Reportagem
19.8.2024 | por Teatrojornal
Foto de capa: Valmir Santos
Ações alinhadas no título Formação de Público, Escola do Espectador e Roda dos Espectadores inspiraram o tema do quarto encontro da Roda de Memória do Futuro, evento realizado pelo e no Teatro da Universidade de São Paulo, o TUSP, na sede da rua Maria Antônia, capital. O Teatrojornal dá sequência à transcrição e edição das nove noites reflexivas que aconteceram entre março e maio de 2023.
A conversa de 10 de abril mobilizou Flávio Desgranges, pesquisador e professor na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); Dagoberto Feliz, ator, palhaço, diretor e músico no grupo Folias d’Arte; e Ana Lucia Lopes, antropóloga à frente da Gerência de Formação, Acervo e Memória no Theatro Municipal de São Paulo. A mediação coube ao professor e idealizador Luiz Fernando Ramos, do Departamento de Artes Cênicas na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP).
O Programa Formação de Público (2001-2004), dentre as potentes iniciativas em políticas públicas para o teatro implantadas naquele período pela Secretaria Municipal de Cultura, sob gestão do Partido dos Trabalhadores, e a Escola de Espectadores de Buenos Aires, criada em 2001 pelo professor, crítico e pesquisador Jorge Dubatti, figuram como mote, mas não foram abordados diretamente. São exemplos de mediações artísticas junto aos públicos.
No diálogo a seguir, Desgranges coloca em dúvida se a questão é mesmo a ampliação do público. “Talvez a gente encontrar, digamos assim, o sintoma, possa nos ajudar a conversar sobre ele, do que partir de um diagnóstico prévio, de dizer que a gente precisa formar público”, afirma.
Para Lopes, “A nossa capacidade de representar, de se ver no outro, é a arte que dá’. O que ela ilustra com as reações conservadoras quando o palco do Municipal teve mulheres da Daspu, grife de roupas feitas por prostitutas, e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, contracenando com artistas em María de Buenos Aires (2021), ópera-tango de Astor Piazzolla, e Café (2022), com libreto de Mário de Andrade, respectivamente.
Feliz, que fez parte do grupo Folias d’Arte, alerta para quem cria não desvirtuar o foco do encontro com o público. Que a “escolha estética” sintonize com a “necessidade absoluta de encontrar essa pessoa”. “O nosso pensamento artístico está sendo levado, é preciso estar mais atento. A gente está começando a não pensar mais artisticamente”, diz.
A compreensão do público como artista, efetivamente, e com o público participando do movimento teatral e em quais instâncias ele pode participar, isso parece algo importante. Isso é uma inquietação que eu tenho nesse momento. Mas não sei se a questão é ‘Precisamos lutar para que o teatro volte a ser uma arte de massa’. Não sei se essa questão é uma utopia, se de fato é o que a gente quer, ou se é de fato nossa inquietação, o nosso incômodo. Deixo a pergunta para a gente não vir com diagnósticos prontos e também com remédios prontos, entre aspas, para um diagnóstico que talvez nem seja esse o nosso caso
Flávio Desgranges, professor
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Luiz Fernando Ramos
Boa noite. O tema de hoje tenta pegar uma sequência de 20 anos dessa ideia de formação de público, como ela se desenvolveu. Nós trouxemos três pessoas muito interessantes, singulares, para falar sobre esse tema, para disparar a conversa com vocês. Ao meu lado esquerdo tem o Flávio Desgranges, que é dramaturgo, encenador, professor do departamento de artes cênicas da Udesc, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da USP, coordenador do iNerTE, Instável Núcleo de Estudos de Recepção Teatral, diretor da Coleção Teatro, da editora Hucitec, e autor dos seguintes livros, entre outros, A inversão da olhadela: alterações no ato do espectador teatral (Hucitec, 2012), A pedagogia do espectador (Hucitec, 2015), Decirse público: entre la mediación teatral y el efecto estético (Hucitec, 2022).
Ao meu lado direito está a Ana Lucia Lopes, que está aqui numa generosidade imensa substituindo a Andrea Caruso Saturnino, que é a atual diretora do Theatro Municipal de São Paulo, que não poderia vir e a indicou, por ser a pessoa responsável pela questão da formação de público no Theatro Municipal. Gostaríamos muito de poder ouvir a Andrea, mas é uma graça para nós poder também ouvir a Ana Lucia, porque ela vai falar de uma perspectiva muito autorizada, digamos assim, das questões que vamos discutir. Ana Lucia é antropóloga, gerente da Gerência de Formação, Acervo e Memória do Theatro Municipal desde 2021.
E, um pouco mais adiante, o Dagoberto Feliz, que é ator, professor, músico e diretor pós-graduado em direção teatral na ECA-USP e um dos artistas mais respeitados na cena teatral paulistana, fundador em 2000 do grupo Folias d’Arte, com sede própria no bairro Santa Cecília e membro desde 2004 do grupo Doutores da Alegria, e, claro, não só desse lugar tão eminente como artista, mas principalmente da experiência dele de formar público lá no Folias, naquele teatro que se tornou um teatro estável praticamente em São Paulo e também da experiência dele com os doutores, esse público mais causal, nos hospitais, com que os doutores vieram encantando crianças pacientes nesses 30 anos.
Vamos começar. Passo a palavra para o Flavio.
Flávio Desgranges
Sinceramente, não preparei nada para falar, mas vamos lá. Porque quando o Luiz me convidou ele falou que seria mais um espaço aberto para a gente trocar. Mas vou pontuar algumas coisas, começando a puxar alguns fios. Quando comecei no meu doutorado a pesquisar a formação de público, viajei para Bruxelas para visitar um centro de formação de público, pode ser chamado assim, um teatro chamado La Montagne Magique, que é um centro de mediação. Eles trabalham com crianças e convidam grupos teatrais, escolas, e fazem essa mediação, apresentam espetáculos. Tem uma parceria com muitas escolas públicas da cidade, com grupos teatrais da cidade e da região, e desenvolvem vários projetos relacionados a esses espetáculos que são apresentados. A cada ano desenvolvem novos projetos, é um trabalho muito bonito.
Eu lembro que um dia estava andando na rua com o diretor do Montagne Magique [Roger Deldime] e ele me falou assim: “Poxa, Flávio, a gente faz isso aqui há mais de 20 anos e o público em Bruxelas não aumentou”. Acho curioso isso porque às vezes a gente percebe – ele já tinha me dito lá, assim, que um projeto de formação de público não necessariamente é um projeto de formação de público, no sentido da ampliação do público. Para falar de ampliação do público talvez a gente precise muito mais do que falar de projetos de formação de público, porque certamente envolve leis de incentivo à produção, leis de incentivo à circulação (permanência também dessas leis, porque os governos vão mudando e tudo vai mudando), modos de criação, relação com o público, as várias instâncias possíveis de participação do público no movimento teatral. Então, é um assunto muito amplo, difícil abarca-lo na totalidade, acho que é uma questão aberta mesmo.
