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Artigo

Memórias em estado de presença

12.8.2021  |  por Grupo Contadores de Mentira

Foto de capa: Cleitono Pereira

Rito Passos para quem partiu. Numa manhã, reunidos em nossa casa comum, o Teatro Contadores de Mentira, decidimos sair em caminhada. Queríamos dar um passo para cada pessoa que morreu vítima de Covid-19 e se contrapor ao planejado descaso do governo Bolsonaro.

Foram três dias, 85,7 quilômetros percorridos e 866.523 passos dados.

Por esse ato de memória e indignação, partimos no meio da madrugada de nossa sede, na cidade de Suzano, a leste da Grande São Paulo, e rumamos para o Parque Nascente do Rio Tietê, no município de Salesópolis. Portanto, cumprimos 72 horas de rito, de entrega e de suspensão.

Compartilhamos a seguir três artigos escritos por integrantes do Grupo Contadores de Mentira a propósito dessa experiência que perpassou quatro municípios da região do Alto Tietê, de 30 de julho a 2 de agosto de 2021.

Após a caminhada de três dias em ‘Passos para quem partiu’, em lembrança às vítimas da Covid-19, desejamos conformar no Festival E(s/x)tirpe – Encontro Para Celebração e Rito uma egrégora, uma epidemia de otimismo, de corpos bailantes, de risos escancarados, de cachaça na mesa e de libertação antimoralista, assim como elaborar uma despedida de corpos que, infelizmente, não puderam estar na festa, mas cujos espíritos encantados estarão conosco

Cleiton Pereira, atuador do Grupo Contadores de Mentira

A ação andarilha precedeu o 4º Festival E(s/x)tirpe – Encontro Para Celebração e Rito, sob nossa organização e realização de 13 a 29 de agosto, numa programação gratuita com cerca de 50 atividades online e gratuitas, entre espetáculos, oficinas, ritos e palestras ao longo de 17 dias.

O tema deste ano do E(s/x)tirpe é Ode aos Profanos, uma espécie de rito para celebrar a resistência de milhares de pessoas que, em seus contextos, defendem crenças de igualdade, pluralidade e liberdade. Para tanto, o festival está dividido em três atos: Corpo Ausente, Preservação dos Sentidos e Ode aos Profanos. Cada ato é composto por obras e ações formativas e reflexivas.

Comungar, partilhar e unir-se às ancestralidades: esses são alguns dos pilares do festejo teatral, popular e ritualístico que acontece na forma de um encontro bienal. O evento começou em 2014 e não foi realizado em 2020 devido à pandemia do coronavírus. Contamos com a adesão solidária dos artistas e pensadores e com o apoio da Lei Aldir Blanc, através do edital ProAC Expresso Lab.

“É um encontro que se apresenta como um festival, mas que em seu desenrolar se mostra um grande e único ato performático de poesia e explosão”, dizem Daniele Santana e K-iqui Calisto, integrantes do Contadores de Mentira. O alinhamento do festival se dá por uma dramaturgia cuja base é a memória, ruptura e assentamento de resistência cultural. A ideia é convidar artistas que dialogam, em suas obras, com a antropologia teatral – um ato provocativo no contexto político e social que enfrentamos.

Dentre criadores e pensadores, estão nomes como Grupo Cultural Yuyachkani, do Peru; Ensemblaje Teatro, da Colômbia; Residui Teatro, da Espanha; Odin Teatret, da Dinamarca; Viviam Martinez, da Casa de las Américas, de Cuba; Alessandra Leão, de Recife; Helder Vasconcelos, também da capital pernambucana; Antônio Nóbrega, de São Paulo; Georgette Fadel e Lincoln Antonio, de São Paulo; Rosa dos Ventos, de Presidente Prudente; Tiche Viana, do Barracão Teatro de Campinas; e Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre.

Convidamos, assim, à leitura dos textos de nossos atuadores Daniele Santana, K-iqui Calisto e Cleiton Pereira.

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Somos um grupo de Teatro de Rito. E o rito exige presença.

Por Daniele Santana

Há alguns anos temos nos dedicado à construção de um teatro que busque transcender a si próprio, que aspire a romper as capas que nos protegem. Chegar a órgãos internos de quem, naquele momento, vivencia o encontro conosco.

