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Artigo

No interior do poema ‘Foi Carmen’

7.1.2022  |  por Emilie Sugai

Foto de capa: Emidio Luisi

Busco falar a partir do processo de criação do espetáculo Foi Carmen, de 2005, concebido e dirigido por Antunes Filho. No início tínhamos como referências a dança-teatro da alemã Pina Bausch, o universo do butoh do japonês Kazuo Ohno e, como tema, a expressividade da artista luso-brasileira Carmen Miranda. Os apontamentos a seguir rememoram o interior desse caminho.

Como conheci Antunes Filho

Era 1995 quando o diretor Antunes Filho (1929-2019) me convidou para um trabalho. Nessa época eu estava mergulhada nos processos do diretor nipo-brasileiro Takao Kusuno (1945-2001) e havíamos estreado o espetáculo O olho do tamanduá. Conforme artigo do crítico e teórico Sebastião Milaré (1945-2014) publicado no mesmo ano na Revista USP, sob o título Convergência Brasil-Japão no teatro, “os princípios do butoh foram introduzidos na cena brasileira por Takao Kusuno, mas como dança-moderna. Receava Takao a eclosão de um modismo sob o nome butoh”. Kusuno estava radicado no Brasil desde 1977, quando realizou o primeiro trabalho no ano seguinte, A dança e o jazz, apresentado no Masp com elenco composto de atores e dançarinos brasileiros: J.C Viola, Julio Vilan, Edson Claro, Marilda Alface e Dorothy Lenner.

Kusuno foi um destacado diretor que recebeu prêmios e assinou espetáculos junto a Renée Gumiel (1913-2006), Ismael Ivo (1955-2021) e Denilto Gomes (1953-1994), dentre outros nomes das artes da cena. No ano de sua morte, em 2001, a pesquisadora Christine Greiner referiu-se a ele, nas páginas do Caderno 2, em O Estado de S. Paulo, como “o mestre que muito influenciou a criação nacional”.

Fiquei com esta ‘impossibilidade’ de dançar me rondando e logo nas primeiras semanas de ensaio levei a Antunes Filho uma corporalidade cênica. Era ainda um esboço, uma forma de expressar sentimentos com as costas. Tratava-se de corporificar o que era um paradoxo para mim, o de ‘dançar La Argentina com nuances de Carmen’. Com esse esboço Antunes pediu para vendar meu rosto de preto e colocar um grande laço preto. Penso que a partir disso ele traçou o rumo da personagem que se tornou A Que Foi Carmen. Esta dança se tornou a última ‘aparição‘ ao Malandro. Ela vem com uma máscara na parte de trás da minha cabeça. Um dado curioso é que muita gente não se dava conta de que eu estava dançando de costas, e isso só era revelado quando a música parava e eu me virava ao público

Fiz parte da Cia. Tamanduá de Dança-Teatro fundada com este nome no ano da estreia da obra contemplada com prêmios como o Troféu Mambembe de Dança. A importância de O olho do tamanduá residia na junção do butoh com o universo indígena brasileiro, sob codireção de Felicia Ogawa (1945-1997), companheira e parceira de criação de Kusuno. No elenco, sete dançarinos-atores: Dorothy Lenner, Eros Leme, José Maria Carvalho, Marco Xavier, Patricia Noronha, Siridiwê Xavante e eu.

Segundo anotou Ogawa em 1997, no catálogo do espetáculo, “O olho do tamanduá buscou, a partir da observação do universo dos índios brasileiros, o resgate da essência dos ritos para serem recriados e apresentados cenicamente (…) com uma aproximação com o povo Xavante”. Em cena, havia a presença de corpos de pessoas indígena, negra, branca ou amarela em referência à brasilidade, traço cultural da miscigenação racial, reunindo também o tamanduá – bicho em extinção –, a cultura indígena da relação do homem com a terra e suas mitologias, confluindo assim para um grande poema cênico.

Antunes Filho e Takao Kusuno já se conheciam por intermédio das artes cênicas. Eu acabei me tornando um dos elos entre os diretores ao estabelecer alguns diálogos, entre trocas e convites, visto que Kusuno pouco falava português e sua esposa, que se fazia de intérprete, havia falecido. Trabalhei com Kusuno por uma década, até o ano de sua morte. Nesse período era comum encontrar Antunes nos importantes espetáculos de teatro que ocorriam em São Paulo, muitos deles em unidades do Sesc, fazendo parte de festivais internacionais. Aliás, meu contato com o encenador de Macunaíma não se desfez, fiz questão de convidá-lo a assistir meus primeiros trabalhos autorais em dança.