Isso foi em final da década de 1990, logo depois foi iniciada a Lei de Fomento ao Teatro aqui em São Paulo [Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, em vigor desde 2002] e aí acho que muitos, muitas, de nós vivemos isso juntos. A esperança da Lei de Fomento e também como ela, a meu ver, muda o teatro na cidade de São Paulo, mas talvez não mude o teatro da cidade de São Paulo na relação com a cidade no sentido de sua abrangência. A cidade é muito grande, eram, não sei se ainda não, 30 projetos aprovados por ano, é projeto pra caramba, mas para essa cidade é pouco. O teatro da cidade mudou muito, no sentido da produção, da invenção, das possibilidades e da continuidade de grupos, mas se a gente parar aqui na rua e perguntar para 20 pessoas se conhecem a Lei de Fomento ao Teatro, possivelmente as 20 vão dizer: “Não conheço”. Isso é alguma coisa curiosa, porque é uma lei tão importante. São 30 grupos por ano, há 20 anos, desenvolvendo projetos, e a cidade, de maneira mais ampla, não conhece a lei. Em que medida uma lei tão importante, que o meu ver não dá mais para contar a história do teatro no Brasil sem falar dessa lei e aquilo que foi produzido a partir dela e também dela enquanto invenção de política pública, mas o mesmo tempo, o que acontece?
Uma das esperanças que eu tinha, e ainda tenho de algum modo, é como a Lei de Fomento poderia (e vi alguns arremedos, alguns vislumbres disso) provocar um certo incentivo cultural anárquico, uma produção anárquica, descentralizada, portanto, com vários núcleos que seriam os grupos teatrais, entre outras instituições, formando como uma trama, uma rede. O Dago [Dagoberto] é artista e é educador também, então os alunos dele vão assistir ao espetáculo de alguém, que vai assistir ao espetáculo do Dago. Não só o Folias, mas tem as escolas e as organizações que ele trabalha e outros trabalham, que vão assistir, e vão fazendo tramas, redes, e essas redes vão se multiplicando como possibilidades. Acho que isso se fez de algum modo, talvez menos do que eu sonharia, do que eu gostaria, do que eu imaginava que isso fosse potencializar possibilidades teatrais. Não só dos grupos, mas dos projetos que são desenvolvidos, das instituições, das escolas, das universidades e assim por diante. Mas acho que é um pouco por aí, se alguma coisa ainda pode acontecer, é política pública contínua e uma certa anarquia, não alguma coisa que o governo vai instaurar e que vai depender de uma política pública centralizada, mas alguma coisa que possa se dar de maneira anárquica.
Mas eu também já não sei mais se a questão é a ampliação do público, se é essa a questão que estamos discutindo ou se é essa a questão que está na ordem do dia, no sentido de que: “É isso que se trata? É essa a nossa questão?”. É uma pergunta, sabe. Me parece que os espetáculos que eu tenho ido assistir estão cheios… Não sei qual a experiência de vocês em relação a isso, mas estou morando em Florianópolis e sempre que venho aqui e vou ver um espetáculo está relativamente cheio. No estudo que eu fiz, o Anatol Rosenfeld lá década de 1970 falava que tem uma média de 50 pessoas por sessão (ele falava por experiência própria, empírica). Eu vejo mais de 50 pessoas por sessão. Depois, da década de 90, encontrei um artigo do Jornal do Brasil dizendo: a média de frequentação dos teatros no Rio de Janeiro e em São Paulo é em torno de 20, 21, 22%, então, acho que hoje a média em São Paulo é maior. Ou será que empiricamente a minha impressão tá errada? Parece que o público de teatro em São Paulo cresceu muito da década de 1990 pra cá. Mas parece que ainda há uma insatisfação em relação a isso. Que insatisfação é essa? Acho que talvez mais do que ficar falando sobre projetos, eu queria deixar essa pergunta: qual é a nossa insatisfação.
A gente tinha conversado aqui também, à boca miúda, rapidinho, e que é interessante no sentido da observação, para nós, nesse momento, é observar o que está acontecendo com o cinema. Porque o cinema parece que está passando por um processo parecido com o qual o teatro passou no século XX. E quando a gente via os cinemas de rua se transformando em igrejas evangélicas, talvez a gente nem se desse conta ainda que isso já tinha começado, mas a pandemia [de COVID-19] veio parece que agravar e potencializar isso. Porque a impressão que eu tenho é que os cinemas estão mais vazios do que antes. Estão com muita dificuldade nesse sentido que certamente vão enfrentar, não da mesma maneira porque é outra arte, outra produção cultural, é outro contexto. Mas acho que o cinema está passando, ou vai passar, por algo que o teatro passou no século XX e vem lutando para sobreviver.
A questão é essa: “Qual o nosso incômodo na relação teatro-público?”. Ou: “Quais os nossos incômodos nesse sentido?”. Talvez a gente encontrar, digamos assim, o sintoma, possa nos ajudar a conversar sobre ele, do que partir de um diagnóstico prévio, de dizer que a gente precisa formar público. É isso que importa nesse momento? Eu não sei mais se é isso que importa. Acho que é importante que a gente abra espaço para que o público participe do movimento teatral, porque quando a gente fala de um movimento artístico, em geral fala de artistas participando de um movimento, mas a gente não pensa no público participando desse movimento. Também porque não compreende o público como artista. A compreensão do público como artista, efetivamente, e com o público participando do movimento teatral e em quais instâncias ele pode participar, isso parece algo importante. Isso é uma inquietação que eu tenho nesse momento. Mas não sei se a questão é “Precisamos lutar para que o teatro volte a ser uma arte de massa”. Não sei se essa questão é uma utopia, se de fato é o que a gente quer, ou se é de fato nossa inquietação, o nosso incômodo. Deixo a pergunta para a gente não vir com diagnósticos prontos e também com remédios prontos, entre aspas, para um diagnóstico que talvez nem seja esse, o nosso caso. É uma questão que eu coloco.
Luiz Fernando Ramos
Obrigado, Flávio. Vou aproveitar essa sua entrada. De fato, quando surgiu a primeira ideia de trazer essa discussão tinha um pouco a ver com um mito de que o público, do Brasil em geral e de São Paulo principalmente, não só não tinha crescido como continuava caindo. Eu tinha um número, há 20 anos, de que o público de São Paulo era de 200 mil pessoas mais ou menos, o que é muito pouco para uma cidade de 12 milhões [11,4 milhões de habitante em 2022 segundo levantamento do IBGE]. E a impressão que eu tinha é que isso não havia se alterado sensivelmente. Porque essas observações empíricas são sempre complicadas. A gente não tem essa pesquisa, talvez a Ana que está trabalhando numa escala mais macro, com o Municipal, talvez ela possa nos dizer alguma coisa sobre isso. Mas, de fato, eu até brincava com o Flávio quando o convidei: “É a brutalidade do fato”. É uma frase do Nelson Rodrigues que eu comecei a achar interessante para caracterizar a brutalidade desse fato. O público está caindo, não só não está aumentando como está caindo. Que pode ser puramente leviana. Porque na verdade, como você disse, e eu concordo, a gente não sabe. E talvez realmente a questão não é a formação de público, a questão é o que esse público poderá fazer. Então esse é o tema hoje para a gente aprofundar. Dago, por favor.
