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Entrevista

A potência do fim

12.2.2022  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Valéria Felix

O ano iniciou com fechamentos de ciclos pessoais e institucionais num centro de pesquisa teatral dos mais referenciais do planeta, o Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards. Sediado na cidade italiana de Pontedera desde 1986, quando o encenador polonês Jerzy Grotowski (1933-1999) aportou por lá – quatro anos após deixar seu país, sob a lei marcial, e emigrar primeiro para os Estados Unidos –, o espaço viu o diretor associado Mario Biagini, italiano, anunciar sua saída em 1º de janeiro e, 30 dias depois, o diretor artístico, Thomas Richards, estadunidense, decretar o fim das atividades do Workcenter.

Nesses 35 anos, Biagini e Richards, ambos também atores, participaram de ações relevantes no Brasil, inclusive na ocasião em que Grotowski protagonizou simpósio e demonstração de seu método no Teatro Sesc Anchieta e na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, entre setembro e outubro de 1996, numa jornada intitulada A Arte como Veículo – conforme assim denominou e desenvolveu a fase final de seu percurso artístico.

Akropolis (1962), O príncipe constante (1965) e Apocalypsis cum figuris (1968), bem como suas variantes, são os espetáculos mais universalmente conhecidos encenados por Grotowski junto ao seu então grupo Teatro Laboratório, na cidade polonesa de Opole e depois em Wroclaw. Nos anos 1970, ele anunciou que não dirigiria mais espetáculos, dando início à fase parateatral ou da “cultura viva”. No final da mesma década, do parateatro emergiu o projeto Teatro das Fontes, interrompido em 1982, quando Grotowski deixou a Polônia. A partir de 1986, a convite da Fondazione Pontedera Teatro, transferiu-se para a cidade toscana onde criou o Workcenter of Jerzy Grotowski, a partir de 1996 Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards.

O que eu peço é algo que vai além de um trabalho de grupo, algo diferente, que eu não sei o que é, porque eu comecei o trabalho que faço há 35 anos, então eu tenho que fazer um grande esforço para abandonar um hábito mental e comportamental que eu tenho. O que pode existir, ao invés de grupo, é mais como uma constelação ou uma nuvem. Uma nuvem de pessoas que compartilham algumas necessidades, algumas esperanças, e que colaboram de uma maneira muito fluida nas fendas de que falei

Mario Biagini

Um dos ícones do teatro mundial na segunda metade do século XX, interlocutor do italiano Eugenio Barba e do inglês Peter Brook, Grotowski teve, portanto, em Richards e Biagini continuadores essenciais de sua filosofia de trabalho.

Mote desta publicação, Biagini assim conjecturou no artigo Desejo sem objeto, publicado em 2013 na Revista Brasileira de Estudos da Presença, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: “Por uma razão ou por outra, na parte do mundo em que nos tocou viver, aos 40 há uma grande probabilidade de que estejamos na metade de nossas vidas. Para a maior parte da humanidade neste planeta, entretanto, esta mesma idade frequentemente coincide com a velhice e com a antecâmara da morte. Somos privilegiados, ao menos estatisticamente: temos mais tempo. Entretanto, enfrentamos o problema do que fazer com todos esses anos. É a mesma coisa como nos ensaios no teatro: você é um diretor, você cria as condições nas quais pode trabalhar por três, seis meses com atores em um espetáculo e, com frequência, como observou Grotowski, depois das primeiras semanas você já não sabe mais o que fazer com os atores. A mesma coisa pode acontecer conosco na vida. Como vivê-la sem deixar que passe por nós e não sabendo mais o que fazer com ela?”.

Ao escrever sobre a pesquisa do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, do qual, como se disse, participou desde 1986 e se tornou uma das figuras centrais, Biagini fala de questões que lhe são caras, o trabalho de grupo e a transformação de si. Herdeiro das técnicas desenvolvidas no campo da performance pelo encenador polonês, após sua morte, em 1999, deu continuidade ao núcleo artístico sediado em Pontedera, ao lado de Richards. Quando começou a trabalhar com Grotowski e sua equipe, em princípio foi convidado a ficar por três semanas, período prolongado por mais três semanas. “Depois, não pensei mais nisso. Tinha gente indo e vindo, e naquela época nada era estável, fixo. Fiquei – aproveitando a oportunidade que me foi dada, aprendendo e criando com os outros, descobrindo constantemente novas questões – dizendo a mim mesmo que continuaria até que alguém me dissesse para sair, ou até que outras circunstâncias e desejos me chamassem para outro lugar”, recorda, agora em texto recente, de 1º de janeiro de 2022, no qual anuncia sua saída do Workcenter e o fim do projeto Open Program.

Passadas três décadas e meia daquela experiência inicial, aos 57 de idade e diante do anseio de responder à realidade de seu tempo, o artista extinguiu o grupo no qual foi responsável pela direção desde 2007 dentro do Workcenter, com colaboradores de diferentes países e continentes e por meio do qual dirigiu quatro performances baseadas na poesia do estadunidense Allen Ginsberg (1926-1997). “Nunca parei de aprender, mas não quero ensinar. Em vez disso, quero dedicar meu tempo e energia restantes para explorar o que as pessoas podem estudar juntas, quais são as questões fundamentais que nos guiam e como podemos crescer individual e cooperativamente. Quero continuar aprendendo, especialmente aprendendo a pensar, de maneiras que ainda não consigo imaginar”, argumenta na mensagem. Seu novo projeto, Accademia dell’Incompiuto (Academia do Inacabado), surge como uma entidade independente, fruto de concepção e responsabilidade compartilhadas e que, em suas palavras, servirá a objetivos coletivos e individuais. “Para o que quero fazer agora, são necessárias circunstâncias radicalmente diferentes, nas quais não estou em posição de autoridade”, continua, no texto.  