O convite para integrar o elenco de Foi Carmen

Em 2004, Antunes Filho me convidou a participar da criação de Foi Carmen com a seguinte fala: “Gostaria de fazer uma paráfrase à obra de Kazuo Ohno com a figura da Carmen Miranda”. Eu não tinha muita clareza do que queria dizer com isso. Talvez por ver um paralelo entre o butoh e o universo indígena em Takao Kusuno ele tenha desejado unir o butoh ao samba. Seja como for, era uma proposta desafiadora e recheada de correspondências no que se viu depois. Me senti estimada e, ao mesmo tempo, instigada com a intenção de Antunes de colocar uma performer nipo-brasileira para fazer parte da criação.

Antunes Filho teve essa ideia em circunstância especial ao receber o convite para participar do evento em comemoração ao centenário de aniversário de Kazuo Ohno no Japão, em 2005, uma honra ao diretor de renome internacional e sua relação com o mestre de butoh. Uma observação: no Japão acrescenta-se um ano à idade da pessoa. Para nós, Kazuo Ohno estava com 99 anos.

Naquele ano tínhamos, por um lado, o marco dos 50 anos da morte de Carmen Miranda (1909-1955). Ela nasceu em Portugal, veio ao Brasil ainda criança, foi cantora, atriz e dançarina. Ganhou o codinome de Pequena Notável nas rádios em que cantava. Introduziu um novo modo de interpretar canções do samba, marchinhas de carnaval e outros gêneros. Foi convidada a atuar no circuito da Broadway, onde fez sucesso e criou sua marca registrada: os sapatos plataforma – por ser baixinha –, os turbantes e balangandãs inspirados nas baianas, e um jeito único de cantar performando. Possuía um carisma inigualável. Assim como sua trajetória de fama foi meteórica, sua vida, ao final, foi trágica, vindo a falecer precocemente.

Por outro lado, se completavam 100 anos de Kazuo Ohno, artista que trazia em sua memória La Argentina, pseudônimo da bailarina de flamenco Antonia Mercé y Luque, a quem ele viu dançar em 1929, no Teatro Imperial de Tóquio. La Argentina era filha de espanhóis, nascida em Buenos Aires. Na época Ohno era instrutor de ginástica em uma escola na cidade de Yokohama. Esse encontro muito o comoveu. Meio século mais tarde criou a obra Admirando La Argentina, por meio da qual se transfigurou em La Argentina e concebeu um memorável poema cênico. Decidiu que teria que dançar vida e morte simultaneamente.

Emidio Luisi A partir da esquerda, atuantes Emilie Sugai, Paula Arruda, Patricia Carvalho e Lee Taylor na remontagem de ‘Foi Carmen’, em 2008, três anos após a estreia em Yokohama, numa criação de Antunes Filho apresentada em celebração ao centenário de vida do dançarino e coreógrafo japonês Kazuo Ohno

Admirando La Argentina foi a obra-prima de Kazuo Ohno dirigida pelo também dançarino e coreógrafo Tatsumi Hijikata (1928-1986). Estreou no Japão três anos antes de ficar conhecida mundialmente em 1980, na programação do XIV Festival Internacional de Teatro de Nancy, na França. Ohno contava 71 anos e havia nove não pisava os palcos, reavaliando sua arte, fazendo apenas experimentos no cinema. O que seria uma despedida em cena tornou-se um novo florescimento para Ohno, dado o impacto da obra sobre o público. Admirando La Argentina recebeu um importante prêmio da crítica de dança no Japão no ano de estreia.

“La Argentina faleceu muito cedo, teve uma formação de balé clássico e suas performances deviam tanto à sua personalidade instintiva no palco e sua noção de teatro quanto às formas de danças espanholas tradicionais. Ela se destacou em sua época por retirar o flamenco do meramente folclórico para uma linguagem universal. Por volta dos anos 20, torna-se uma bailarina de reconhecimento internacional”. Era esse o enunciado que espectadores liam no fôlder da primeira vinda de Kazuo Ohno ao Brasil, em 1986, um feito e tanto que teve como organizadores o próprio Takao Kusuno e a Felicia Ogawa. O artista ainda retornou ao país em 1992 e 1997 – entre essas duas décadas dançou em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Santo André e Londrina.