Dagoberto Feliz
Quando você me falou sobre formação de público, ou a discussão de público, pensei, não sei se eu seria a pessoa específica para esse lugar. Aí fiquei matutando e acho que o que dá para se pensar é que a gente abriu as portas do Folias [Galpão do Folias, teatro-sede do grupo Folias] em 2000, sendo que já estávamos lá desde 1998, reformando, mexendo. E aí tinha uma vontade, e isso motivou a escolha do local, por estar neste lugar. Quando a gente abriu ainda não tinha o terminal ali, e aí abriram o terminal e as pessoas que estavam ali, usuárias de crack, foram empurradas para outro lugar, estão sendo empurradas até hoje para lá e para cá, fora as porradas. Por isso a escolha dali mesmo, para atuar junto à comunidade. Tinha um pensamento muito forte encabeçado principalmente pelo Reinaldo Maia (1951-2009) e o Marco Antonio Rodrigues, éramos mais novinhos também e chegamos ali no gás. E numa tentativa de atuar diretamente naquela região. Esse movimento teve grandes altos e baixos. Num primeiro momento a gente fez um levantamento do entorno do Folias, ir bater na porta, conversar com as pessoas, teve um trabalho bastante intenso que durou primeiros dois anos quase. E a gente conseguiu chamar bastante gente para lá, com uma programação diversificada, com um teatro chamado político, muitos textos brechtianos, por formação também, muita música, a tentativa de estética popular, então tinha um movimento expressivo.
O bairro foi mudando e a gente, perdendo o contato com as pessoas que se tinha conseguido. A gente só conseguiu, eu acho, e são vários motivos, talvez a gente só tenha conseguido retomar esse público com o Otelo [2013, direção de Rodrigues], que foi uma provocação estética muito forte para nós e que reverberou bastante, não só para comunidade, e talvez tenha sido um dos grandes públicos do Folias. Aí começam a entrar outras informações (que você não consegue medir exatamente o porquê daquilo ter acontecido: o Aílton [ator Aílton Graça, intérprete de Otelo] tinha acabado de fazer Carandiru [filme dirigido por Héctor Babenco], tem indicação do Prêmio Shell para cenografia, então teve uma reverberação.
Lá pelas tantas, talvez um pouco mais depois de Otelo, começaram a aparecer outros grupos mais afastados do centro, que, aí sim, começaram a provocar uma outra discussão que não existia no começo. Que vinham com informações estéticas diferentes e que começou a ser um contato maior com várias formas de fazer teatro. Isso pode ser uma impressão minha somente. Mas começou a se dialogar mais, e isso, sim, também provocou um aumento de público no Folias. Muitas conversas, com o XIX [Grupo XIX de Teatro], com o Latão [Companhia do Latão], num primeiro momento, isso talvez provocou esse aumento.
Passando mais um pouco, depois teve uma queda de público novamente. Investiu-se em programação, programações semanais musicais, programação de segunda a segunda, mas não reverberavam como antes. Esse outro boom, diria, de público dentro do Folias, vai acontecer com El día que me quieras [2005, texto do venezuelano José Ignacio Cabrujas, 1937-1995], que foi uma provocação também estética para nós e que bateu na comunidade em volta, além de alunos, além de diálogo com outros grupos, além de tudo isso.
Estou falando e pensando agora o que pode ter sido. Isso só vai aumentar de novo o público, muito forte, quando a gente faz a Oresteia [2007, trilogia de Ésquilo], no marco dos 10 anos do grupo. Teve um público muito forte, não somente de escolas de teatro, que era o forte do Folias, no Oresteia. Talvez isso tenha acontecido por uma repensada geral de tudo o que a gente tinha feito até então. Aí teve um tempo de oscilação e isso só vai – e aí o Flávio tem um lugar de acompanhamento nisso – quando a gente monta o Folias Galileu (2013), que talvez tenha sido o momento de mais contato com a região, a ponto de a região pedir para entrar em cena, que é uma cena deslumbrante, na qual as pessoas do bar em frente participavam porque elas se colocaram para participar.
A gente começou a abrir, a Suzana Aragão, uma das atrizes, provocava na rua, e o bar respondeu, e começou a fazer parte, a gente tinha que viajar pensando em como faríamos aquela cena em outro lugar. E isso também, de novo, na região houve um número imenso de espectadores, além de também ter sido um espetáculo que as pessoas foram ver bastante e tal. E que tirava o público de um lugar de somente ver, mas que estava ali de alguma forma diferente. Isso em relação ao Folias. Ao mesmo tempo, se é que tenho esperança ou algo assim, existem pessoas que acompanham o Folias da região desde a fundação, estão ali, e se formaram, ou forma para outras coisas, e trazem pessoas, e trazem famílias, e trazem alunos, tem um movimento formado, mas que varia ainda. A gente não conseguiu ter uma constância, a constância é essa ondulação. Eu não estou no Folias já há algum tempo, só dirijo algumas coisas às vezes. E quem está no Folias agora está conseguindo dialogar bastante com outros grupos. A gente teve uma experiência agora como 7 pisos (2022), que conseguiu um público significativo, principalmente com escolas, também com o pessoal da região, e também pelo tema que era uma imersão do Folias atual no tema da negritude, do racismo, o que reverberou bastante no público, foi bem interessante. De contribuição para esse começo acho que é essa oscilação, que eu gostaria de ter entendido melhor, por que ela acontece, como ela acontece.
Luiz Fernando Ramos
Agora, a experiência de plateias bem maiores, que você tem, em que circunstâncias você teve essas experiências?
Dagoberto Feliz
A recente, estava conversando com eles. Eu dirigi a Paixão de Cristo lá de Piracicaba agora. E ontem foi o último dia e tal, 2.500 pessoas, arquibancada, lama, chuva, cancelamento, todas essas coisas… O que talvez interesse para a gente: a Paixão de Cristo em Piracicaba tem 33 anos, este ano foi a 33ª edição. Eu dirigi em 2005, e eu cheguei em um momento de crise da organização, sem dinheiro… Tirei os cenários todos, botei paninho somente… E teve um “coice” da sociedade piracicabana do porquê estar mexendo (não o pessoal do teatro). Passaram-se 17 anos, voltei nesta semana lá, preparação, o sem dinheiro continua, mas… Uma provocação assim, por parte da equipe de organização: “Vamos mudar, a gente está precisando de você e tal”. A gente fez uma proposta de encenação, os atores e atrizes gostaram, foi legal, mas a sociedade de novo (não estou falando mal de Piracicaba, acho que é a sociedade mesmo) deu um coice, fazia tempo que eu não tomava uma paulada assim tão grande. Foi bonito [risos], me lembrou de me ligar nas coisas. Exatamente assim: “Por que mexer no que já existe?”. Essa é uma discussão antiga. Por que mexer nesse lugar? Estão chamando você para mexer, você mexe, aí: “Não, mas não é tanto”. Claro que teve algumas pessoas que adoraram, mas teve uma reação muito forte, como há tempo não havia.
Em 2005 não havia redes sociais, agora a gente fica sabendo das coisas muito mais fácil. E as pessoas são agressivas, nunca tinha sentido isso, foi forte. Mas o que talvez interesse para a gente é essa reação a qualquer tipo de mudança, ao mesmo tempo a necessidade de mudança. E, também, no caso de Piracicaba, onde estão as referências. Protegendo a Lei de Fomento ao Teatro, acho que ela teve uma coisa de criar referências pela cidade toda, e referências diversas, e isso cria para o público uma possibilidade de reflexão crítica não somente para o teatro, mas sobre a vida, sobre tudo. Isso é um papel muito importante. Acho que eu vi essas coisas acontecerem, de público comparar mesmo, eu gosto mais daquilo, gosto menos daquilo. Não sei a quantas anda o desenvolvimento desse ciclo nesse momento.
