Menu

Reportagem

Um salão de tranças africanas na Broadway

Jaja’s african hair braiding

1.12.2023  |  por Neomisia Silvestre

Foto de capa: Matthew Murphy

É um dia quente de verão no bairro nova-iorquino Harlem, no fictício espaço-título Jajas african hair braiding (Tranças africanas de Jaja), misto de loja e salão de beleza. Mas o reduto de trancistas vindas da África Ocidental – Gana, Senegal, Serra Leoa e Nigéria – também poderia estar localizado na região do Château d’Eau, pertencente ao 10º distrito de Paris; no bairro londrino Brixton ou mesmo na Galeria do Reggae, no centro de São Paulo, já que essas diásporas também concentram significativas experiências de imigração africana.

Escrita pela dramaturga ganense-americana Jocelyn Bioh, autora de School girls; Or, the african mean girls play, produção off-Broadway de 2017, sobre uma colegial que quer se tornar uma estrela do cinema nigeriano, e dirigida por Whitney White, vencedora do Obie and Lilly Award, a peça introduz o espectador no universo dos salões de tranças africanas para retratar a experiência de mulheres negras a partir do cuidado com os cabelos.

A montagem fez sua estreia mundial no início de outubro, no Samuel J. Friedman Theatre, do Manhattan Theatre Club, com capacidade para 650 lugares presenciais. A temporada, finalizada em 19 de novembro, foi estendida por duas semanas e contou com seis dias de exibições simultâneas em live streaming, gerida pelo The League of Live Stream Theater.

Em ‘Jaja’s african hair braiding’ (‘Tranças africanas de Jaja’), quando se trata de mulheres negras e seus crespos, possivelmente a última questão seja realmente acerca desse conjunto de espirais sobre suas cabeças. Na atualidade, o que pode parecer uma mudança de visual ou uma manutenção dos fios carrega desejos de autoestima e reconexão. E, em algumas culturas, também expressa distintas manifestações hierárquicas, de status social, estados civis, celebrações e ritos de passagem geracionais e/ou espirituais

Na obra, Bioh apresenta uma narrativa com a qual ela própria está familiarizada desde os 4 anos de idade – hoje tem 35. A escritora e também atriz afirma ter usado tranças há tanto tempo que poderia citar apenas três vezes na vida em que não as exibiu. “Eu celebro essas mulheres incríveis e as agradeço pelo que fazem. Para muitas pessoas, elas são apenas ‘senhoras que fazem tranças’, mulheres aleatórias que passam na rua. Mas, para mim, são heroínas, artesãs e artistas com mãos lindas, talentosas e habilidosas”, escreve no programa do espetáculo.

Saber ancestral preservado e transmitido de avó-mãe-filha-neta, a cultura de trançar cabelos é uma tradição praticada há séculos em diversas sociedades africanas e, consequentemente, em suas diásporas. No contexto cênico, é também um lembrete ao público sobre o fato dessas herdeiras somarem seus conhecimentos e técnicas tradicionais a tendências capilares da cultura afro-americana no decorrer das décadas. Assim como suas veias empreendedoras, ao criarem oportunidades de renda segura em qualquer país estrangeiro.

“‘Você quer trançar o cabelo, moça?’. Sempre fico impressionada com o alívio estampado em seus rostos [vendedores e trancistas] quando alguém responde: ‘Sim, gostaria de fazer uma trança no cabelo’. Imagino que, pelo menos durante as próximas horas, a sua dignidade seja restaurada. Então, essa peça é para cada pessoa que entra na loja/salão. Suas esperanças. Seus sonhos. Suas histórias incríveis de como e por que vieram para este país”, escreve Bioh.

Antes mesmo do início do espetáculo, já na fachada do salão elaborada pelo cenógrafo e figurinista estadunidense David Zinn, há um reconhecimento imediato por parte da plateia, especialmente a feminina e negra. Estampada com diversas inspirações de penteados protetores (Cornrows, Goddess braids, Bantu knots, Flat twists, Fulani braids, entre outros), o exterior funciona como um grande catálogo de estilos. As fotografias são um tipo de identidade visual e decoração características de diversos salões afro pelo mundo.