O processo criativo e o modo de trabalhar de Antunes Filho em Foi Carmen

Começamos o processo criativo de Foi Carmen em 4 de dezembro de 2004 ao lado das atrizes Juliana Galdino e Arieta Corrêa, do sonoplasta Raul Teixeira e do cenógrafo J.C. Serroni. No início de 2005 a Paula Arruda se juntou ao elenco, conformando quatro mulheres em cena.

Antunes Filho tinha em mente que eu dançasse o imprevisível. Foi a primeira coisa que me disse no primeiro ensaio. Um tanto chocada, não sabia o que ele queria dizer com isso. Na época fiz relação com o que Kazuo Ohno argumentava sobre o disparate. Dizia que para dançar o disparate “percebe-se quando se dança com a cabeça”. Como eu entendo: não dançar de forma racional ou mental. Meu desafio era não pensar no imprevisível e sim ser imprevisível. Algo de singular. Antunes acrescentou esta indicação: “Dançar a La Argentina com nuances de Carmen Miranda”. A ideia era muito surpreendente. Mas como dançar?

A partir do convívio com Antunes Filho encontrei um modo de criar totalmente diferente de minha experiência passada. Com Takao Kusuno trabalhávamos com poucas falas, algumas indicações e imagens para se improvisar. Eu, tacitamente, me embrenhava nestas propostas sem titubear e algo ia se construindo, pouco a pouco, com um tempo relativamente dilatado no processo criativo. Já com Antunes sobreveio algo novo, diferente e muito contrastante, como um despertar desafiador. Ele nos colocava em círculo para falar, cada qual com suas ideias e nuances criativas. Eu, que era de poucas palavras, via-me na roda com Juliana Galdino, Arieta Corrêa e Antunes Filho. Muitas vezes ele interrompia o que fazíamos durante o ensaio para refletir acerca do ofício do ator.

Fiquei com esta impossibilidade de dançar me rondando e logo nas primeiras semanas de ensaio levei a Antunes Filho uma corporalidade cênica. Era ainda um esboço, uma forma de expressar sentimentos com as costas. Tratava-se de corporificar o que era um paradoxo para mim, o de “dançar La Argentina com nuances de Carmen”. Com esse esboço Antunes pediu para vendar meu rosto de preto e colocar um grande laço preto. Penso que a partir disso ele traçou o rumo da personagem que se tornou A Que Foi Carmen. Esta dança se tornou a última aparição ao Malandro. Ela vem com uma máscara na parte de trás da minha cabeça. Um dado curioso é que muita gente não se dava conta de que eu estava dançando de costas, e isso só era revelado quando a música parava e eu me virava ao público.

Emidio Luisi Em artigo para o Teatrojornal, a coreógrafa, performer e dançarina butoh Emilie Sugai rememora o processo de criação de ‘Foi Carmen’, desde sua gênese em 2004 até o encerramento do ciclo do espetáculo em 2011

Em pleno 25 de dezembro de 2004 tínhamos 35 minutos de cena. E três personagens sendo delineadas: a do Malandro, personagem masculino realizado pela atriz Juliana Galdino, trabalhando o fonemol – uma língua fictícia inventada por Antunes Filho e utilizada em muitos de seus trabalhos. Galdino criava através do fonemol algo verossímil a uma fala da vida de Carmen Miranda. No palco, ela fazia caminhadas em grande círculo e, súbito, parava com gestos precisos e desenhados, tal qual flashs fotográficos. A Arieta Corrêa trabalhava uma cena em que sua corporalidade iniciava em movimentos fragmentados, das mãos aos pés, até tomar seu corpo por inteiro, e isso trazia algo de trágico à cena. Já eu fazia a Carmen Miranda fantasmagórica e trabalhava com os objetos de cena que um dia fizeram parte de seu imaginário, tais como bananas, sapatos plataforma, pandeiro e balangandãs, em movimento contínuo e contido de forma ritualística ao som de tambores japoneses.