Corpo dilatado, consciência dilatada. Há uma linha muito tênue na arte que fazemos; que nos dá o limite entre o que é o estado teatral e o que é o estado de rito. Manejar esta linha com precisão e consciência é uma busca. Saber trilhar o caminho que nos leva de um estado a outro sem perder o domínio do fazer, sem deixar de habitar seu próprio corpo-casa.

Cleiton Pereira Atuadoras Daniele Santana e Pamella Carmo em trecho de Salesópolis onde o Grupo Contadores de Mentira, em atividade em Suzano (SP) há 25 anos, esteve durante o rito ‘Passos para quem partiu’

Olhamos a cena como a construção de uma cerimônia. Toda ação, todo gesto é porta para o inimaginável. Conduzir as energias de seu corpo, alcançar o extremo do movimento e por meio dessa imanência parir o encontro. Compor, numa grande partitura física, um só corpo que comunica.

Comunicar. É importante pensar que esse rito ainda é teatro. Não perder a dimensão do ato cênico. Nossos corpos em cena precisam se conectar com quem acompanha a experiência teatral, portanto esse rito não é “particular” ou para si própria(o).  Esse rito carrega a extensão daquilo que, enquanto grupo, queremos propor como reflexão, como ruptura, como poesia. Levamos à cerimônia cênica uma memória compartilhada. Criamos escritas efêmeras com nossos gestos, ações, sons, danças.

Em nosso Teatro de Rito convocamos personagens e nos tornamos mediadores de suas histórias, ritualizamos ao mundo o que vemos e ouvimos.

O rito não está à parte do cotidiano, do contemporâneo, e em cena ele se torna um caminho para o diálogo, experimentando mais formas de comunicação e encontro. Cria o espaço para a existência de espectadores criadores, que aportam à cerimônia cênica, que se tornam agentes do ato de representação, todo e qualquer espaço é ocupado: atores, atrizes e espectadores estão no mesmo lugar, um corpo se apresenta ao outro.

Nos interessa pensar nesse ator e atriz brincantes, que elaboram o rito em cena criando mecanismos para acessar o invisível, o arrepio, o suor, a respiração, os batimentos cardíacos, os nervos, o sangue que corre.

O teatro tem como potência o inimaginável, como dizia o artista francês Antonin Artaud: “Ele se encontra no ponto onde o espírito precisa de uma linguagem para produzir suas manifestações”. No Contadores, somos conscientes da grande dificuldade de alcançar a linha do impossível, mas fazemos esse teatro em busca de tocá-la.

Daniele Santana é atuadora, gestora e produtora do Grupo Contadores de Mentira

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Um passo à frente sem deixar de olhar para trás…

Por K-ique Calisto

Iniciamos o rito Passos para quem partiu às 3h de 30 de julho de 2021, desde nossa sede, em Suzano – uma madrugada marcada pelo frio intenso de -0°. Fizemos o primeiro banquete tomando uma sopa quente, bebendo uma cachaça e iniciando um processo de concentração e busca do estado de presença cênica. Aquele instante foi marcado por canções, respirações e mecanismos pessoais e coletivos de concentração, de maneira que às 5h saíssemos em caminhada.

Na primeira parte do trajeto caminhamos 7,7 quilômetros até a cidade vizinha, Mogi das Cruzes, precisamente no distrito de Jundiapeba, onde está localizado o descampado da Avenida das Orquídeas; essa foi a nossa primeira parada. Os corpos estavam “ausentes”, entregues às árvores derrubadas, aos entulhos e restos de tubulações de cimento, às árvores cobertas de pipas destruídos e ao horizonte.

Cleiton Pereira Outro momento do rito andarilho em Salesópolis, uma das quatro cidades da região do Alto Tietê (SP) por onde passou

Cleiton Pereira fez um giro de alguns minutos naquele espaço, cujo subterrâneo abriga o rio Jundiaí e o córrego dos Canudos; ambos deságuam no rio Tietê. Caminhamos e giramos tocando com nossos pés a ausência e a insistência (córrego e rio) ainda que não pudéssemos senti-los. Permanecemos 15 minutos nesse descampado, mas quando estamos em estado cada segundo tem a importância de uma eternidade.

Seguimos em direção ao centro de Mogi das Cruzes, caminhando mais 8,7 quilômetros até alcançarmos a próxima parada de descanso, a estação de trem Estudantes, da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, a CPTM. Nesse momento encontramos com uma força impulsionadora fundamental, que cuidou das primeiras ranhuras causadas pelo trajeto longo e frio, nos trazendo café quente, pão de queijo e, principalmente, aquecendo nossas ideias e silêncios iniciais.