Ana Lucia Lopes
Boa noite. Em primeiro lugar, preciso falar em nome da Andrea Caruso Saturnino. Ela pediu que me desculpasse por ela. Houve um imprevisto comunicado ontem à noite que a fez ter que viajar agora para o exterior, acompanhando um núcleo artístico do Theatro. Por isso ela não pode estar e pediu para que eu viesse aqui falar um pouco da experiência do Theatro com o público desde 2021 para cá, de quando nós estamos no Theatro, a Andrea e a equipe nova, desta gestão, para falar um pouco dessa reflexão sobre público e como nós temos atuado em relação ao público.
Antes, só queria dizer que público e oscilação são quase sinônimos, e é assim mesmo, é de âmbito social, quando o foco é o público, a oscilação é uma constante, que não dá muito diferente. O problema é que tipo de oscilação que a gente quer e quais os limites dessa oscilação. Não tem jeito, público cativo é uma coisa de outra categoria de pensamento. Mas essa gestão de 2021, da qual eu faço parte, entrou no Theatro Municipal na pandemia, então eu vou procurar descrever um pouco o que a gente tem feito nesses anos, porque são duas vertentes, uma a recuperação do público clássico do Theatro, que é obrigação do Theatro garantir, a outra é que público o Theatro Municipal vai ter que continuar a querer e é ação voltada para a diversificação desse público. Então vou falar um pouco, é nessa área que eu atuo, na diversificação de público, porque eu sou gerente da Gerência – o nome todo é esse, é horrível, né, gente, na minha idade virei gerente –, que é uma agência de Formação, Acervo e Memória, eu vou falar um pouco disso depois.
Mas num primeiro momento, em relação ao público clássico, foram muitas batalhas, muitas estratégias estabelecidas para tentar trazer o público de volta ao Theatro. Tinha o medo do convívio, as salas eram muito vazias, até que hoje a gente já consegue ter salas cheias. Eu acho que a questão no Brasil é a Assunção [risos – referência à subida do corpo de Maria ao céu, segundo dogma católico]. No final de semana da Semana Santa, a apresentação que nós tivemos da Sinfônica e do Coral Paulistano, as duas apresentações lotaram o Theatro, 2.500 pessoas, foi um sucesso total de bilheteria. Voltando agora à seriedade, são muitas estratégias sendo tentadas. Em primeiro lugar foi atuar junto com a equipe que recebe o público com carinho e com cuidado, de como receber o público e como recebê-los também. Porque o pessoal que recebe o público tem que ser cuidado para estar bem para receber o público, porque não é fácil estar na mediação do público.
A outra questão importante – eu acho que nesse momento de as pessoas começarem a querer se encontrar, mas terem medo de se encontrar, que esse foi o dilema, ninguém aguentava ficar em casa, mas tinha o medo do encontro, e a necessidade do encontro – foi uma manutenção constante que o corpo artístico se apresenta (ou o maestro e a orquestra, ou os solistas da ópera, ou o próprio coro da ópera) desce pelas escadarias e conversa com o público. Isso foi dando uma afinidade, uma aproximação, que foi garantindo uma certa continuidade, nós percebemos isso.
Flávio Desgranges
Depois do espetáculo?
Ana Lucia Lopes
Depois do espetáculo, desce. Então desce o Minczuk [Roberto Minczuk, regente titular da Orquestra Sinfônica Municipal] ou o Sangiorgi [Alessandro Sangiorgi, regente assistente] com alguns ou uma boa parte da orquestra; desce o diretor, a diretora, a Bia Lessa, com os solistas e com outras pessoas. Essa aproximação daquilo que está lá, o sagrado do palco, com o cotidiano, não chega a ser o profano, mas é o cotidiano. Esse é um movimento que a gente percebe cada vez mais pessoas gostando.
Tivemos que fazer adaptações, gente. Domingo, 17h, apresentação; sábado, 17h, apresentação, porque aquela é uma região difícil. A gente abre o Municipal, aquele entorno ali é desafiador, referente à segurança. E também isso facilitou. Garantir, domingo, uma apresentação às 11h e às 17h; sábado, às 17h, e durante a semana, não tem jeito, 20h, porque o problema do trânsito, do trabalho, a pessoa trabalha, não consegue chegar. E isso também deu uma mudada.
A gente falava da avaliação, a Sustenidos [organização social contratada em 1º de julho de 2021 para fazer a gestão do Complexo Theatro Municipal] conseguiu contratar uma empresa, uma instituição, que faz avaliação de público. Então, a gente consegue colocar numa série histórica de cada ano e comparar que público é esse que está mudando. Não é mais mulher que homem; uma faixa de 25, 30 anos, até os 60 anos; grande parte moradora da zona sul, zona oeste; então a gente vai levantando nível escolar, negros, brancos, indígenas, tudo isso a gente vai acompanhando para ver aonde tem que agir.
E algumas campanhas, por exemplo, o Theatro Municipal abriu de novo o programa de assinaturas e conseguiu fechar o programa de assinaturas rapidamente. Isso mostra que tem uma memória desse clássico do Theatro. O que acontece? Muitas vezes você compra o ingresso, mas não vai. Isso é muito comum, então a gente faz uma campanha de “doe o ingresso”, porque nós temos um programa de gratuidade. Nós temos de colocar quando o programa não é patrocinado 10 a 12 pessoas por cento de público para assistir ao espetáculo. Então, se tem 1.500, nós temos de ter 150 pessoas do programa de gratuidade dentro do espetáculo. Se aquela récita é patrocinada, nós temos de colocar 20%, são 300 pessoas gratuitas. São ONGs, instituições, tem todo um trabalho de trazer essas pessoas por meio do qual a gente sempre consegue lotar. Às vezes tem um problema de pedir o ingresso, garantir e não ir. Isso acontece também. Aí temos que mudar. Mudamos há dois meses atrás todo o procedimento de garantir a gratuidade, que a quebra de público foi muito menor. Nós estamos no melhor momento? Não. Nós estamos avançando cada vez mais nesse aumento de público, que é uma recuperação de um direito de assistir um espetáculo, de um direito de participar de uma conjunção artística que o Theatro propõe.
Mas é importante também dizer que essa programação está cada vez mais consolidada. Ela tanto traz, refaz, reedita antigas apresentações do Theatro, programações, como traz coisas novas. Isso a partir de um comitê curatorial criado na Sustenidos, pelo Theatro Municipal, dirigido e coordenado pela Andrea, de pessoas da sociedade civil que junto com os diretores, os maestros, a maestra, os representantes dos corpos artísticos, pensa a programação do ano. Estou falando por enquanto só dos corpos artísticos – o balé [Balé da Cidade de São Paulo], as orquestras [Orquestra Sinfônica Municipal e Orquestra Experimental de Repertório (OER)], os coros [Coro Lírico, Coral Paulistano] e o quarteto de cordas [Quarteto de Cordas de São Paulo].