Trinta dias após o anúncio, foi a vez de Richards divulgar nota informando a decisão de fechar o Workcenter. “Este ano farei 60 anos e estou entrando em uma nova fase da vida. Enquanto me esforço para compreender os chamados internos desta fase, encontro a necessidade de refletir sobre a prática na qual tenho me engajado nos últimos 35 anos, a fim de ter uma chance de descobrir seus próximos passos. Com isto em mente, gostaria também de tomar nota da decisão do meu colega de longa data, Mario Biagini, de se desligar do Workcenter e iniciar um processo de trabalho independente do mesmo. Eu apoio plenamente sua decisão.”

Em sua mais recente passagem pelo Brasil, em dezembro de 2021, Biagini já dava sinais que embarcaria em nova jornada. Durante conferência na programação do Ciclo – Circuito de Artes e Conceitos de Londrina, no norte paranaense, transcrita abaixo e sob mediação da produtora Patricia Braga Alves, sócia na Palipalan Arte e Cultura, idealizadora da iniciativa, ele falou o seguinte, ao ser questionado sobre seu futuro na produção teatral: “De certa forma, eu senti, antes da pandemia e durante ela, que, como muitas vezes acontece na vida de um grupo, você pode ver que há ondas: ondas de desenvolvimento, crise, estagnação; desenvolvimento, crise, estagnação. Agora eu percebo que junto à situação estressante da pandemia havia no grupo um momento de estagnação, de dissolução”. No evento realizado no Espaço Vila Rica, transmitido em tempo real pelo YouTube, Biagini falou em português, discorrendo sobre seu ofício, acerca de como suas ações foram impactadas a partir do novo coronavírus, ideias para o futuro e o trabalho teatral de grupo.

East News O diretor polonês Jerzy Grotowski (1933-1999), que ancorou o Workcenter em 1986, na Itália, a convite da Fondazione Pontedera Teatro

Pouco antes da pandemia, em novembro de 2019, o artista havia estado no Brasil para o Seminário Internacional Grotowski 2019: Uma Cultura Ativa, no Rio de Janeiro. Em Londrina, cidade notabilizada por histórica relação com as artes da cena e do corpo em 54 anos do Festival Internacional de Londrina, o Filo, esteve acompanhado de integrantes de seu grupo: Felicita Marcelli (Itália), Jorge Romero (Colômbia) e Asli Turan (Turquia), além de colaboradores do Brasil, Chile, Coreia do Sul e Colômbia. Conduziu workshop para atores, músicos e participantes da ação Cartão de Visitas, realizada dentro do Ciclo no biênio 2020/2021, cujos trabalhos aconteceram de forma remota – o coletivo Ciranda da Paz, a Plenária de Mulheres Negras do Norte do Paraná, o projeto Brisa/Funcart e os estudantes indígenas ligados à CUIA – Comissão Universidade para os Índios, da Universidade Estadual de Londrina (UEL). A atividade culminou na apresentação de Sedentos (Thirsty), baseado no livro A grande bebedeira (1938), do escritor francês René Daumal (1908-1944), na forma de work in progress, com coro de vozes, leituras dramáticas de trechos, execução de músicas ao vivo e outros elementos cênicos.

A seguir, a transcrição editada da conferência de Biagini em Londrina.

*

Patricia Braga Alves – Mário é um grande amigo, uma pessoa que tem estado conosco, com a Palipalan Arte e Cultura e o Ciclo desde o início da pandemia, e é ele quem tem nos inspirado a estar aqui hoje fazendo o que sabemos fazer – fazer arte e difundir cultura. Mario, como você analisa, hoje, a produção teatral no mundo pandêmico?

Mario Biagini – Bom dia a todos, obrigado, Patricia. Gostaria de agradecer a todas as pessoas que tornaram isto possível de estar acontecendo agora, e também gostaria de pedir desculpas pelo meu português ruim, não consigo falar muito bem, mas vou tentar. A primeira coisa que tenho a dizer é que tudo que vou dizer aqui não pode ser tomado como absoluto. Porque posso falar por mim mesmo, talvez possa falar por algumas das pessoas ao meu redor, mas não posso falar em nome de todos os outros. Acredito que cada pessoa, cada grupo, cada instituição tem que se perguntar sobre o que é necessário e possível hoje. Portanto, não posso fazer declarações que tenham que ser consideradas válidas para todas e todos, seria muito perigoso, porque cada pessoa tem uma situação diferente; cada país, cada cidade, biografias diferentes, idiomas diferentes.

O que posso falar é sobre o que posso ver e perceber muito perto de mim, diretamente. Nos últimos dois anos, fizemos muitas coisas juntos na internet, mas é muito diferente depois que você realmente conhece essas pessoas. Na internet, você pode ter ilusões, sonhos, imaginação que não correspondem à realidade. O que eu posso ver agora que diz respeito ao meu fazer teatral, porque há muitos diferentes, tem a ver um pouco com a ideia e a maneira de trabalhar em grupo. Você sabe que nas décadas de 60 e 70, e depois nos anos 80, o trabalho dos grupos teatrais tinha um lugar importante na cultura teatral, tinha um significado. Agora percebo como se estivéssemos usando roupas muito apertadas, que fazem você se sentir preso, que não permitem que você se movimente livremente. Para mim, agora a ideia de trabalho de um grupo fixo é um pouco apertada. Vou tentar explicar o porquê.

