tom melodramático, Ester Rios surge inteira na alegria e na tristeza. As parceiras de cena da atriz desdobram-se em outros personagens além dos centrais e sustentam com vitalidade igual todas aquelas diferentes entradas abertas pela dramaturgia. Por exemplo, Gabriela Correa, que primeiro aparece como uma noiva que flutua na leveza da paixão até enfrentar a dura militância de Simone e a assunção da identidade que o desejo pede.

Na moldura sonora de todas estas coordenadas que a montagem apresenta é marcante também a presença em cena, por sobre os sugestivos  recortes de bustos que compõem a cenografia, a banda formada só por mulheres: Marlene de Souza Lima (guitarra), Luísa Toller (teclado), Alana Alberg (baixo) e Georgia Câmara (bateria). É o auxílio luxuoso de um pandeiro encontrando a sua razão de ser, a afirmação de gênero, também na presença feminina em um dos eixos de expressão fundamentais do espetáculo.

Claudia Ferrari

Elisa Lucinda e Luiza Guimarães na peça dirigida por Sérgio Maggio

A companhia fundada por Sérgio Maggio e pelo ator Jones de Abreu em 1997, de sugestivo, bonito nome, Criaturas Alaranjadas, encontrou nesse espetáculo um desafio que poderia traduzir-se em empecilho no momento em que as justas demandas por representação e lugares de fala ascendem. Afinal, trata-se de um homem pensando e organizando duas funções criativas essenciais ao teatro, dramaturgia e direção. Além da questão política, há outra do campo especificamente estético: como representar um imaginário de mulher, e mais, de mulher lésbica, de maneira verossímil? Se em outros projetos esta pergunta poderia soar ociosa, aqui ela é fundamental, pois o plano da ficção busca o tempo todo fricções deliberadas com o real, e pede-se então a observação de comportamento e os lances, enfim, mais íntimos da vida e do sentimento lésbicos.

A melhor notícia (que talvez seja uma falsa notícia porque dada por um crítico também homem, mas vamos lá) é que salvo engano esse imaginário aparece bem desenhado, inatacável, em cena. Provavelmente pelo estudo e por um grande empenho na direção daquelas questões e daquelas pessoas, Maggio encarnou Ester Rios de uma forma que talvez tenha conseguido ser mais mulher e mais lésbica que ela mesma. O espetáculo é, assim,  uma aventura de artista movida pela empatia e pelo exercício da alteridade, que além da resposta generosa dada pelas plateias (já foi assistido por mais de 20 mil pessoas), significa também um apaixonado trabalho para fazer do justo algo artisticamente mobilizador, afirmativo, solar.

Equipe de criação:

L, o musical

Direção geral e dramaturgia: Sérgio Maggio

Com: Elisa Lucinda, Luiza Guimarães, Luísa Caetano, Gabriela Correa e Tainá Baldez [a atriz e cantora Ellen Oléria é a intérprete original de Rute, eventualmente substituída, como nas sessões ocorridas no Itaú Cultural em 19 e 20 de maio de 2018)

Direção musical: Luís Filipe de Lima

Direção de movimento: Ana Paula Bouzas

Diretor assistente e de palco: Jones de Abreu

Instrumentistas: Marlene de Souza Lima (guitarra), Luísa Toller (teclado), Alana Alberg (baixo) e Georgia Câmara (bateria)

Desenho de Luz: Aurélio de Simoni

Operação de luz: Rodrigo Pivetti

Desenho e operação de som: Branco Ferreira

Concepção de Figurinos: Carol Lobato

Concepção de cenário: Maria Carmen de Souza

Concepção de visagismo: Luma Le Roy

Preparação vocal: Sara Mariano

Roteiro musical: Sérgio Maggio e Ellen Oléria

Supervisão de roteiro musical: Luís Filipe de Lima

Supervisão de dramaturgia: Daniela Pereira de Carvalho

Assistentes de dramaturgia: Ellen Oléria e Yuri Fidélis

Fotografia: Cláudia Ferrari, Diego Bresani, Patrícia Lino, Cristina Granato e Sérgio Martins

Design gráfico: Chica Magalhães

Coordenação de redes sociais: Rosualdo Rodrigues

Direção de produção: Ana Paula Martins

Concepção e idealização: Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada

Assessoria de Imprensa: Drive G Comunicação

 

 

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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