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Crítica

Dias Gomes e a arte de dar sentido ao absurdo

22.12.2022  |  por Natália Batista

Foto de capa: Acervo Dias Gomes

Para Dias Gomes, não existe “nada mais fugidio, mais inconsistente, mais impalpável” que a memória. Esta permeia seu campo de invenção com perenidade, como se constata na 57ª Ocupação Itaú Cultural, que ficaria em cartaz até 15 de janeiro de 2023 – marco dos cem anos de nascimento do escritor baiano – e acaba de ser prorrogada até 31 daquele mês. A mostra examina a contribuição do dramaturgo em diversos campos artísticos, passando pelo teatro, cinema, rádio, literatura e televisão.

Com frequência Gomes se autointitulava subversivo. Em realidade, trata-se de uma aceitação orgulhosa do título dado por aqueles que depreciavam a sua preocupação com as questões sociais. Carlos Lacerda, ex-governador do Rio de Janeiro e crítico contumaz de sua produção, cunhou o apelido ao afirmar que “Nelson Rodrigues é só pornográfico. Dias Gomes é pornográfico e subversivo!”. Na exposição, é possível assistir a uma entrevista em que o escritor fala sobre esse episódio e tirar conclusões se ele é ou não merecedor deste adjetivo.

O único elemento fartamente examinado em narrativa autobiográfica e pouco abordado na exposição foi a sua filiação ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), entre as décadas de 1940 e 1970. Ser membro do PCB era um elemento central em sua identidade, e indicava, inclusive, que era considerado um ‘subversivo’ dentro do próprio partido e um militante extremamente indisciplinado. Este eterno enfrentamento entre ser comunista e ter uma postura anarquista diante da vida permite compreender a ousadia em suas obras

Para além da apresentação de eventos marcantes em sua carreira, é desvelada a trajetória de Alfredo de Freitas Dias Gomes desde a sua infância, na cidade de Salvador, até a vida adulta, vivenciada majoritariamente no Rio de Janeiro. A construção dessa narrativa é feita com diferentes suportes documentais, a exemplo de fotografias, entrevistas, filmes, livros, cartas, textos dramatúrgicos, novelas, séries, programas teatrais e cartazes. Além disso, a documentação inclui materiais do acervo pessoal, assim como de institucionais públicas e privadas.

Em termos de cronologia e seleção de acontecimentos, é perceptível uma escolha narrativa em muito similar à fundamental autobiografia Dias Gomes, apenas um subversivo, publicada em 1998 pela Bertrand Brasil (segunda edição recém-lançada), um ano antes da data de sua morte, em decorrência de um acidente de carro na cidade de São Paulo.

A autobiografia ficou conhecida como um dos melhores livros do gênero publicados no Brasil, exatamente por seu humor mordaz e a aceitação das contradições em torno dos processos cognitivos de lembrar e esquecer, como na frase de abertura desta análise.

Os mesmos eventos considerados emblemáticos pelo autor também foram pinçados pela curadoria da equipe do IC em parceria de conteúdo com a Rede Globo. Ainda que sua vida pessoal seja contemplada, através de fotografias e cartas, o foco recai indubitavelmente em sua produção artística. O único elemento fartamente examinado em narrativa autobiográfica e pouco abordado na exposição foi a sua filiação ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), entre as décadas de 1940 e 1970.

Ser membro do PCB era um elemento central em sua identidade, e indicava, inclusive, que era considerado um “subversivo” dentro do próprio partido e um militante extremamente indisciplinado. Este eterno enfrentamento entre ser comunista e ter uma postura anarquista diante da vida permite compreender a ousadia em suas obras. Na ocupação, tais aspectos são pouco investigados, entrando em cena apenas quando o seu posicionamento político e combativo é analisado.

TV Globo/Acervo Paulo Gracindo e Lima Duarte interpretam o prefeito Odorico Paraguaçu e o matador Zeca Diabo, respectivamente, na telenovela ‘O bem-amado’ (1973), exibida pela Rede Globo, um dos tópicos da Ocupação Dias Gomes em cartaz no Itaú Cultural até final de janeiro de 2023

Por outro lado, a conexão de Gomes com seu país tem lugar privilegiado. O Brasil aparece como um laboratório perfeito para a criação de personagens e histórias que tratam, com algumas exceções, de personagens oriundos das camadas populares. Os textos de apresentação contribuem para fazer esta associação ao esclarecer as inspirações para a composição de suas histórias. Bons exemplos dessa ligação são os personagens Odorico Paraguaçu e Branca Dias, o primeiro inspirado no coronelismo, a perversa prática de mandonismo político-social por proprietários rurais e afins, em voga principalmente no interior do país, e a segunda em uma lenda popular de forte tradição na região do Nordeste. Outros cenários nacionais também contemplados em sua obra foram os subúrbios, as escolas de samba, o sertão ou mesmo um Brasil profundo e interiorano. Entre as temáticas abordadas estão a religião, os vícios da política, a opressão das classes pobres, o conservadorismo e a ascensão dos estados autoritários.