Há três razões: a primeira é uma razão sociológica. Quando os grupos de teatro começaram nos anos 60 e 70, eles fizeram uma espécie de revolução no mundo do teatro, começou a ideia de que o grupo de teatro é uma alternativa diante de um modelo de vida proposto à sociedade. Agora, mais ainda, percebo que, de fato, cada nível da sociedade justifica outro. Penso que mesmo que muitas coisas tenham acontecido nos anos anteriores em relação à arte, mas também à maneira como ela funciona, percebo ao mesmo tempo que os grupos de teatro reproduzem, de forma oculta, dinâmicas que estão presentes na sociedade como um todo. Veja, estou falando de uma maneira muito relativa, como se houvesse apenas uma sociedade, mas há muitas. E dentro de uma sociedade, existem várias sociedades, como existem muitos tipos de grupos. Portanto, tudo o que eu digo deve ser relativizado.

Assim, por exemplo, deste ponto de vista, digamos sociológico, há algo que sempre me surpreende. Você tem um grupo, ou um teatro, e você tem a direção artística e tem o trabalho administrativo e organizacional, como duas funções, mas essas duas funções são hierarquizadas. O que é importante, o que se apresenta é a direção artística, e geralmente o diretor artístico é um homem, raramente é uma mulher. Muitas vezes, por outro lado, as pessoas encarregadas da organização como um todo, que fazem todo o restante, são mulheres. É um exemplo muito simples, não é? Mas acho que, especialmente agora, quando os recursos para fazer teatro, para fazer o que chamamos de cultura estão diminuindo, acho muito importante começar a pensar num mundo profissional onde a ideação, porque também é uma ideação, a ideação administrativa e a artística caminham juntas. Portanto, isso seria uma grande mudança, a partir do caminho estabelecido neste momento.

O segundo ponto poderia talvez ser chamado de psicológico. Principalmente nas décadas de 60 e 70, quando os grupos lutavam contra um certo tipo de teatro, que era o teatro oficial, era muito importante que os grupos tivessem uma identidade muito forte. Talvez seja algo que aconteça a todos os grupos humanos, a todos os coletivos humanos. Assim como um indivíduo, um grupo também precisa ter sua identidade. Mas isso para mim agora é uma espécie de prisão. Por quê? Se eu preciso fazer parte de um grupo, se eu preciso de uma ideia de mim mesmo, uma identidade tão forte, o que pode acontecer é que eu irei procurar ao meu redor, ao redor do grupo, todos os fenômenos que refletem, para mim, a identidade que eu quero ter. Sinceramente, não sei como encontrar a solução para isto, mas sinto, especialmente agora, que é realmente necessário buscar uma alternativa a isto. Como fazer isso, eu não sei.

Acho que, como disse antes, agora que temos poucos recursos, temos que trabalhar nas fendas, nos lugares onde é possível fazer algo, mesmo que seja algo muito simples, mesmo que seja algo muito pequeno. E depois encontrar algumas coisas que nos levam a imaginar algo em que não pensamos ontem e nem hoje.

Simona Fossi Cena de ‘I am America’, direção de Biagini junto ao Open Program, um dos núcleos do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, do qual se desligou no mês passado e o centro de pesquisa também foi fechado

O terceiro ponto, podemos dizer, é econômico. Se você tem que caçar o dinheiro para um trabalho contínuo de um grupo, o ano inteiro todos os anos, você precisa de financiamento público, por exemplo, então você precisa de um país rico. E se há países ricos, significa que há países pobres. Então o que eu peço é algo que vai além de um trabalho de grupo, algo diferente, que eu não sei o que é, porque eu comecei o trabalho que faço há 35 anos, então eu tenho que fazer um grande esforço para abandonar um hábito mental e comportamental que eu tenho. O que pode existir, ao invés de grupo, é mais como uma constelação ou uma nuvem. Uma nuvem de pessoas que compartilham algumas necessidades, algumas esperanças, e que colaboram de uma maneira muito fluida nas fendas de que falei. É isso aí.

Alves – Mario, vou fazer duas perguntas ao mesmo tempo. Você parece ser estimulado pela diversidade cultural dentro de seu próprio grupo, no Open Program. Como lidar com essa diversidade cultural e como foi, também, para vocês, o desenvolvimento dessas relações durante a pandemia? O que foi diferente, mudou com o tempo, aonde você chegou, o que a pandemia trouxe para todos vocês?

Biagini – Alguns dias atrás eu estava ensaiando na universidade, saí um pouco para fumar um cigarro, e quando estava voltando, fiquei no elevador por dois andares. Foi por pouco tempo e, de repente, lá no elevador, tive uma sensação de desorientação total. Não sabia onde estava, não sabia em que país eu estava. Por apenas alguns segundos, uma sensação de pânico, de terror, porque tudo era tão parecido com todos os países. No passado, você podia ver que os aeroportos, os aeroportos dos países ricos, Paris, Roma, Frankfurt, Istambul, Guarulhos, os aeroportos eram todos parecidos. Agora muitos prédios, muitas instalações, muitas instituições abertas ao público se adequam a um certo estilo que é o mesmo, daí essa sensação muito forte de total desorientação. Eu também acho que isso acontece por razões econômicas, que alguns edifícios são mais comuns em certos tipos de economia. Portanto, vivemos hoje em um mundo onde existem lugares que são os mesmos em muitas cidades do mundo inteiro. E isso, para mim, como disse antes, me provoca um senso de desorientação.