Quando o corpo encontra as primeiras dores e a fadiga, existe um grande risco de paralização. O que não foi possível com o grupo. Mesmo numa pausa de 25 minutos – que durou mais que o planejado –, nossos foco e atenção estavam alinhados ao destino, à intenção em memória aos então 557.000 mortos pela Covid-19 e à ira impregnada em nossa carne diante da absoluta negação da vida e do futuro que esse governo produz.

Seguimos em caminhada, balbuciando nossas primeiras canções da estrada, encontrando um caminho sonoro que pudesse ressonar o silêncio que nos tomava. Eu chamo de “silêncio acompanhado” esses primeiros quilômetros. Dentro do Contadores de Mentira desenvolvemos o treinamento da voz a partir do que denominamos “reverberação da voz”, que visa a encontrar tons e tessituras vocais que compreendam caminhos distintos em harmonia com outras vozes. Nesse silêncio acompanhado, sentindo o gosto das primeiras palavras no ar, chegamos ao nosso primeiro ponto de “demarcação” e entrega em estado cênico.

Coube a mim a primeira cena/rito a ser realizada, por meio da qual intencionei a poeta Vani dos Santos, falecida de Covid-19 em 2021. Vani é um símbolo bastante representativo de uma triste e avassaladora estrutura racista e machista. Ela passou décadas tentando publicar seu livro. Morreu vítima da doença e por causa da intencional ausência do governo em comprar vacinas. Carrego a dor de ter conhecido uma poeta, negra, brasileira, que infelizmente não pôde tocar o seu livro. Quantas Vanis morreram em consequência da Covid-19, vítimas do negacionismo do atual grupo político no poder?

Da vida eu só tenho o fôlego, eis o título do livro de Vani dos Santos. E foi imbuído dele que construí minha cena. Não escolhi um lugar. O lugar me escolheu. E foi ali que iniciei a cena: num terreno baldio onde há pouquíssimos meses havia uma casa habitada por uma família que ocupou o imóvel, área da qual só restaram escombros e muito lixo.

Na sala de ensaio, a direção sempre nos instiga a buscar algum ponto de concentração que nos permita atravessar o público, mas que também nos permita ser atravessados por eles e elas.

Havia construído uma cena, preparado os adereços a serem utilizados – mas afinal o que significa deixar-se atravessar pelo que está posto? Que não é o público. Que é a demolição. Que são os escombros. Que é a ausência do afeto, do outro. Que é só ausência! O que é você se preparar tanto para não ver ninguém e sentir todo mundo? O que é você se preparar tanto e ter atuado para o nada? O que é também ter a chance de naquele lugar olhar nos olhos de minha mãe, e ela agradecer e dizer: “Eu briguei agora, porque passaram dizendo que vocês estavam fazendo macumba. Ao que respondi que vocês estavam fazendo teatro”. Mas, e se fosse macumba também, e daí!?

Seguimos ao longo de mais dois dias de caminhada, criando ritos e demarcações na estrada. Percorremos 85,7 quilômetros e demos 866.523 passos até chegarmos à nascente do rio Tietê, em Salesópolis, e nos encontrarmos com o símbolo do início da vida, da abundância, da pureza da água. Um olho d’água.

Daniele Santana Pamela Carmo, Cleiton Pereira e Silas Xavier no Parque Nascente do Rio Tietê, onde brota o olho d’água na cidade de Salesópolis

O que ainda é possível erguer quando arrancam as possibilidades de construção? O que fazer quando arrancam nosso chão? Parar no ar! Em um dos nossos treinamentos para a construção da obra Adiós Paraguay [2019], Cleiton Pereira utilizava mecanismos que nos proporcionava a busca pelo ‘’flutuar’’ e o ‘’parar no ar’’, de modo a encontrar ali uma resposta no corpo sobre o como falar acerca da devastação de 78% da população paraguaia, na guerra que envolveu Brasil, Argentina e Uruguai, a Tríplice Aliança, contra o Paraguai, no século XIX. Ficamos dois anos fazendo esse exercício, mas só agora, após o rito Passos para quem partiu, finalmente pude encontrar uma resposta tanto física como literária… Saltamos e paramos no ar, para seguir atuando em nosso tempo.