Indicado sete vezes ao Tony Award – prestigioso prêmio do teatro nos Estados Unidos, equivalente ao Oscar no cinema, ao Emmy na TV e ao Grammy na música –, Zinn desenvolveu uma caixa giratória e autônoma na cor rosa, posicionada no centro do palco e cercada por projeções da vizinhança do Harlem. É lá que as quatro trancistas do Jajas african hair braiding – Miriam (Brittany Adebumola), Bea (Zenzi Williams), Aminata (Nana Mensah) e Ndidi (Maechi Aharanwa) – receberão clientes ao longo de um dia trivial de trabalho.

A novidade é que, ao invés da supervisão de Jaja (Somi Kakoma), empresária e proprietária da loja/salão, quem assume a agenda e as responsabilidades de manter o local em pleno funcionamento é a filha Marie, recém-formada no ensino médio, interpretada por Dominique Thorne, dos filmes Pantera negra: Wakanda forever, 2022; Judas e o Messias negro, 2021; e Se a rua Beale falasse, 2018.

Joshua Bright Na acepção da dramaturga ganense-americana Jocelyn Bioh, a peça é como que destinada a cada pessoa/personagem que entra na loja/salão. Suas esperanças. Seus sonhos. Suas histórias incríveis de como e por que vieram para este país, os Estados Unidos

Com uma veia cômica pulsante nos sotaques, nos trejeitos, nas danças e nos figurinos (Dede Ayite), a autora universaliza e joga luz nesse local tão íntimo e de total cumplicidade e apoio entre mulheres negras. Confissões, rivalidade entre funcionárias, fofocas, finanças, sonhos e decepções amorosas compõem algumas das conversas de salão.

Único homem do elenco, Michael Oloyede (The man behind the camera, 2021; Brooklyn.Blue.Sky, 2017) faz quatro participações: James, o parceiro de uma das trancistas; o vendedor ambulante de meias; o de DVDs piratas; e o de jóias falsificadas.

Somi Kakoma aparece uma única vez como Jaja. Vestida de noiva, a personagem-título passou o dia ocupada com os preparativos de seu casamento com Stephen, um homem branco invisível, dali a algumas horas. Embora rápida a passagem, seu discurso de adeus é a maneira encontrada pela dramaturga de pautar a atual crise migratória a partir da narrativa de uma cidadã senegalesa vivendo ilegalmente com sua filha adolescente na América. Esperançando solidificar ambas as cidadanias americanas, Jaja é surpreendida por um sequestro, ao invés de uma cerimônia de união com final feliz. É preciso ressaltar que o espetáculo se passa no ano de 2019, quando o mundo ainda não vivera a pandemia da Covid-19 e os Estados Unidos eram governados pelo presidente republicano de extrema direita Donald Trump.

Cantora, compositora, dramaturga e atriz estadunidense, filha de imigrantes de Uganda e Ruanda, Kakoma, de 42 anos, foi a primeira mulher africana indicada nas categorias de jazz do Grammy Awards como melhor álbum vocal por Zenzile: The reimagination of Miriam Makeba, em 2021.

O núcleo de clientes exigentes, inseguras e bem-humoradas é formado por Rachel Christopher, Lakisha May e Kalyne Coleman, que se transformam em sete personagens diferentes ao longo dos 90 minutos de apresentação. Para que o tempo cênico abarque os resultados finais das tranças, a atriz estadunidense e design de perucas Nikiya Mathis criou penteados semi-prontos e elaborados para cada troca.

Quando se trata de mulheres negras e seus crespos, possivelmente a última questão seja realmente acerca desse conjunto de espirais sobre suas cabeças. Na atualidade, o que pode parecer uma mudança de visual ou uma manutenção dos fios, carrega desejos de autoestima e reconexão. E, em algumas culturas, também expressam distintas manifestações hierárquicas, de status social, estados civis, celebrações e ritos de passagem geracionais e/ou espirituais.