E essa equipe curatorial cria um certo problema, evidentemente, ruídos, porque acaba um pouco a ideia de um diretor sozinho definir a programação inteira. Você tem que ouvir. Por exemplo, este ano nós temos o Ailton Krenak [ativista do movimento socioambiental, filósofo e escritor], Preto Zezé [músico, ativista cultural e presidente da Central Única das Favelas (Cufa)], mas tem especialista em música, especialista em teatro, especialista em dança, que compõem esse corpo artístico e vai discutir essa programação. E aí o embate é longo, mas sai uma programação mais coesa, que escuta um pouco o que o Ailton Krenak vai dizer da montagem de O guarani [ópera de Carlos Gomes que ganhou produção do Theatro Municipal de São Paulo em 2023, com direção cênica de Cibele Forjaz]. Não dá para sair O guarani exatamente igual ao último O guarani que saiu no Theatro Municipal nos dias de hoje.
Então como é que você atualiza a memória na contemporaneidade? Os temas que cada ópera aborda, pensando que a memória existe para ser atualizada, senão, ela não serve para muita coisa? Pensando em atender àquilo que o público quer, mas sem se acomodar naquilo que o público quer? Vai ter constrangimento, vai ter reação… Tem muita reação. Quando colocamos, por exemplo, o pessoal da Daspu, na María de Buenos Aires, a primeira ópera, a reação foi: “Mulher puta, como é que põe numa ópera no Theatro Municipal?”. Teve reação de público.
Quando nós colocamos o MST na ópera que foi uma obra comissionada, Café, que é uma obra do Mário de Andrade. Aquilo que tratava, hoje, o que representa esse movimento, é o MST? Nós trouxemos o MST. Houve uma reação: “Estão ‘esquerdizando’ o teatro?”. Não é nada disso. Tem que entender o que está acontecendo hoje e colocar sem medo e provocar a discussão.
Quando você traz mais personagens, maestra negra, personagens negros, solistas negros, a reação vem também. Isso sem falar nas adaptações daquilo que é atualização do espetáculo, só estou falando de personagens, não estou falando nem do tema em si, na atualização do tema. Nesse sentido, como a gente pensa nos corpos artísticos, que são seis, que estão sempre correspondendo à programação grossa do teatro? Nós estamos atuando nesse sentido. Sempre repensando as estratégias para trazer o público. Tem dado um lento e contínuo resultado, que para a gente é interessante.
Por outro lado, esse comitê curatorial ajuda a analisar a programação especial, que traz outros atores para o Theatro Municipal, para além dos corpos artísticos, que são as várias apresentações que acontecem na Praça das Artes e no próprio palco do Theatro, envolvendo coletivos, artistas, que se candidatam no edital de programação e esse comitê curatorial junto com a equipe, os diretores do Theatro, dos responsáveis pelos corpos artísticos, fazem a seleção. Dessa forma, você está sempre trazendo novas linguagens dentro do Theatro. O que também provoca reação positiva e negativa, não tem jeito. Quando você mantém o status quo, aquilo que é conhecido, você vai trazer as mesmas pessoas, quando você quer ampliar, você traz pessoas novas, mas também provoca o desagrado e provoca o agrado. A gente tem que saber que isso faz parte do jogo. Não tem muita saída, ou você se conforma ou você transforma. A escolha está aí. Isso é o que a gente tem feito em relação à programação, vamos pensar, dura do Theatro, a que fica alguns meses, tanto dos concertos, como das óperas, como do balé.
Então como é que você atualiza a memória na contemporaneidade? Os temas que cada ópera aborda, pensando que a memória existe para ser atualizada, senão, ela não serve para muita coisa? Pensando em atender àquilo que o público quer, mas sem se acomodar naquilo que o público quer? Vai ter constrangimento, vai ter reação… Tem muita reação. Quando colocamos, por exemplo, o pessoal da Daspu, na María de Buenos Aires, a primeira ópera, a reação foi: ‘Mulher puta, como é que põe numa ópera no Theatro Municipal?’
Ana Lucia Lopes, antropóloga
Na gerência que eu estou, temos um programa que tem a função de levar os corpos artísticos para se apresentar nos bairros da periferia, pensando nessa formação de público muito mais para a ampliação do repertório mesmo, para que o público tenha acesso a uma outra linguagem, o contato com uma outra área da arte. Nós vamos a oito regiões de São Paulo por ano e todos os corpos artísticos precisam circular nessa programação. Isso tudo depende de um grande calendário dos corpos artísticos na programação. Nós nunca conseguimos levar a Orquestra Sinfônica inteira porque não há espaços na periferia em que caiba inteira, nem no teatro dos CEUs, que são os maiores espaços, então levamos grupos da orquestra sinfônica para determinadas apresentações, balé… […] Uma equipe chega antes e fica lá discutindo que tipo de programação estamos propondo e a rede se monta. E quando chegamos ao bairro é um combinado, um grupo de artistas locais se apresenta primeiro, para que o público local conheça e reconheça um coletivo daquela região, e são de várias linguagens, e em seguida chega o Theatro Municipal.
E foi muito interessante nesse sentido porque além da formação de público nós estamos formando os artistas do Theatro Municipal. Porque antes, lá atrás, era uma reação: “Puxa, tem que ir, sábado de manhã, lá para zona leste?”. Agora eles pedem quando é o próximo. Porque o público que está lá recebe com um carinho, com uma empolgação, com um nível de aplauso que eles estão pouco acostumados. O calor do aplauso, vamos combinar, de um público clássico da ópera é um; o calor do aplauso de um público que está lá na periferia é outro. Os maestros, os bailarinos, os violinistas não querem deixar de ir. Isso está mudando um pouco a vontade do artista de ir para a periferia, porque não é só um processo de formação do público, é também de entendimento daquele grupo artístico que só vivia no palco do Theatro Municipal poder entender que ele pode circular, que ele precisa circular. Essa é uma das áreas de formação do Theatro Municipal hoje.
Essa área de formação atua também com um programa de bolsistas, muitos chegam no Theatro para fazer uma formação, por 10 meses ganham uma bolsa para poder aprender um ofício de teatro. O pessoal vai aprender cenografia, fica 10 meses lá com o Pelé – todo mundo sabe que para aprender cenografia tem que ser com o Pelé, que é da cenotécnica [Aníbal Marques, gestor de cenotécnica do equipamento]. Para quem não conhece o Pelé, é a pessoa mais conhecida do Theatro Municipal, depois do Minczuk , ou é mais, não sei. Tem o pessoal que vai aprender dramaturgia, aprender com a produção, com a programação, com a educação, com a pesquisa. É um processo de formação de um outro tipo de público, que é o público já vinculado à área cultural, que precisa ter espaço para entrar no Theatro Municipal também, por que não?
Tem tido esse tipo de provocação a repensar os vários níveis e segmentos de público que a gente quer chegar… O programa de gratuidade ganhou um certo fôlego, que está sendo bem interessante, essas ONGs e OSs quererem estar no Theatro, é só pegar o ingresso e ir, com antecedência, com confirmação. Acho que é um pouco isso, em termos do que estamos fazendo. […]
Luiz Fernando Ramos
Bom, vou pontuar uma coisa. No primeiro dia, o Zé Fernando [José Fernando Peixoto de Azevedo, dramaturgo, diretor e professor na Escola de Arte Dramática (EAD) da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP)], comentando sobre o Teatro Negro, a experiência que ele tem com o Teatro Negro, o crescimento do Teatro Negro em São Paulo. Os espetáculos do Teatro Negro lotam hoje em dia. Em outro dia, alguém falando da periferia, comentou o mesmo.