Por outro lado, quando você colabora numa situação pedagógica, numa situação profissional com as pessoas, pouco a pouco, quando medos e obstáculos como sentir-se um pouco tímido gradualmente se dissolvem, você percebe que cada pessoa realmente tem uma biografia que é completamente diferente das outras. Um perigo aqui é presumir que se você conhece a pessoa, você conhece sua biografia, sua história de vida. Você cria, dentro de sua mente, uma narrativa ilusória do que deveria ser a vida da outra pessoa, mas ela não corresponde à realidade. Eu não posso me comunicar com vocês sobre o que é minha biografia, e vocês não podem se comunicar comigo sobre o que é sua biografia. Talvez tenhamos pontos em comum. Falamos línguas diferentes, por exemplo, mas todos nós, nos primeiros meses de nossas vidas passamos por processos básicos, estamos imersos em um banho de acontecimentos que provavelmente são semelhantes. No entanto, os sons podem ser diferentes de país para país, o processo de descobrir os sons pode ser o mesmo, o processo de descobrir os outros provavelmente tem alguns elementos semelhantes. Portanto, as pessoas têm maneiras diferentes de falar, mas a base desse discurso, desde quando estamos no ventre de nossa mãe até alguns meses depois, todos esses são processos muito semelhantes, muito fundamentais, muito básicos.

Não apenas os grupos são reflexos da sociedade, e o contrário, também nós, os indivíduos, somos reflexos da sociedade. Mas talvez não sejamos apenas isso. Porque cada pessoa reage e recebe estímulos externos de uma maneira diferente. Trabalhando em grupo, colaborando com as pessoas, sempre chegaremos a alguns pontos de contradição, de mal-entendidos. Creio que na comunicação humana e também na colaboração uma das principais bases é o mal-entendido. Você não pode entender algo, mesmo uma pequena coisa sobre outra pessoa, sem passar por algum mal-entendido. É como quando um bebê de um ou dois meses de idade olha para sua mãe, tem uma pequena dor na barriga e se encolhe de dor, e sua mãe sorri. E aí ele pode pensar “por que você está sorrindo, eu estou com dor”. E então a mãe muda sua expressão dizendo “oh, pobre bebê”, e a criança entende isso. Dessa forma uma relação é construída.

Alves – Agora vou mudar o assunto completamente. Nós falamos muito, e você sempre menciona poesia, você menciona autores, poetas, você trabalha muito com poesia. O que a poesia significa para você e como pode ser útil para os artistas. Poesia, em um mundo que está se desmoronando, como ela pode nos ajudar a passar por este momento? Como a poesia pode nos ajudar a sobreviver? 

Biagini – Bem, eu não sei. É verdade que desde muito jovem eu sempre gostei de poesia, mas não de tudo, alguns poetas. E agora com alguns colegas trabalhamos com três poetas. Tenho trabalhado individualmente sobre um poeta italiano chamado Leopardi [Giacomo Leopardi, 1798-1837], que é realmente difícil de traduzir, então não há muita gente que conheça seu trabalho fora da Itália. Sua poesia é muito complexa, mas eu acho que ele foi o maior poeta do século XIX na Itália. Eu trabalho em um de seus poemas, um poema com uma grande qualidade formal, mas que é também um manifesto político e filosófico sobre a relação entre o ser humano e a natureza, e sobre a relação do ser humano diante da natureza, tendo em mente que o ser humano também é parte da natureza. Outro trabalho que é feito no momento, por Felicita Marcelli, é sobre poemas de Pier Paolo Pasolini [1922-1975]. Há um tempo, propus a Felicita que buscasse cantos da região centro-sul da Itália, de onde ela vem. Algum tempo tinha passado até que eu soube dela, quando veio até mim e me disse: “Olha, está pronto o trabalho, você pode ver”. Ouvi-a cantar cerca de 15 canções do centro-sul italiano e foi algo que me quebrou o coração. Foi muito forte para mim, porque cresci em uma fazenda, eram os anos 60 e ainda havia um pouco de algo que na sociedade italiana desapareceu muito rápido depois da guerra [Segunda Guerra Mundial, 1939-1945], que era o mundo rural, com uma cultura muito rica e diversificada. Cada pequena aldeia tinha sua própria língua, suas próprias canções, seu próprio modo de vida. E depois da guerra, com a industrialização, tudo mudou realmente muito rápido. Parecia um deserto, uma terra estéril. Então o trabalho de Felicita me lembrou o que eu entendia quando eu era criança, era muito forte para mim. Propus a ela, a nós, a leitura dos poemas e dos textos em prosa de Pasolini. Lemos todos e depois a Felicita escolheu alguns. Eu pensava que ela escolheria sua prosa, onde ele analisa o que chama de mutação antropológica dos italianos, mas ela escolheu alguns fragmentos de poemas. E quando vi os fragmentos que ela havia escolhido, e como eles acompanhavam as canções, fiquei muito feliz, porque li Pasolini no final dos anos 70 e início dos anos 80 e pensei ter entendido do que ele estava falando, mas não entendi. Li novamente agora e entendo algo diferente. Acho que alguns poetas têm uma sensibilidade para o presente que é muito forte e que toca algo cujas consequências aparecerão 20, 30 anos depois.