Matthew Murphy As atrizes Lakisha May (cliente Vanessa) e Nana Mensah (trancista Aminata, no reflexo) na montagem musical que fez temporada de outubro a novembro em Nova York

Embora as mídias sociais desempenhem importante papel para a difusão do estilo e do ofício das trancistas, em nenhum momento a peça direciona o debate sobre a apropriação cultural praticada por não-negros, e de como reduzem essa trama ancestral ao efêmero da moda, e ainda saem ilesos de qualquer estereótipo e estigma.

Como lembra a doutora em ciências sociais Luane Bento dos Santos, em sua tese pela PUC-Rio, em 2022: “Trancista não é cabeleireira!”. A pesquisadora carioca investiga as semelhanças e aproximações entre trancistas e cabeleireiras, seus discursos políticos e as histórias vivenciadas nos espaços de trabalho.

“O tema escolhido surge das minhas experiências pessoais, também por eu ser uma trancista/trançadeira e, principalmente, no interesse que tenho em refletir sobre as construções de identidade negra contemporânea pautadas no corpo e no cabelo. E, sobretudo, entender quem são as mulheres negras responsáveis por uma transformação da aparência negra significativa e afirmativa para o contexto da sociedade brasileira, que é extremamente racista”, escreve. Bento é professora de sociologia, bibliotecária e promove formações sobre estética negra, etnomatemática das tranças, relações étnico-raciais e educação.

.:. A temporada de estreia de Jajas african hair braiding (Tranças africanas de Jaja) aconteceu no teatro Samuel J. Friedman Theatre, do Manhattan Theatre Club, em Nova Iorque, de 3 de outubro a 19 de novembro de 2023. Ainda não há previsão de apresentações no Brasil.

Teaser do espetáculo:

Ficha técnica

Jajas african hair braiding (Tranças africanas de Jaja)

Dramaturgia: Jocelyn Bioh

Direção: Whitney White

Com: Brittany Adebumola, Dominique Thorne, Kalyne Coleman, Lakisha May, Maechi Aharanwa, Michael Oloyede, Nana Mensah, Rachel Christopher, Somi Kakoma e Zenzi Williams

Elenco de apoio (substituto): Abigail C. Onwunali, Morgan Scott, Onye Eme-Akwari e Victoire Charles

Cenografia: David Zinn

Figurino: Dede Ayite

Design de iluminação: Jiyoun Chang

Música original e design de som: Justin Ellington

Design de vídeo: Stefania Bulbarella

Design de cabelo e peruca: Nikiya Mathis

Treinadora de dialeto e vocal: Dawn-Elin Fraser

Gerente de produção: Melanie J. Lisby

Live Streaming: The League of Live Stream Theater

Agradecimentos: Katie McKenna e Michelle Farabaugh, assessoras de imprensa

Jornalista e escritora brasileira radicada na França, tem contribuições em projetos artísticos e socioculturais a partir de atuações em ONGs, revistas, rádio, televisão, fotografia, assessoria de imprensa e produçāo de eventos. É autora da biografia Esumbaú, Pombas Urbanas! 20 anos de uma prática de teatro e vida (2009) e uma das criadoras do Orgulho Crespo, movimento independente de valorização do cabelo afro iniciado em 2015 com a 1ª Marcha do Orgulho Crespo SP. A iniciativa integra o calendário oficial do Estado de São Paulo com o #DiaDoOrgulhoCrespo, celebrado todo 26 de julho por meio da Lei 16.682/2018.

Relacionados

‘De mãos dadas com minha irmã’, direção de Aysha Nascimento e direção artística e dramaturgia de Lucelia Sergio [em cena, Lucelia Sergio ao lado de dançarinas Jazu Weda e Brenda Regio]