Em 30 de dezembro finalizamos os ensaios daquele ano. Com a entrada de Paula Arruda no início de 2005, Antunes acabou criando “as três Carmens”, brincando com os três tempos: passado, presente e futuro. A Carmen Menina era feita por Arruda, atriz miúda, resultando a própria menina em cena. Ela entrava dando passos largos como a brincar de medir o espaço. Trazia objetos como cadeiras ou um microfone de proporção maior que sua estatura, desenhando assim o espaço cênico. A Passista era feita por Corrêa, que sambava sem exatamente sambar, algo que imprimia descontinuidade de forma intencional. E A Que Foi Carmen, feita por mim, remetia à Carmen Miranda fantasma que deixa seus rastros ao Malandro. A figura do Malandro feita pela Galdino realizava toda a costura da peça, com uma atmosfera de nostalgia do que ficou da Carmen Miranda, até sua aparição final como que reavivando o vazio deixado por ela.

Em 16 de março de 2005 estreamos na abertura do Festival de Teatro de Curitiba. Naquela noite inesquecível, uma prova de fogo para as atrizes, Antunes Filho subiu ao palco antes da apresentação. Ele queria preparar o público para o trabalho intimista que certamente não fora feito para aquela plateia gigante do Teatro da Reitoria que parecia estar no clima de entretenimento. Dito e feito, levas de pessoas foram deixando a sala durante a apresentação. Lembro-me dos bastidores dessa sessão. Antunes nos deu suporte com todo seu carinho. De certo ele nos preparava para o que não seria uma ovação.

Na sequência, e ainda em março, rumamos para o Japão, precisamente para Yokohama. O palco foi montado ao ar livre, tendo como paisagem natural um rio daquela cidade que passava por trás do espaço cênico. Para tanto, foi montada uma pequena arquibancada na plataforma pertencente ao equipamento cultural chamado BankART Studio. Lembro-me de Antunes Filho muito contrariado, pois o palco foi montado em espaço aberto. Talvez ele achasse que o espetáculo ficaria prejudicado, o que não se confirmou depois.

A apropriação da tênue luminosidade do entardecer, a entrada das luzes cênicas ao anoitecer e os reflexos do rio ao fundo, tudo isso fazia parte do plano de iluminação dos organizadores japoneses. Os produtores brasileiros que estavam conosco, a Beth Accioly e o Ricardo Muniz Fernandes, foram excepcionais mediadores em todas as situações de possível conflito com as quais estávamos nos deparando. Recebemos toda uma infraestrutura e cuidados excepcionais da produção local no acolhimento ao Grupo de Teatro Macunaíma e ao então coordenador do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT_Sesc. Não por acaso, ao final da última de duas apresentações, ao som de samba, aconteceu o comovente encontro de Kazuo Ohno com Antunes, aquele em cadeira de rodas, já quase cego e ausente, trazido por seu filho Yoshito Ohno (1938-2020).

No ano de 2005 participamos do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto e depois fizemos temporada no Rio de Janeiro, no Festival Antunes Filho RJ, organizado pelo Sesc do estado. Em 2008 o diretor decidiu remontar Foi Carmen com a entrada de Lee Taylor para fazer o Malandro e Patricia Carvalho, a Passista, já que Juliana Galdino e Arieta Corrêa não faziam mais parte do CPT.

Esse núcleo deu outro fôlego ao Foi Carmen. A exemplo da presença de Taylor sincronizada ao papel do Malandro, o samba no pé da Passista de Carvalho e ainda algumas modificações como: a Carmen Menina passou a contar em voz alta suas passadas e o ajuste de tempos com as três senhoras de preto olhando para o vazio da cena com o microfone no centro do palco, junto ao público. A química do novo elenco transformou sutilmente o clima do espetáculo. Realizamos bem-sucedidas temporadas no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, em 2008 e 2009. Depois fomos ao Recife para participar do evento O Universo de Antunes Filho e também ao Festival Internacional de Teatro de Cali, na Colômbia, em 2009. Em 2011, a peça encerrou seu ciclo com última alteração no elenco: Mariah Teixeira substituiu Paula Arruda para realizarmos uma temporada no Teatro Nelson Rodrigues da Caixa Cultural do Rio de Janeiro, além de viajarmos ao Festival Internacional de Teatro de Lima, no Peru.  