Vivenciei várias experiências com o grupo que também foram um marco pessoal, significaram rompimentos para que novas possibilidades surgissem. E com isso, ao longo dos anos, venho acumulando diferentes camadas, sentindo no corpo infinitas demarcações. Iniciamos agora um novo momento de investigação, independentemente de a gente vir a encerrar tudo aquilo que já construímos. Mas todas as obras que foram geradas – e todas em que adentrei e colaborei com sua permanência – também representaram avanços na investigação coletiva e pessoal.

Permanecemos em estado de presença, fazemos muitas ações em estado de presença. A gente entrega o estado de presença, mas o que mais me instiga é que por mais que se criem novas possibilidades para fazer teatro, nós ainda seguimos na crença de que vamos permanecer em estado. E, independente de nosso corpo, de nossa existência, de nossa vida, atores e atrizes do Grupo Contadores de Mentira, quando não mais existirmos, saberemos que instigamos uma multidão com nossos ritos, nossas obras. Muitas pessoas se sentem atravessadas e instigadas a buscar o estado a partir do que nós fazemos, e isso me deixa muito feliz. Podemos não estar, mas sabemos e saberemos que uma multidão foi instigada pelo que a gente criou e cria.

K-ique Calisto é atuador, produtor e gestor do Grupo Contadores de Mentira.

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Rito, microcultura e uma casa

Por Cleiton Pereira

A propósito do festival E(s/x)tirpe – Encontro para Celebração e Rito.

Em 2014, despejamos dois caminhões de terra sobre a avenida em volta de nosso espaço e, ali, durante 30 dias, construímos uma casa, um assentamento, e no último dia do festival a queimamos. Era uma ação contrária às políticas públicas do governo local que nos atacava com suas “pedras”. Era um símbolo da efemeridade do território físico, porém de permanência viva em nossos ritos, por meio de um teatro que trabalha com a ideia de ser testemunho de seu tempo histórico.

Naquela edição foram mais de 50 artistas e coletivos que generosamente ajudaram a construir essa casa de persistência. Ali, criamos ritos, performances, ações de arte urbana, recebemos obras artísticas de grupos e coletivos que reforçam o teatro de grupo no Brasil. Assamos a carne e oferecemos um banquete representando nosso próprio corpo. Tomamos cachaça, dançamos e festejamos a possibilidade de que nosso corpo dançante enfrentasse os tiranos.

E(s/x)tirpe é um festival que acontece a cada dois anos, alinhavado por uma dramaturgia cujo tema é memória e assentamento de resistência cultural. É um festejo que reúne apresentações de grupos que possuem identidade nas margens onde produzem. Grupos que criam contágios em seus territórios. É um encontro em que se demarca a terra onde está situado o Teatro Contadores de Mentira, onde os sentimentos de guerrilha e festa se diluem em dias e noites de “celebração e rito”.

Na edição de 2016, amarramos um barco em uma árvore e perguntamos para a cidade se um grupo tinha condições de viver nela ou precisava seguir para longe… A resposta desse festival gerou, na edição seguinte, em 2018, um grande assentamento, porque naquele ano isso significava adentrar o novo espaço conquistado após anos de luta política. Em uma tenda recebemos grupos, comemos e, mais uma vez, ritualizamos e fincamos estacas no território.

Cleiton Pereira No meio do caminho, flagrante de queimada em estrada de Salesópolis

Há anos nos alinhamos e cruzamos fronteiras com muitos grupos do Brasil e da América Latina. Para além, transbordamos as linhas do mapa e chegamos a alguns países do Caribe e da Europa. Com esses grupos criamos redes, intercâmbios e uma relação de vida e ofício. Construímos pontes e fizemos travessia.

Nossa proposta na realização continuada do festival é que, para além das apresentações, que por si só já representam celebração, subjaz uma dramaturgia que costura nossa posição e militância frente à região na qual existimos e optamos. Região dura [a do Alto Tietê, na Grande São Paulo], boa parte dela caracterizada pela ausência de políticas públicas, massacrada ao longo dos anos. 