Na periferia, os grupos que têm públicos cativos nas suas comunidades, lotam. Então, é muito relativo mesmo. Quer dizer, a gente tem muitos públicos, muitos teatros em São Paulo, acontecendo simultaneamente. E, ao mesmo tempo, eu acho que tem um aspecto maior, eu mesmo já disse isso em alguma outra roda, que havia uma tradição no teatro brasileiro, secular, que vinha lá do fim do século XIX, o Arthur Azevedo, depois o Fróes [Leopoldo Fróes], que é um grande ator do início do século XX. Faziam-se sessões de segunda a segunda, quatro sessões por dia, e todas lotadas. E a tradição do teatro brasileiro, até os anos 1960, era de companhias que viviam de bilheteria. Então, houve uma inversão, que o Programa de Fomento também é responsável, na medida que ele instituiu uma coisa que a gente nunca tinha visto, que era o subsídio.
O teatro europeu vive à base do subsídio. A gente passou a brincar disso, além de ter os grupos financiados, e também isso gerou uma espécie de leseira em alguns aspectos. Por exemplo, eu lembro, assistindo Wagner Moura no Roda Viva, ele estava fazendo uma temporada com o Hamlet no Teatro da Faap, lotava toda noite. O espetáculo dele estava financiado pela Lei Rouanet, tudo que ele ganhava de bilheteria, era puro lucro. O espetáculo tinha se pago. E ele dizia que ele não ia continuar a temporada porque era muito caro, continuar por mais dois, três meses. Faltava o espírito empreendedor que essas companhias tinham. Isso foi arrefecido um pouco.
Eu acho que essa é uma questão também que tem menos a ver com o público, que tem mais a ver com as companhias. Tem mais a ver com a disposição dos artistas de terem essa gana de fazer para o público. Voltando à questão que vocês dois tinham colocado lá em cima, que é essa ideia da redundância. O público quer redundância. Ele quer ver o que ele já conhece. Qualquer cantor de rock vai dizer que, quando ele faz um set list de um show, ele precisa ter 70% das músicas que ele canta, conhecidas. Ele não pode jogar, um show de músicas novas. É um suicídio ele fazer isso. Isso é um pouco o que funciona também com a questão do teatro. Ter público significa oferecer alguma coisa que é reconhecível. São aspectos, são contradições que estão aí nessa questão.
A gente teve uma temporada aqui de oresteia.br [direção de José Fernando, que fez temporada no Tusp em 2023], da mesma peça que vocês fizeram há dez anos [para Dagoberto Feliz], em referência. Eu pensava assim, quantas Oresteias fizeram em São Paulo? Eu lembrava do Folias. Assim, poxa, quase 20 anos depois, uma versão de Oresteia feita com atores negros, saindo da EAD, corajosos e tal, um espetáculo de quatro horas, merecia pelo menos algum jornalista ter publicado essa notícia. E não saiu uma linha. Na sexta-feira, na Folha de S.Paulo, tinha os oito espetáculos que estão saindo de cartaz. oresteia.br estava saindo de cartaz, mas não foi nem mencionada. Então, o que aconteceu? Nas primeiras duas semanas, praticamente, não tinha ninguém. Agora, na última semana, por conta do boca a boca, os últimos espetáculos tiveram uma média de 50 pessoas, o que é uma glória. Enfim, eu acho que são questões e elas não são uma única questão. Eu acho que a questão do público é muito complexa. Ela envolve artistas, envolve a questão cultural, a questão da educação, a questão de um treino, desse hábito.
Luiz Antônio Rocha, diretor teatral e dramaturgo
É um tema muito complexo, evidentemente, como vocês falaram. Muitas vertentes. Eu sou do Rio de Janeiro, estou morando aqui em São Paulo. Encontrei a Denise Weinberg fazendo O testamento de Maria [texto do irlandês Colm Tóibin, com direção de Ron Daniel, estreado em 2016] e com muito pouco público e aquilo me impressionou bastante. Ela falou: Luiz, a gente está querendo voltar aos anos 1980, onde a gente ia na escola, pegava o público na mão e trazia para o teatro. E eu fiquei pensando muito nisso, que tipo de público a gente quer ter? Para quem a gente quer contar essa história?
Eu sou de uma escola burguesa, de teatro, onde eu aprendi que cultura é para quem pode pagar. Foi assim a minha formação, da minha escola… E aí eu me deparo… Será que é para que esse público que pode pagar que eu quero fazer teatro, que é importante para mim? Eu consigo visualizar uma massa de público nos meus espetáculos, quando eu saio desse público convencional, que é o público que quando a gente abre o teatro, paga, e aí eu consigo visualizar uma luz no fim do túnel. E não só o público que pode pagar. E, sim, existem outros tipos de público que merecem, como você falou, assistir aquele espetáculo. A questão é como se manter. Aí entra essa questão que é da Lei Rouanet, que é para poucos… Não acredito que vá mudar muito, porque as empresas já estão interessadas nas pessoas com visibilidade… Eu faço teatro há 36 anos. Tive uma vez um patrocínio de R$ 50 mil da Lei Rouanet. Então, assim, eu continuo fazendo, e continuo tendo público. Eu me considero uma pessoa que consegue ter um público. Eu trabalho muito, ralo muito, para correr atrás desse público.
Eu trabalho com um ator de rua. E com ele eu aprendi muito. Porque no Nordeste, principalmente, uma coisa que me encanta, eu já circulei várias vezes passando chapéu no Nordeste, é que os artistas nordestinos dão uma porrada na nossa cara. Porque a gente aprende no formato burguês, aqui em São Paulo, no Rio de Janeiro. Mas no Nordeste, se eles estão sem dinheiro, eles pegam o circo deles e vão para a praça, eles conseguem a grana do supermercado. Porque eles fazem, eles passam chapéu. E aqui eu ficava me perguntando: “Puxa, é tão fácil assim?”. E aí eu consegui ter uma dimensão muito mais interessante do público, ao invés de ser só esse público burguês que paga, que é o que a gente está discutindo aqui a princípio, como trazer público, como se manter no teatro.
Esse ator, com quem eu trabalho, ele estreou em Rasga coração [peça de Oduvaldo Vianna Filho escrita entre 1971 e 1974, com a primeira montagem estreada em 1979, pelo paulista José Renato (1926-2011)], ele fazia o filho do Raul Cortez, na época, na ditadura. E ele foi logo para a companhia do Teatro dos Quatro [fundada no Rio de Janeiro em 1978, por Sergio Britto, Paulo Mamede, Mimina Roveda e José Ribeiro Neto, no Shopping da Gávea], do Sergio Britto. E ele ficava vendo o público que frequentava o Teatro dos Quatro, dentro do shopping. E aí ele saía para pegar o ônibus dele ali na frente do shopping e ficava ouvindo aquelas mulheres dondocas, com motoristas… E ele falou: “Mas é para essas pessoas que eu quero contar, trabalhar e fazer teatro?”. E aí ele largou o teatro burguês, eu chamo assim, generalizando, mas é um teatro onde poucos podem assistir. Por exemplo, muitas vezes eu deixei de ir ao Theatro Municipal porque achava caro, mas eu não sabia desse sistema que você mencionou. É bárbaro, mas também tem que chegar a todo mundo, não é só a grupos específicos. Enfim, mas eu não sabia. Então, voltando, ele largou o teatro burguês e foi atrás do público dele, foi para a rua. E na rua ele se transformou em um grande artista de rua e ele sobreviveu, há 30 anos que sobrevive de teatro de rua. É um grande aprendizado.