Rei Santos Artistas de nacionalidades colombiana, chilena, turca, coreana e brasileira em ‘Sedentos’, resultado de processo criativo conduzido por Biagini em sua passagem mais recente por Londrina, cidade do norte do Paraná

Outro autor com quem trabalhamos, e também aqui em Londrina, é René Daumal [francês, 1908-1944]. Ele não escreveu muito, escreveu um pouco antes da guerra, o texto que estamos trabalhando agora [A grande bebedeira, 1938] ele produziu antes da guerra, mas morreu durante a guerra, muito jovem, aos 36 anos, de uma doença pulmonar. Seus últimos textos foram escritos durante a guerra, durante a ocupação alemã na França, portanto, numa situação muito dramática. O que percebi quando eu era muito jovem lendo os textos de sua juventude, onde ele com seu grupo de amigos – como muitos de vocês podem ter feito quando eram jovens, mais jovens do que agora – fez muitas experiências com a consciência, com a linguagem. Ele queria tocar algo extraordinário, algo especial, fazer uma revolução dos sentidos e uma revolução da percepção, uma revolução na maneira de pensar. E eles fizeram muitas experiências, como todos nós fazemos durante a adolescência. Eu me identifiquei muito com isso. Ele conheceu outras pessoas, e entendeu que talvez durante sua juventude e adolescência, ele teve um impulso de verdade, mas muitas das coisas que descobriram foram ilusões, foram sonhos. Então ele se tornou muito mais exigente quando escreveu. Ele escreveu muito pouco, escreveu até seus últimos momentos de vida, e percebi nas palavras de seus últimos textos uma tentativa de sinceridade que é muito forte. E isto deixa em mim, quando o leio, por algumas horas, talvez por alguns dias, um sentimento desta necessidade.

A poesia é uma linguagem especializada, não é uma linguagem comum. Mas, por exemplo, quando eu era criança, na aldeia, os mais velhos improvisavam fazendo rimas com métrica precisa e cantavam nestas rimas de forma muito rígida. Era como uma competição, mas não uma competição na qual alguém está certo, como quando você está discutindo: se eu estou certo, você está errado, se você está certo, eu estou errado. Não, não era assim, era diferente. Era uma maneira de inventar coisas surpreendentes, em um contexto muito formal das palavras. É algo que também pertence ao teatro, porque você tem que chegar a uma forma, como uma invenção.

Alves – Mario, você acredita que é possível, de certa forma, prever seu futuro na produção teatral? E outra pergunta: por que você está com sede?

Biagini – Não, não posso prever, posso desejar, posso imaginar, mas o problema é que só posso imaginar a partir do que já sei. Gostaria de ser capaz de imaginar sobre algo que não sei. Já antes da pandemia, eu sentia que a vida criativa do grupo com o qual eu trabalhava precisava mudar. Com a pandemia, é como se nos últimos dois anos o mundo inteiro tivesse mudado. Então, agora, pessoalmente, não é para todas, para todos, eu sinto que tenho que responder às mudanças do mundo, mudar também no que eu faço. E precisa ser uma mudança drástica, não pode ser apenas pequenas adequações aqui e ali para continuar a fazer as mesmas coisas. Eu não quero continuar fazendo as mesmas coisas. De certa forma, eu senti antes da pandemia, e durante ela, que como muitas vezes acontece, na vida de um grupo você pode ver que há ondas: ondas de desenvolvimento, crise, estagnação; desenvolvimento, crise, estagnação. Agora eu percebo que junto à situação estressante da pandemia havia no grupo um momento de estagnação, de dissolução. Eu trabalhei por muitos anos com um velho senhor [possivelmente referindo-se a Grotowski] que me falou sobre isso muitas vezes. Eu me lembro muito bem: algo acontecia, alguma crise, eu falava com aquele homem muito sábio, “Eu estou entrando em uma crise”, e ele dizia “Mario, isto é pralaya”, que é uma palavra de uma língua muito antiga, sânscrito, que significa dissolução. Ele dizia “Mario, isso é dissolução e você não pode fazer nada, ou, melhor ainda, você pode não resistir, e tirar o movimento vital, natural desta dissolução para chegar a algo novo”. Ele me disse isso muitas vezes, porque eu era teimoso.

Acho que, num futuro próximo, é isso que vamos fazer. Vamos partir em uma viagem que nos levará para além do Open Program. Sabe, aquele senhor também disse outra coisa, ele disse: “Sabe, Mario, a vida normal de um grupo de teatro é a mesma de um cachorrinho”. É verdade, não é mesmo? Então, o que vai acontecer a seguir, não sei. Eu sei que muito em breve partiremos em outra viagem. Quando você parte, você pode somente ir, você não pode partir e ao mesmo tempo ajustar a direção. Você pode simplesmente pegar sua bagagem e ir, e depois, na calçada, você pode ajustar a direção.

Valéria Felix A produtora Patricia Braga Alves dialoga com Mario Biagini durante ação do Ciclo – Circuito de Artes e Conceitos de Londrina, em 6 de dezembro de 2021

O que me dá sede? Se eu soubesse… Há uma história que aprendi quando era criança, naquela pequena aldeia, na igreja – parei de ir à igreja quando tinha cerca de 12 ou 13 anos – eu escutei essa história muitas vezes: havia um grupo de pescadores, eles vão num barco, entram na água e quando estão longe da costa, há uma tempestade, com muito vento, a água é muito perigosa. Um deles, muito respeitado por todos, está no fundo do barco, e dorme. Eu sempre imaginei, quando criança, que essa pessoa dormia como um bebê, no fundo do barco, no meio da tempestade. E os pescadores entram em pânico, “Oh, vamos morrer, há uma tempestade, nossa vida está em perigo, vamos acordá-lo porque ele fará alguma coisa”. Eles o despertam, e ele: “Por que me acordaram? Eu estava dormindo tão bem, eu estava descansando”. E os ventos, as águas se acalmaram. Mas essa não é a parte interessante da história para mim.