Olhamos nosso entorno, nossos fazeres, vemos o movimento da comunidade ao nosso redor e para ela produzimos. Através de banquetes, celebramos ritos urbanos, performance, artigos escritos, intervenções, reflexões e apresentações. É base desse encontro a reflexão sobre como nossa região olha para o teatro, inclusive aquele que tentamos comunicar. Trata-se de um encontro para exercitar o olhar, para a estética e para além dela; para atingir o que nele é essência: o rito. E o rito aqui é traduzido na comunhão da comida, dos artistas e suas obras, nas trocas e discussões, nas vivências e experimentações sensoriais e também físicas. É uma maneira de comunicar nossa existência, nossas recusas, nosso corpo, militância e crença.

E como algo tão presencial, ligado aos sentidos e experiências do encontro, poderia acontecer de forma virtual em tempos pandêmicos? Pensamos então que deveríamos gerar uma egrégora transcontinental [a força espiritual criada a partir da soma de energias coletivas]. Alguma forma simbólica que pudesse reunir grupos históricos do teatro latino-americano.

Para a atual edição, pensamos nos muitos grupos que visitamos ao longo dos anos. Pensamos naqueles que possuem uma vasta experiência em territórios de luta e convicção pelo teatro de grupo, pela coletividade, e por fazerem diferença na história do mundo. Pensamos na cultura popular, nas tradições ancestrais, nos mestres e mestras que dedicam tempo ao ofício e estão imersos nas comunidades onde vivem. Pensamos nos jovens grupos cuja atuação faz transformar a estima e a vontade de viver em territórios sociais precarizados. São artistas e fazedores culturais que nos inspiram a nos manter firmes e a aguentar as lutas. São grupos que possuem um comprometimento, uma identidade, e que aos poucos escrevem seu legado histórico – mesmo que em papel de pão ou por meio da oralidade. Para eles dançamos, com eles nos juntamos.

Ainda acerca da edição de 2021, ela nos exigiu criar conexões internas, revalidar o sentido do teatro de grupo, reposicionar nossa estada neste Brasil que volta a massacrar seres humanos. Em nossa volta há uma epidemia mundial que assola e devasta, sobretudo os países empobrecidos sob o capitalismo perverso, e nos revolta o fato de que nações economicamente hegemônicas continuam pisando sobre nossos corpos. Estamos tentando ser testemunhas deste tempo de tempestades políticas e enfrentando uma outra epidemia de moralização social que passa por cima da democracia, da liberdade do corpo e da liberdade de ter ou não uma crença.

Uma guerra cultural nasceu no Brasil e estamos tentando proteger nossas próprias história, identidade e ancestralidade que têm sido viradas do avesso pelo governo Bolsonaro e esse modo de pensar o mundo através da violência e do ódio. Um grupo de teatro como o nosso precisa pensar formas de combate, de criar contrapontos ao gosto médio e a este modelo político que queima livros e inverte o sentido de nossa construção cultural e da própria história.

Mais de meio milhão de pessoas estão mortas e seus espíritos devem estar perdidos porque não tiveram a possibilidade do rito de morte, deste rito que permite a despedida. Então o rito desta edição do festival foi caminhar durante três dias, 85,7 quilômetros, dando um passo correspondente a cada vítima de Covid-19 no Brasil. E sabemos que dois terços dessas pessoas poderiam estar vivas não fosse a barbárie e os humores descontrolados de nossa instituição federal e de seu representante maior apoiado por milhares de “pessoas de bem” que impulsionam essa devastação e genocídio históricos.

Cleiton Pereira Atuantes K-ique Calisto e Samuel Vital em ação na cidade de Biritiba Mirim, que fez parte do trajeto do rito em lembrança às vítimas da pandemia

O E(s/x)tirpe da vez compreende três capítulos: Corpo Ausente, Preservação dos Sentidos e Ode aos Profanos. Um corpo que não está, uma cultura devastada e um corpo liberto são temáticas sobre as quais temos a urgência de tratar enquanto grupo. Convidamos pares históricos com mais de meio século de jornada, como Odin Teatret, da Dinamarca, e Grupo Cultural Yuyachkani, do Peru. Convidamos coletivos de Cuba que lutam contra o bloqueio econômico perpetrado pelos Estados Unidos desde a década de 1960. Convidamos outros grupos resistentes de Equador, Porto Rico e Colômbia, além de fazedores de Moçambique, Espanha e Brasil. Saudamos mestres e mestras das tradições brasileiras. Serão mais de 50 atividades entre apresentações, performances, rodas de conversa e ações formativas. Desejamos conformar uma egrégora, uma epidemia de otimismo, de corpos bailantes, de risos escancarados, de cachaça na mesa e de libertação antimoralista, assim como elaborar uma despedida de corpos que, infelizmente, não puderam estar na festa, mas cujos espíritos encantados estarão conosco.