Hoje eu trouxe ele para o teatro novamente e a gente tem um espetáculo que a gente circula muito. Muitas vezes sem patrocínio e a gente faz o “sistema Robin Hood”: às vezes a gente vende um espetáculo por um preço muito bom e a gente oferece para uma comunidade, oferece para uma coisa e assim a gente vai tecendo essa rede. A gente conseguiu um caminho do meio que muitas vezes é difícil. Muitas vezes a gente não consegue vender um espetáculo naquele mês, mas tem outros meses, teve um mês que nós fizemos 25 espetáculos vendidos. A gente fez espetáculo de manhã, tarde circulação, tinha um carro que pegava e a gente ia… Enfim, é possível, é muito desgastante. Mas eu considero, como você falou [para Luiz Fernando Ramos], na questão da mídia, um absurdo desses jornalistas preconceituosos que não tiram a bunda da cadeira, que não dão espaço para esse espetáculo que você falou que deve ter sido lindo.
Luiz Fernando Ramos
Você assistiu?
Luiz Antônio Rocha
Não, não assisti, mas eu vim assistir aqui algumas coisas. Eu acredito, eu tenho visto espetáculos belíssimos. Eu mesmo não tenho absolutamente nada nos jornais, muito difícil você quebrar esse sistema. Quando a gente fala que é um país democrático e a cultura é para todos e a gente não tem, a partir dos jornalistas… Eu acho que a gente está muito mal servido. Eu tenho vivido momentos muito difíceis em relação à mídia, em relação ao teatro, a gente que faz teatro.
Também tenho descoberto uma questão do público, que existe aquele público que vai ao teatro, que gosta de teatro e paga para ir ao teatro. Existe um público que a gente tem que pegar, que são as ONGs, não sei o quê, também é um outro público que está aparecendo aí. Mas existe um terceiro público que eu acho, que é onde eu estou chegando à conclusão que cada espetáculo tem um nicho e aí a gente tem que achar um nicho desse espetáculo. Então se é um espetáculo, sei lá, que fala de fé. De repente eu vou nas igrejas divulgar o espetáculo, não sei. Existe um terceiro nicho que não costuma ir ao teatro que tem o poder aquisitivo de pagar o teatro e que ele existe e está ávido para alguém chegar e falar: “Opa, olha que interessante”. E aí gostar do teatro. Gostar e virar um público do teatro. Eu acho que é esse lugar. Porque o público que gosta de teatro, que vai ao teatro, a gente não precisa fazer nada. A gente está exatamente nesse outro público que está precisando ver aquela história, mas que está faltando esse estímulo. Acho que é esse lugar que a gente tem que agir e que dá trabalho. É lindo o trabalho que vocês fazem [para Ana Lucia Lopes], mas é patrocinado. Se vocês não tiverem patrocínio, vocês não vão até o CEU. Eu acho que a gente que é ator e que rala e que não tem patrocínio, é uma questão muito grande.
Participei de uma companhia do Rio de Janeiro. Esse é um assunto que me interessa muito, por isso que eu vim, é instigante entender como trazer, como abordar. Eu estou colocando um projeto no ProAC e é vergonhoso o valor que eles dão diante da contrapartida que a gente tem que dar. Como é que a gente pode se sustentar um ano com um ProAC de R$ 100 mil? É impossível, é vergonhoso, as políticas públicas que nós temos, eu particularmente acho. Acho quase uma esmola. Eu acho vergonhoso, a gente aceitar esse tipo de política pública. Mas, enfim, é o que temos. Não podemos mudar muito mas eu sinto que tem um público ávido que a gente precisa pegar, é aí que a gente tem que atacar. Estou fazendo uma peça que tem cunho filosófico e eu estou descobrindo o público que não costuma ir a teatro e que tem me proporcionado uma experiência incrível. Mas, olha, eu trabalho demais. Eu ralo muito para poder chegar e divulgar nesses lugares, entendeu? São lugares que não costumam divulgar, cultura ou arte, mas ele existe, enfim.
Luiz Fernando Ramos
Obrigado. Justamente, a gente teve uma experiência há 20 anos, há 23 anos, em formação de público, na USP, e a grande lição que a gente teve (nosso foco eram alunos de escolas municipais públicas que nunca tinham ido ao teatro), foi de que você não precisa ensinar nada, você só precisa apresentar um espetáculo bom. Porque se a primeira experiência for boa, a pessoa está ganha, ela vai atrás. Não é assim? [para Flávio Desgranges]
Flávio Desgranges
É. Eu queria muito escutar porque tem gente de teatro aqui. Eu queria muito escutar, sabe. Para a gente tentar criar uma conversa mesmo. Mas uma questão que eu me coloco, que eu acho interessante a gente pensar, é se nos últimos 20 anos o teatro em São Paulo não mudou também o seu modo de fazer, o seu modo de relação com o público. Não necessariamente o espetáculo teatral é o epicentro da relação com o público, porque o processo de criação, também vai se fazendo muitas vezes na relação com o público em vários momentos. Será que isso também não mudou? Será que a quantidade de gente na plateia, será que é só esse lugar que a gente vai olhar o que é a relação com o público? Ou será que tem outras instâncias de relação que a própria Lei de Fomento fala disso, a questão da contrapartida tem sido tão debatida há tanto tempo, mas tem muito a ver com isso, que foi uma lei proposta pelos próprios artistas, que é um outro modo de relação com o público. Será que isso também não está implicado nisso?
Acho que é uma questão. Eu queria muito que a gente pudesse conversar, sabe. Que não fosse uma mesa, com a gente fazendo palestra, porque tem tanta gente de teatro aqui. Seria legal que a gente pudesse ver quais são as nossas inquietações nesse momento na relação com o público.
Pedro (pessoa do público)
Algumas coisas eu vou tentar resumir. Eu venho da música. Meu nome é Pedro, Pedro Costa. Eu também sou do Rio de Janeiro, estou aqui em São Paulo desde 2019. Passei a maior parte da minha vida trabalhando mais com música do que com teatro. Faz uns 10 anos que o teatro ocupa um espaço mais central na minha vida e eu percebi uma mudança muito grande, inclusive no tipo do comportamento do que é o público de música para o que é o público do teatro, no que diz respeito a porquê sair de casa. Por exemplo, não existe temporada de música, salvo raríssimas exceções, no teatro existe temporada. E em São Paulo existe uma coisa que talvez não exista em nenhum outro lugar no Brasil, e isso foi parte significativa da razão pela qual eu vim morar aqui, que existe essa criatura que a gente fala aqui e tenta estimar a quantidade, o número coisa e tal, que é o público de teatro. Isso realmente existe em São Paulo, pessoas que veem um tijolinho no jornal e vão assistir.
Flávio Desgranges
Isso no século passado. Agora não tem mais tijolinho.
Pedro (pessoa do público)
Um post e vão assistir…
Flávio Desgranges
É, isso aí.