Sabe, direi algo que pode ser mal interpretado, mas, por favor, tente me seguir. Há algo no continente americano, nos poucos lugares que conheço, não é o continente inteiro, mas posso vê-lo aqui e nos Estados Unidos: quando você encontra alguém, a troca de saudações é sempre “Como você está indo?”, “Oh, estou ótimo, estou bem”, sempre alegre. Sempre dizemos que estamos bem, muito bem. E isto é muito exigente, certo? Eu não estou sempre indo bem. Não sinto que em nossas vidas a felicidade e a alegria tenham um lugar maior, isto desde que eu sou criança. Muito cedo na vida, percebi que quando se fala com outras pessoas, é preciso dizer “Tudo bem, muito bem”. Alegria. Talvez alguns de nós tenham dentro de si, sempre, uma profunda angústia, e tentamos sobreviver colocando isso de lado. Porque essa angústia é como os ventos sobre o barco para os pescadores, que provocam o medo do fim da vida, o medo da morte, “Oh, esta angústia me matará”. Mas não consigo acalmar a água, não consigo falar com o vento e fazer com que pare, mas acho que no fundo do lago, no fundo do mar, há alguma tranquilidade profunda, como um bebê dormindo. Isso também está relacionado à pergunta sobre as diferenças entre as pessoas de um grupo. Porque algumas pessoas têm algumas diferenças que são mais evidentes, que eu posso ver, mas também há diferenças que são muito profundas, que eu não posso ver. Por exemplo, como funciona o processo de pensar, como funcionam as emoções. E acho que há uma norma, para muitas pessoas há uma norma, algo que é mais ou menos semelhante. E também acho que há algumas pessoas que não seguem a norma e que é necessário reconhecer isso, pelo menos tentar.

Quando eu vi, quando era criança, que muitas pessoas queriam que eu dissesse que eu estava bem, isso é bom, que bom, comecei a ler muito. Era como um mundo escondido para mim. Li muitos livros e muitos deles dizem que, na vida, a dor é algo muito forte. Talvez isso seja verdade. Mas ontem, após o ensaio com os participantes [de Sedentos], uma jovem mulher me disse: “Oh, eu estou feliz”. Ah, isso é lindo. Talvez eu não esteja feliz, e tudo bem, isso não me mata. E quando alguém me diz que está feliz, eu fico contente. Às vezes, mesmo neste mundo ruim, como você diz, mesmo na vida humana que tem um elemento de angústia e dor, especialmente quando é longa, porque você vê amigos que morrem, pessoas que você ama adoecem, doenças se tornam cada vez mais presentes, mais e mais e mais, mesmo assim, há momentos em que as pessoas podem respirar um pouco mais facilmente. Eu não sei dizer do que eu tenho sede, mas quando posso perceber um pouco do que outra pessoa tem sede, é como se uma janela se abrisse, não entre essa pessoa e eu, mas no mundo, entre nós e ao nosso redor. Acho que não é fácil e não vai ser mais fácil, mas penso que é a única possibilidade.

Ilaria Costanzo O ator estadunidense Thomas Richards em ‘The living room’ [A sala de estar], de 2009, produção do Workcenter, centro de pesquisa do qual foi diretor artístico de 1986 a 2022

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O ano novo

[Pronunciamento de Mario Biagini publicado em rede social em 1º de janeiro de 2022]

Chegou a hora de eu embarcar em uma nova jornada, de desfazer o Open Program e deixar o Workcenter, para ir para um lugar que me chama. Neste novo ano, sigo minha jornada, grato e em dívida com tantas pessoas, cada uma das quais tornou essa história possível ao longo dos anos, permitindo que muitos, inclusive eu, façam parte dela. Esta não é uma decisão precipitada e impulsiva, mas sim uma observação, longa e calmamente considerada.

Quando fiz o teste em Pontedera, em 1986, para participar das atividades do recém-criado Workcenter de Jerzy Grotowski, fui convidado a ficar por três semanas. Ao final dessas três semanas, fui convidado para mais três semanas. Depois disso, não pensei mais nisso. Tinha gente indo e vindo, e naquela época nada era estável, fixo. Fiquei – aproveitando a oportunidade que me foi dada, aprendendo e criando com os outros, descobrindo constantemente novas questões – dizendo a mim mesmo que continuaria até que alguém me dissesse para sair, ou até que outras circunstâncias e desejos me chamassem para outro lugar. Trinta e cinco anos se passaram assim, durante os quais sempre me considerei um transeunte entre outros transeuntes.

Desde os seus primórdios, o Workcenter tem sido marcado por uma vocação educativa, através de uma imersão nos processos de criação artística e, no que diz respeito ao Open Program, com uma vertente fortemente ancorada na educação em grupo. Tenho 57 anos. Nunca parei de aprender, mas não quero ensinar. Em vez disso, quero dedicar meu tempo e energia restantes para explorar o que as pessoas podem estudar juntas, quais são as questões fundamentais que nos guiam e como podemos crescer individual e cooperativamente. Quero continuar aprendendo, especialmente aprendendo a pensar, de maneiras que ainda não consigo imaginar.