E(S)TIRPE: Há mais de 25 anos, evocamos em nossas rezas o mantra: “Nós somos os Contadores de Mentira, uma trupe formada pela pior estirpe das estirpes ruins… Aqui estamos e reparem bem, pois poderíamos não estar e dessa forma tudo seria diferente”.

E(X)TIRPE: Para além do que somos e evocamos nesse mantra, está o nosso movimento e a nossa atitude como artistas na atual conjuntura: extirpar aquilo que delimita a formação de um povo. Extirpar aquilo que priva a liberdade de expressão e criação.

MICROCULTURA: Contadores de Mentira atuam desde 1995 com sede própria em Suzano, Estado de São Paulo, Brasil. Atuamos em rede com conexões em diferentes países. Desenvolvemos pesquisa e possuímos identidade atravessada por reflexões nos campos da antropologia, da história, da política e da sociedade. Há anos descobrimos que era necessário se organizar em coletivos, em redes, em fóruns, na luta por condições de trabalho aos fazedores de cultura. Somos uma microcultura que se organiza, que se transforma e que gera energia e muita produção. Realizamos processos criativos, circulação de espetáculos, cursos, vivências, rodas de conversa, demonstrações de trabalho, imersões artísticas, festivais, encontros e trocas artísticas.

Contadores de Mentira também é um espaço/instituição e coletivo independente que fomenta arte, cidadania e pensamento. Neste um quarto de século percorridos, nos entendemos como uma ilha de reflexões culturais, políticas e sociais, que entende o teatro, sobretudo, como uma ferramenta de intervenção na sociedade. 

No espaço físico fundado em 2012 foram recebidos mais de 400 coletivos culturais, atendendo a mais de 30.000 pessoas. Artistas  representantes de Dinamarca, Colômbia, Peru, Equador, México, Portugal, Macedônia, Índia, Moçambique, Grécia e de outros países estiveram em Suzano através de ações promovidas no antigo Teatro Contadores de Mentira. Somente em 2017, passaram por aquele chão 277 criadores que compartilharam  saberes, pesquisas e obras. Durante todo aquele ano o grupo alcançou diretamente um público de 6.200 adultos e 4.000 crianças. Uma cirande de projetos, espetáculos, festivais, encontros, feiras e, sobretudo, um diálogo de sobrevivência, crescimento, articulação e atitude entre cidadão e cultura.

Existimos fora do grande centro, indo no fluxo contrário ao pensamento de que apenas as geografias hegemônicas são produtoras de cultura. Atuamos em redes colaborativas e criamos articulações com grupos e instituições de todo o Brasil e de outros países. Dinamarca, Peru, Equador, Chile, Colômbia, México, Cuba, Paraguai, Argentina, Uruguai e Índia são territórios nos quais já pisamos, participando de festivais internacionais, criando conexões e intercâmbios em processos de criação e coproduções através do programa Iberescena – Fundo de Apoio para as Artes Cênicas Ibero-Americanas. Atuamos em fóruns, organizações e militâncias históricas de organização da cultura no Brasil. Como alguns dos principais grupos da América Latina, portanto, conciliamos a pesquisa de linguagem e a organização social.

Somos uma microcultura que tenta dar as mãos a outros coletivos humanos. Há muita gente produzindo algo e alguns são extremidades anônimas que geram força em seus territórios. Não são da indústria do entretenimento nem são da vanguarda estética, mas são criadores de vida e, para isso, criam seu próprio sistema orgânico. Grupos cujas escolhas pessoais e acontecimentos históricos transformam a matéria do teatro. Grupos que vivem a discriminação em diferentes níveis: pessoal, cultural, profissional, econômico e político, para citar cinco pontos. Grupos que não são observados pelos escritores, grupos que precisam escrever, mesmo que em papel de pão ou nas paredes, acerca de sua própria história para demarcar o tempo e preservar sua memória, antes que esta morra na margem ou se torne invisível.

Somos uma complexidade de microrganismos culturais que se desenvolvem sob outros aspectos de organização e vida. Tivemos sempre a consciência de que não podíamos ficar indefesos e que teríamos que recolher corpos mortos ao longo do caminho. Durante muitos anos nossos grupos sofreram mutações numa tentativa de sobrevivência, alguns só resistiram à epidemia de serem aceitos quando de fato foram capazes de confrontar sua própria organização e refletir sobre seus fazeres. E essas reflexões só foram possíveis quando os referidos grupos encontraram outras microculturas vivas sob condições inviáveis à própria vida.