Uma sintetize desse imbricamento entre o autor e o Brasil se dá por meio da linguagem: em suma, a construção de um vocabulário original, mas imerso de brasilidade. Gomes foi um criador que mesclava o conhecimento popular e a inventividade pessoal. Algumas paredes do espaço expositivo apresentam glossários com a definição de palavras ou expressões cunhadas por ele. O público pode divertir-se com um jogo de quebra-cabeça, em que cada visitante tem a chance de encontrar o significado de neologismos como “enzamparinado” ou “acaecer”. Ou ainda se sentar em uma máquina de escrever e experimentar utilizá-la da mesma maneira que o escritor homenageado fazia para produzir as suas obras. Para as pessoas mais ousadas, é possível aproveitar a ocasião para ler peças e romances do autor que ficam à disposição.

Como a carreira do escritor foi marcada pela interseção de diferentes campos e suas obras reproduzidas em diferentes suportes (peças teatrais, filmes, novelas e livros), a exposição enfatizou alguns aspectos. A própria parceria IC-Globo já indicava maior ênfase em sua produção televisiva. Como elemento museológico foram colocadas pelo menos três réplicas de aparelhos de TV que exibem trechos das telenovelas Roque Santeiro (1985-86), O bem-amado (1973) e Saramandaia (1976), além de projeções de O pagador de promessas, tanto o filme (1962), adaptação da peça (1960) de mesmo nome, dirigido por Anselmo Duarte e premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, há 60 anos, quanto a minissérie (1988), por Tizuka Yamasaki. A sua atuação no teatro e no rádio é retratada por meio de extensa documentação e entrevistas concedidas pelo autor ao longo de sua trajetória.

Ainda que contenha expressivo acervo documental à disposição do visitante, a Ocupação Dias Gomes aposta principalmente na visualidade. Os textos de apresentação são curtos e a ênfase repousa mais na obra em si do que em sua análise. Informações complementares aos textos podem ser obtidas através das diversas frases do autor fixadas nas paredes (retiradas principalmente de sua autobiografia), e das projeções de entrevistas. Esses materiais são fundamentais para a obtenção de uma visão aprofundada da obra.

De modo geral, trata-se de uma exposição que consegue demonstrar aspectos polifônicos da trajetória do artista. É uma experiência potente ver como a escrita pode desembocar em diferentes produtos culturais e dialogar com públicos distintos. O processo de escrita em si foi um tema recorrente em suas narrativas, tanto que o explorou na última página da sua mais uma vez citada autobiografia.

TV Globo/Acervo Cena da minissérie ‘O pagador de promessas’ (1988), dirigida por Tizuka Yamasaki na Globo, com José Mayer no papel de Zé do Burro e Denise Milfont como Rosa (à direita), realização contemplada na mostra

Ao refletir acerca de sua escrita, o sentido da vida e da própria morte, Gomes analisa também as habilidades de Deus enquanto escritor de destinos. “Era bom estar vivo, era muito bom. Mas por quê? Se me perguntassem, não saberia responder. Deus é um bom dramaturgo, não se pode negar, sabe jogar com suas personagens, sabe torná-las verossímeis dentro da inverossimilhança total da vida, essa tragédia farsesca”. Nesta perspectiva, é possível observar que durante toda a sua trajetória ele procurou essa escrita que considerava divina, a capacidade de dar sentido ao absurdo que é a existência humana.

A ocupação, por fim, consegue explorar com maestria a força da escrita na obra de Dias Gomes, que de tão gregária teve a capacidade de se desdobrar em diferentes projetos estéticos. Indiferentemente do meio para o qual produziu, uma característica o mobilizou na caminhada: o desejo profundo de uma escrita sobre o Brasil, com toda a sua surrealidade e encanto.

Serviço

Ocupação Dias Gomes

Terça a sábado, 11h às 20h; domingo e feriado, 11h às 19h. De 19 de outubro de 2022 a 31 de janeiro de 2023.

Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149, piso 2, próximo ao Metrô Brigadeiro, tel. 11 2168-1777).

Entrada gratuita.