Uma vez o trabalho criado ou remontado, Antunes Filho não mais o acompanhava, deixando que seus assistentes o fizessem por ele. Essa era uma confiança plena do diretor em seu elenco e equipe. Antunes fazia marcações cena por cena, passo por passo, tudo sendo definido de antemão, com as ideias se concatenando umas às outras. Ao mesmo tempo, estávamos livres para criar nossas danças e propor ideias. Como podemos dizer sobre a relação do ator e seu diretor? O que nasce antes com o ator, o que se potencializa junto ao diretor?  Ou vice-versa?

Reprodução
Reprodução
Reprodução Sequência de frames do raro registro em vídeo ao final da segunda apresentação de ‘Foi Carmen’ em Yokohama, no Japão, em 2005, encenação de Antunes Filho no marco dos 100 anos de Kazuo Ohno, então acompanhado do filho Yoshito, realizada ao ar livre, rio ao fundo, no curso entre o entardecer e o anoitecer

Antunes Filho e Kazuo Ohno

Mais uma vez recorro ao fôlder da primeira vinda de Kazuo Ohno ao país, em 1986, e de lá retiro a seguinte fala de Antunes Filho: “Tudo é poema. O improvável, o provável; as possibilidades de vida, as possibilidades de morte. O ressurgimento, a morte são todos temas que te atacam neste teatro butoh através de Kazuo Ohno… É altamente dramático cada momento, tudo aquilo é improvisado. Não! Não é improviso, é a própria condição; paixão. É por isso que não é apenas dança, é teatro: teatro-dança. Ele coloca sua impressão a cada momento, é realmente um soco no estômago, permanentemente. Poemas!!! E a idade dele também é importante: a criança, o jovem e o velho, a gente vê tudo isso em Kazuo Ohno”.

Encontrei no meu caderno da época da criação de Foi Carmen um comentário de Antunes Filho a propósito da dança de Kazuo Ohno: “Ele sempre tem um algo em mente, ao contrário dos dançarinos que dançam o movimento pelo movimento, isto pode-se ver em seu olhar”. Penso neste algo como o que não é possível de ser verbalizado, o impalpável, o vazio eterno presente na arte de Kazuo Ohno.

Ainda nesse caderno havia anotações de esboços coreográficos de Kazuo Ohno acerca de Admirando La Argentina. Pois pedi a meu pai, Hyron Sugai (1929-2017), para traduzir esse conteúdo ao português. Eis um trecho:

O toureiro em sua elegância, braços como pluma ao vento, os dedos como borboletas que seduzem, um tronco alto, mais alto que as nuvens que percorrem o céu. Pernas ágeis, mas silenciosas como patas de ganso que perfuram as águas silenciosas de um lago.

A dança de Kazuo Ohno ia muito além do visível, transfigurando-se em La Argentina em plena poesia de seu corpo e espírito. Isto não é um feito comum. É extraordinário. Exige dedicação, técnica e entrega. E Foi Carmen resultou em obra poética de Antunes Filho para homenagear o mestre de butoh.

Tive a oportunidade de visitar Antunes Filho no hospital seis dias antes de seu falecimento, ocorrido em 2 de maio de 2019. Fui com o Lee Taylor. Na cama, debilitado, ele ainda nos recebeu com seu jeito brincalhão. Entre a lucidez de sua memória e sua imaginação inventiva pude ver como era realmente um incansável homem de teatro, um espírito que não cabia em seus 89 anos. Contamos que estávamos trabalhando numa criação, Taylor e eu, e Antunes nos estimulou com algumas de suas ideias. Ao final, ainda me aconselhou como artista tecendo elogios. Senti que ali havia uma admiração mútua a atravessar-nos sem tempo-espaço. Sinto-me privilegiada em ter sido atuante e testemunha destes fatos.

Coreógrafa, performer e dançarina butoh, desenvolveu uma linguagem própria, em criações solos e em grupos, geradas das influências recebidas de Takao Kusuno, das pesquisas relacionadas às memórias do corpo e de colaborações com artistas da dança, do teatro e cinema. Recebeu diversos prêmios, dentre eles Bolsa Vitae de Artes, Bolsa UNESCO-Aschberg, Prêmio APCA de melhor concepção em dança e Prêmio Denilto Gomes pela Cooperativa Paulista de Dança de melhor espetáculo solo. Sobre meus trabalhos, visite o site www.emiliesugai.com.br. Siga nossa hashtag no Instagram: @emilie.sugai e @nucleotabi.

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