Somos um desses grupos que só conseguiram sobreviver quando atravessaram a margem para encontrar outros sobreviventes. Grupos que nos fizeram enxergar que nossa luta não era o exílio e sim a convivência com aquilo que nos oprime, a contrapelo. Nossa própria recusa é uma bússola para mantermos a rota na direção oposta. Durante anos achávamos que iríamos mudar o mundo. Depois, descobrimos que transformávamos a nós mesmos e esta é sem dúvida uma vitória de nossa microcultura.

K-ique Calisto Novo Teatro Contadores de Mentira, obra erguida com contêineres e prevista para ser concluída no final de 2021, em Suzano, na Grande São Paulo

Construir uma casa…

Após muitos anos de luta e de uma discussão profunda sobre espaço público, sobre história e identidade cultural, conseguimos, através de um decreto municipal, a cessão de área pública para a construção de nossa nova sede. Nesses tempos em que vemos espaços fecharem suas portas, sabemos da força e da relevância histórica em poder abrir as portas de um novo espaço cultural independente. A obra foi iniciada em agosto de 2018 e, desde então, empenhamos mais de R$ 250 mil para erguer o teatro. A relação de tempo foi modificada por conta da pandemia, portanto, completamos três anos de construção com a esperança de que os deuses nos permitam finalizar essa etapa até dezembro de 2021.

Inspirados pela experiência da Cia. Mungunzá de Teatro, que montou seu Teatro de Contêiner na região da Luz, em São Paulo, também arquitetamos um espaço com contêineres, entendendo o valor ambiental em construções contemporâneas. Estamos na obra todos os dias, na marcenaria, na pintura, utilizando máquinas na expectativa de que o espaço possa ser uma proteção cultural para muitos grupos da região do Alto Tietê. Queremos manter nossa tradição de redes, de relações, de fruição, de acesso a bens culturais, de combate…

Não haveria a possibilidade de construir o espaço não fossem as redes, a generosidade de grupos que fecharam suas portas e doaram  equipamentos, de grupos que cederam cachês para alimentar o sonho, de gentilezas inesperadas, de uma logística grandiosa apoiada por muitos colaboradores. Nossas mãos estão machucadas e com lembranças do trabalho árduo de construir a própria casa. Tudo isso reforça a convicção de que abriremos a porta para muitos trabalhadores, artistas e nossa comunidade. Que faremos girar essa ciranda de criadores.

Entendemos que o que pensamos e praticamos só faz sentido se a cidade, se os artistas, se as políticas públicas e, sobretudo, se a comunidade entenderem que o teatro que estamos levantando será uma coautoria social, sociocultural. Será um bem público gerado por um coletivo organizado e será uma microcultura de seres humanos dispostos a não ceder frente aos golpes antidemocráticos. Será um espaço livre. Um espaço para se dançar e ousar livremente.

Cleiton Pereira é atuador, produtor, diretor, gestor e membro fundador do Grupo Contadores de Mentira, em 1995; atuante no teatro desde 1987.

Serviço:

Festival E(s/x)tirpe – Encontro para Celebração e Rito

De 13 a 29 de agosto de 2021

No canal do Contadores de Mentira no YouTube

Todas as atividades são gratuitas.

Programação completa em site www.festivalesxtirpe2021.com

Instagram @contadoresdementira

Cleiton Pereira A atuadora Daniele Santana evoca mortos pela Covid-19 em trecho da estrada da nascente do rio Tietê em Salesópolis

Atuantes no rito Passos para quem partiu:

Cleiton Pereira

Daniele Santana

K-ique Calisto

Michael Meyson

Pâmela Carmo

Samuel Vital

Silas Xavier

Alessandro Silva (no suporte)

Vanessa de Oliveira (no suporte)

Soraia Amorim (no suporte)

O Grupo Contadores de Mentira está em atividade em Suzano (SP) desde 1995 e em 2013 passou a administrar teatro de mesmo nome. Entre os espetáculos dessa trajetória, estão Adiós Paraguay, O incrível homem pelo avesso, Curra – Temperos sobre Medeia e o solo Cícera.

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