O Workcenter me acolheu quando eu era jovem, me deu oportunidades de ação com os outros e oportunidades de aprendizado ao longo da vida. Houve os anos com Jerzy Grotowski, durante os quais, além da minha relação com Grotowski, trabalhei principalmente ao lado de Thomas Richards, e tive a oportunidade de explorar o papel do diretor e do ator. Após a morte de Grotowski, juntos e graças a muitas outras pessoas, conseguimos dar continuidade à existência do Workcenter, que se desenvolveu de forma surpreendente. Entre 2003 e 2006, começamos a viajar e divulgar nossas pesquisas em vários países, europeus e não europeus. Esse período foi fundamental, e era inevitável que, no final, houvesse mudanças substanciais. Acho que Thomas então sentiu a necessidade de explorar suas próprias responsabilidades sem ter a mim ao seu lado como braço direito. Em 2007, nasceu o Open Program por minha iniciativa. Sou grato ao Thomas por me dar essa oportunidade. Desde então, trilhamos caminhos diferentes. Desde então, não trabalho mais, na prática diária, com Thomas, e desde então não tenho contato com o trabalho que ele faz com seus colegas, presenciando-o apenas em ocasiões públicas. 

Durante alguns anos considerei as duas alas do Workcenter – os grupos liderados por Thomas Richards e o Open Program – complementares, embora independentes, e talvez fossem. Percebi então que nossos cursos eram orientados para objetivos diferentes, e que atendiam a necessidades diferentes. Na forma como experimento a colaboração e o tempo passado com os outros, não consigo separar a esfera do trabalho da ética e da política, e sinto hoje que os nossos respectivos caminhos, os percorridos por Thomas Richards e os que percorro, são divergentes. A maneira como ele descreve sua pesquisa, as suposições que deduzi que subjazem às suas declarações públicas e o que intuo indiretamente sobre seus métodos de trabalho, tudo isso me é estranho. Portanto, sabendo que não posso concordar, não posso mais atuar como diretor associado do Workcenter.

É verdade, o Open Program tem sido uma aventura extraordinária, mas ao longo dos últimos anos senti uma vontade crescente de novos ares, uma necessidade real de transformar a forma como me relaciono e colaboro com os outros. Disse aos meus colegas que estava cansado de ser o diretor e pedi que compartilhassem as responsabilidades e decisões, desde a agenda diária até a agenda de longo prazo, até as decisões sobre quais projetos realizar. Fizemos muitos experimentos nesse sentido. No entanto, estou ciente de que minhas companheiras e meus companheiros se juntaram ao grupo porque foram convidados por mim, o diretor e iniciador do Open Program. Para o que quero fazer agora, são necessárias circunstâncias radicalmente diferentes, nas quais não estou em posição de autoridade: uma forma associativa que desde o início é fruto de uma concepção e responsabilidade compartilhadas. É por isso que, com outras pessoas, decidimos criar uma entidade independente, a Accademia dell’Incompiuto [Academia do Inacabado], que servirá a objetivos coletivos e individuais, para realizar ações artísticas e sociais que possam ter significado para seres humanos pertencentes a diferentes mundos. Há anos que considero o Open Program como uma realidade que inclui pessoas de diferentes idades e de diferentes formações profissionais, que vivem em circunstâncias e países por vezes muito distantes uns dos outros. As conexões com essas pessoas e comunidades são uma fonte de novos pensamentos e imaginações, para uma visão concreta do que podem ser os bens comuns e o que significam as palavras serviço e ação pública. A Accademia dell’Incompiuto terá em conta esta realidade e estas relações.

A crise planetária destacou processos dramáticos de mudança na vida individual e coletiva. Minha maneira de agir no mundo deve responder a essas mudanças radicais de forma radical e não com pequenos ajustes que me permitam continuar fazendo as mesmas coisas em diferentes circunstâncias. Em nosso tempo, as vozes mais fortes, as certezas mais sólidas, os movimentos mais poderosos são muitas vezes aqueles ligados a interesses pessoais diretos, individuais ou de clã, e à divisão, polarização, simplificação e agressão. Qualquer coisa que vá em uma direção diferente parece frágil. Com esta fragilidade, com as dúvidas e ansiedades do nosso tempo, como posso responder ao presente e à realidade que tenho diante dos olhos, com vista a um futuro possível e pensando nas gerações futuras? Não sei, e não tenho certeza, mas não posso fazer nada além de seguir o que me parece inevitável.

Comecei dizendo que sou grato. Não é possível citar todos os nomes e rostos que brilham na memória. Há todos aqueles que tive o privilégio de conhecer como colegas, participantes, amigos, mas também testemunhas e espectadores. E há aqueles que tornaram tudo isso possível nos bastidores. Pessoas como Roberto Bacci, Carla Pollastrelli, Luca Dini, que apoiaram o Workcenter desde o início; como Gül Gürses, que nos acompanhou nos anos de transição após a morte de Grotowski; pessoas como a direção e a equipe da Fondazione Teatro della Toscana, que nos acolheu generosamente nos últimos anos. Ao mencionar essas pessoas e instituições, não esqueço todas as outras: elas fazem parte da vida que me foi permitido viver tão plenamente até agora, e do futuro que não posso prever. Obrigado a todos vocês.

Se você quer embarcar em uma nova jornada, você tem que começar em algum lugar. O destino será uma surpresa, até para mim. Então, nos vemos em breve, em qualquer lugar.

Mário Biagini

Florença, 1º de janeiro de 2022

Durante muitos anos, uma pergunta me ocupou: como sustentar e desenvolver o que pode ser visto como uma espécie de tradição/pesquisa – um lugar de investigação onde as descobertas nascem da prática contínua, e a investigação é enriquecida por uma destilação do conhecimento prático – e, ao mesmo tempo, adaptar-se às incessantes mudanças na vida e na sociedade que ocorrem em tantos níveis? Como fazer isso e, ao mesmo tempo, permanecer constante diante dos objetivos e processos da prática?