TV Globo/Acervo Wilza Carla atua como Dona Redonda, que explode de tanto comer, uma das memoráveis personagens da telenovela ‘Saramandaia’ (1976)

Ficha técnica:

Ocupação Dias Gomes

Pesquisa, concepção, curadoria e realização: Itaú Cultural

Parceria de conteúdo: Globo

Projeto expográfico: Thereza Faria

Produção local (RJ): Gustavo Nunes

Projeto de acessibilidade: Itaú Cultural

Itaú Cultural

Presidente: Eduardo Saron

Núcleo de Artes Cênicas

Gerência: Galiana Brasil

Coordenação: Carlos Gomes

Produção-executiva: Regina Medeiros e Tiago Ferraz

Núcleo de Audiovisual

Gerência: André Furtado

Coordenação: Kety Fernandes Nassar

Produção-executiva: Camila Fink e Julia Sottili

Produção audiovisual: Camila Fink e Julia Sottili

Edição de vídeo: Richner Allan

Captação de imagens: André Seiti e Richner Allan

Captação de imagens remotas: WT1 (terceirizada)

Captação de som: Pamela Monteiro e Tomás Franco (terceirizados)

Motion design: João Zanetti (terceirizado)

Transcrição: Nelson Visconti (terceirizado)

Interpretação em Libras: FFomin Acessibilidade e Libras (terceirizada)

Audiodescrição: Iguale Comunicação de Acessibilidade (terceirizada)

Núcleo de Comunicação e Relacionamento

Gerência: Ana de Fátima Sousa

Coordenação: Carlos Costa e Renato Corch

Edição e produção de conteúdo: Duanne Ribeiro, Juliana Ribeiro e William Nunes

Supervisão de revisão: Polyana Lima

Revisão de texto: Rachel Reis (terceirizada)

Identidade e comunicação visual: Guilherme Ferreira

Ilustrações Gustavo Inafuku: Girafa Não Fala (terceirizada)

Produção editorial: Bruna Guerreiro, Mylena Santos (estagiária) e Pamela Camargo

Edição de fotografia: André Seiti e Matheus Castro (estagiário)

Redes sociais: Jullyanna Salles e Victoria Pimentel

Núcleo de Educação e Relacionamento

Gerência: Valéria Toloi

Coordenação de atendimento ao público: Tayná Menezes

Equipe de atendimento: Matheus Paz, Natasha Bernardo Marcondes, Victor Soriano e Vinícius Magnum

Coordenação de formação: Samara Ferreira

Equipe: Alessandra Silva Constantini (estagiária), Edinho dos Santos, Edson Bismark, Elissa Sanitá, Joelson Oliveira, Lucas Batista, Mayra Reis Rocha, Mônica Abreu Silva, Silas Barbosa (estagiário), Victória de Oliveira, Vítor Luz e Vitor Narumi

Núcleo de Infraestrutura e Produção

Gerência: Gilberto Labor

Coordenação de exposições: Vinícius Ramos

Produção: Carmen Fajardo, Érica Pedrosa, Fernanda Tang e Wanderley Bispo

Consultoria Jurídica

Gerência: Anna Paula Montini

Coordenação: Daniel Lourenço

Equipe: Rafael Del Piero

Núcleo de Memória e Pesquisa

Gerência: Tatiana Prado

Equipe: Ana Luisa Constantino, Fernando Galante, Laerte Fernandes e Talita Yokoyama

Agradecimentos

Abril Comunicações S/A, Academia Brasileira de Letras, Acervo Funarte/Centro de Documentação e Pesquisa, Acervo TV Cultura, Alfredo Emmer Dias Gomes, Antonio Henrique Lago, Antonio Mercado, Aura Edições Musicais, Bernadete Dias Gomes, Cacá Diegues, Carlos Cambraia, Celeste Ferreira, Centro Cultural São Paulo, Cinedistri Produção e Distribuição Audiovisual, Claudia Ahimsa, Claudiney Ferreira, Copyrights Consultoria Ltda., Daisy Poli, Denise Emmer Dias Gomes, Graça Maria Lago, Guilherme Emmer Dias Gomes, Instituto Ziraldo, João Jorge Amado, José Dias, Karina Maluf, Karla Abinader, Lima Duarte, Luana Dias Gomes, Luciana Ferreira, Maria Amélia Mello, Maria João Cestino Amado, Mario Lago Filho, Mayra Dias Gomes, Museu da TV, Rádio & Cinema, Museu Lasar Segall, Nathalia Timberg, Nélida Piñon, NSC/Jornal de Santa Catarina, O Estado de S. Paulo, Paulo Gracindo Junior, Paulo Leite, Regina Duarte, Rui Rezende, Ruth Toledo Altschuler, Sergio Miletto, Sergio Zlotnic, Sony Music Brasil, Stenio Garcia, Stephanie Genesini e Tanah Correa.

O Itaú Cultural (IC) e a curadoria agradecem a todos os fotógrafos que cederam imagens e a todos os artistas, sucessores e colecionadores que autorizaram a exibição e emprestaram suas obras para a exposição.

O Itaú Cultural realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes sobre as imagens/obras aqui expostas e publicadas, além das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua autoria, solicitamos o contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br.

Doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em história e culturas políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em 2020, realizou estágio pós-doutoral no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Tem como foco de suas pesquisas o período da ditadura civil-militar brasileira, investigando manifestações culturais de resistência ao regime e violações de direitos humanos. Autora de ‘Nos palcos da História: teatro, política e Liberdade, Liberdade’ (2017), editado pela Letra & Voz.

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