Thomas Richards

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Encerramento do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards

[Pronunciamento de Thomas Richards publicado em rede social em 31 de janeiro de 2022]

Devido à pandemia da Covid-19, chegou um momento de crise internacional. O Teatro Nazionale della Toscana, o principal financiador do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards, não está imune a esta crise. Há muito tempo estou ciente de que o Teatro Nazionale teve que fazer ajustes financeiros. Com grande respeito pelos programas de artes cênicas do Workcenter, eles têm resistido a mudar sua relação financeira conosco nos últimos dois anos. A sua direção acaba de me informar que em 2022 eles pretendem continuar financiando o caminho das artes cênicas que lidero, embora não possam mais financiar as despesas de nosso histórico espaço de trabalho no Le Vallicelle ou fornecer apoio financeiro contínuo da mesma forma que antes. Eles propuseram que seu fluxo de financiamento seja feito projeto a projeto, pelo que estou profundamente grato.

O chamado do Teatro Nazionale para transformar nosso relacionamento inicialmente pareceu um inconveniente, pois um dos resultados será que o Workcenter não poderá mais apoiar uma grande equipe de participantes engajados em treinamentos durante todo o ano. Com mais reflexões, percebi que este convite para uma nova direção está de acordo com algumas necessidades que existem dentro de mim. Este ano farei 60 anos e estou entrando em uma nova fase da vida. Enquanto me esforço para compreender os chamados internos desta fase, encontro a necessidade de refletir sobre a prática na qual tenho me engajado nos últimos 35 anos, a fim de ter uma chance de descobrir seus próximos passos.

Com isto em mente, gostaria também de tomar nota da decisão do meu colega de longa data, Mario Biagini, de se desligar do Workcenter e iniciar um processo de trabalho independente do mesmo. Eu apoio plenamente sua decisão. Em um texto recente dele, ele destacou que em 2007 houve uma espécie de bifurcação do rio dentro Workcenter; o rio se dividiu em dois ramos, um liderado por ele e outro por mim. Desde então, com a decisão de reconhecer seus anos de experiência e autonomia criativa, não tive mais contato direto na prática com o trabalho que ele liderou, sendo espectador principalmente em eventos públicos e semipúblicos, após o que ocasionalmente lhe dei feedback. Estes ramos se afastaram gradualmente um do outro, e sua afirmação de que nosso trabalho está se desenvolvendo em direções divergentes e está orientado para objetivos diferentes é, creio eu, correta.

Durante muitos anos, uma pergunta me ocupou: como sustentar e desenvolver o que pode ser visto como uma espécie de tradição/pesquisa – um lugar de investigação onde as descobertas nascem da prática contínua, e a investigação é enriquecida por uma destilação do conhecimento prático – e, ao mesmo tempo, adaptar-se às incessantes mudanças na vida e na sociedade que ocorrem em tantos níveis? Como fazer isso e, ao mesmo tempo, permanecer constante diante dos objetivos e processos da prática? Faz muito tempo que Jerzy Grotowski, meu professor e fundador do Workcenter, faleceu. Nos últimos anos, em algumas ocasiões, senti que talvez fosse hora de me distanciar de seu nome, como um reconhecimento natural da passagem do tempo. No entanto, sempre houve um conflito em mim sobre esse curso de ação potencial. Eu senti, e ainda sinto, não apenas uma enorme dívida para com ele, mas uma ligação direta entre o que ele transmitiu para mim e o trabalho que realizei até hoje. Além disso, com o passar dos anos e com a evolução do Workcenter para um fenômeno artístico grande, ganhando impulso através de seus sucessos em diferentes níveis, uma ruptura drástica nunca pareceu sábia ou pertinente, apesar das inegáveis e crescentes complexidades envolvidas na gestão de sua liderança; o Workcenter tornou-se uma entidade artística que para mim havia começado, às vezes, a parecer um pouco grande demais. O momento histórico atual de crise internacional multidimensional, a agitação e a agitação que ela está causando, assim como os fatores que mencionei acima, trouxeram o trabalho a um ponto de transformação inevitável. Suponho que sem uma mudança fundamental neste ponto, não haverá nenhuma descoberta do caminho necessário para avançar.

Estas considerações me levaram à conclusão de que um ciclo do meu trabalho chegou ao fim, e foi com estas reflexões que tomei a decisão de fechar o Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards.

Gostaria de estender minha imensa gratidão a todos os artistas que participaram do Workcenter nos últimos 35 anos, a Roberto Bacci, Carla Pollastrelli e Luca Dini por sua perseverança e dedicação durante tantos anos, à Fondazione Pontedera Teatro e ao Centro de Experimentação e Pesquisa Teatral por seu inestimável apoio, a Gül Gürses por seus extraordinários esforços durante um período decisivo em nossa história, a Massimo Carotti que levou nossa administração adiante com tal compromisso, a Marco Giorgetti e Pier Paolo Pacini do Teatro Nazionale della Toscana, que têm demonstrado sincero interesse em nosso projeto de artes cênicas desde a fundação do Teatro Nazionale em 2015, a todos os estudiosos que têm prestado uma atenção tão viva e constante ao nosso trabalho, a Mario Biagini, a quem desejo o melhor em seu novo caminho, a todas as inúmeras pessoas que de tantas maneiras têm ajudado o Workcenter a prosperar mesmo em tempos difíceis, a todos os nossos amigos, e ao público de todo o mundo que tão gentilmente nos tem emprestado sua atenção e apoio.

Thomas Richards

Florença, 31.01.2022

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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