Pedro (pessoa do público)
Mas, assim, de fato existe esse programa, essa dinâmica social, cultural de pessoas que saem quase aleatoriamente de casa para assistir uma coisa que não sabem o que é ainda. O Rio de Janeiro é uma cidade em que as pessoas costumam precisar ouvir de pelo menos oito ou nove amigos diferentes que aquilo ali é muito bom e saber que vão encontrar outras pessoas que já conhecem… Então, nessa questão da interface com o público se entrecruzam questões que já se colocaram de bolhas sociais, bolhas regionais e sociais, bolhas raciais. Você está falando, de fato, qualquer pensamento a respeito de público que não considere o que significa você sair ou não sair do seu bairro, sair ou não sair do seu grupo social, do tipo de pessoas que foram à escola com você, é um pensamento insuficiente, não dá para pensar em público, porque aí a gente começa a ter aquela reflexão que atravessa o fazer artístico, que é: “Por que a gente faz o que a gente faz? Por que e para quem a gente faz?”.
Isso não é uma coisa que a gente pode mais se dar ao direito de partir de um princípio aristocrático garantido, de que, como nós fazemos um negócio que convencionou chamar-se de cultura, isso tem, portanto, um valor já garantido em algum lugar e, portanto, isso merece ser visto. A gente tem que reatualizar este valor a cada momento, a cada encontro. Esse valor se torna muito concreto, quando acontece o espetáculo e alguma coisa acontece, alguma coisa se dá realmente. Você diz, realmente isso faz sentido, tem algum valor isso que eu faço, esse valor prévio. Mas dado isso tudo, aquela máxima, “O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”, ou o papo do Oswald de Andrade de que “Um dia o povo vai desfrutar do biscoito fino que eu fabrico”. Existe um lugar de um desejo de algo que faz sentido profundo para uma pessoa, para uma determinada coletividade, que esse sentido seja compartilhado, e esse compartilhamento ele é muito frágil.
Quando se fala assim, será que aumentou? Será que diminuiu? Qual é o efeito das políticas públicas? Olha, diante de uma cultura de déficit de atenção, diante da expansão de outras formas de compartilhamento, que têm um poder gregário muito grande, que foi a transformação dos cinemas em igrejas e tal, coisas que têm um poder gregário muito grande, muito forte. Outros tipos de compartilhamento que proponham uma diversidade de troca de sentidos, coisa e tal, me parecem que situações humanas precisam permanentemente ser protegidas da extinção.
Não acho que isso é uma coisa exagerada ou dramática, falar que esse negócio que a gente faz é uma coisa estranhíssima, absolutamente anacrônica e absolutamente necessária, portanto, existe uma qualidade de encontro humano. Me lembro de uma coisa que o Dago falou quando assistiu a um espetáculo meu, quando a gente se conheceu, antes da pandemia. Ele falou assim: “Tem uma coisa aqui que aconteceu que foi da ordem do encontro e a gente precisa valorizar isso, estamos aqui tendo um encontro de qualidade humana”. Isso, para mim, quando eu penso em se tem um espetáculo que tem X pessoas ou tem mais pessoas, enfim, toda a questão pragmática, se tiver mais pessoas eu consigo pagar a pauta do teatro, mas existe um outro aspecto.
Há um exercício de resistência da humanidade, da troca humana, do passar um tempo em que a gente não esteja escorregando o dedo para baixo de uma tela e vendo coisas novas, passar um tempo em que a gente esteja mergulhando num assunto de maneira compartilhada e num corpo, numa experiência encarnada que o teatro fundamentalmente é uma experiência em que o suor de alguém, de fato transpira para quem mais está lá, esse rito, o convidar alguém para esse rito, é um ato de amor, sabe. É um ato que se justifica pela preservação da nossa humanidade compartilhada, por mais que isso seja atravessado por todas as diferenças e algumas delas são irreconciliáveis.
Agora, do ponto de vista bem pragmático, eu tive experiências de contato, de levar espetáculos meus para outros lugares e tal e é impressionante como existe uma simetria de estruturas e culturas de contato com comunidades. Eu já tive a experiência de levar um espetáculo para CEU e de apresentar para quatro pessoas. Eu não tinha a estrutura de formação de público local. Quando você falou essa coisa no Grajaú, precisa levar a galera do Grajaú para o Grajaú. Eu já fiz apresentação na Sala Olido para 15 pessoas, então existe também uma simetria do ponto de vista do poder público (tenho sabido, por exemplo, acompanhei o Pedro Granato, que trabalhou muito tempo nos CEUs, a questão de como conseguiram aumentar a frequência de público, vibrei com isso), mas do ponto de vista da nossa interface com o poder público, quando quer que ela se dê, acho que tem uma demanda necessária de entender como esses equipamentos estão sendo inseridos em processos de diálogo com as comunidades que o circundam. É uma coisa que faz muita diferença para toda essa, vamos dizer assim, essa anarquia possível que se gera quando você tem pessoas que nunca assistiram e passam a assistir, quando você tem pessoas que têm acesso. Isso começa a gerar realmente uma coisa de vontade. Mas simplesmente botar o espetáculo lá não é suficiente.
Luiz Fernando Ramos
Definitivamente é uma coisa multifatorial, mas uma coisa que eu acho também que vai ficando claro nessas nossas conversas nessa última semana, que é multifatorial, mas a gente tem a carência de uma política pública que pense em todos esses aspectos. Ela tem que ser desenhada em vários níveis. Não é só o financiamento, não é só o público… Em algum momento, há 20 anos, em São Paulo, se chegou a ter um plano que tinha essa abrangência, que pensava em vários aspectos e ele teve resultado. Ele foi interrompido e aí a gente vive um pouco os restos disso até hoje.
Pessoa do público
Boa noite. Estou um pouco assustando porque eu sou a pessoa mais nova aqui. Mas brincadeiras à parte, eu acho que nunca vi esse tipo de coisa acontecer. Eu estou participando pela primeira vez e estou gostando pra caramba. Mas eu achei que eu fosse ficar um pouco mais quieto, mas eu acho que o que eu posso estar compartilhando pode abrir algumas provocações aqui. Enquanto a Ana Lucia falava, vieram muitas coisas que batem com aquilo que eu acredito, e o que tu disse também.
Eu sou do interior e lá a gente faz teatro porque a gente gosta. A gente quer fazer, vamos lá, junta uma turma e faz. E na minha cidade a gente viu o público, há 20 anos, vou colocar isso em parâmetro, essa galera fazia filas em volta do teatro, que queriam assistir independente do que fosse, queriam estar lá, mas de 2008 para cá, esse fluxo começou a cair. E até então tudo bem. Quando eu comecei a fazer teatro, sou de Tatuí, na sala do Conservatório de Tatuí cabiam 200 pessoas, sei lá, tinham 50, 100 pessoas [assistindo a uma apresentação], era grande, mas não era tanto, era um público legal. E para a gente era só aquilo, você quer fazer teatro é o Conservatório. Até que surgiu o tal do CEU das Artes na minha cidade e a gente começou a fazer teatro lá. Era um lugar mais periférico, como sempre é, e a formação de público começou por quê? Porque a galera, primeiro, não se sentia pertencente. Essa questão da galera não ir ao teatro principal, por exemplo, ou em qualquer outro lugar, a pessoa olha e se assusta. “Pô, não vou lá, não é pra mim, vai sempre as galeras engravatadas”. E o que a gente conquistou, trouxe e deixou um público cativo para a cidade foi justamente apresentar nos locais onde as pessoas geralmente não têm alguma coisa acontecendo.
Mas vai muito do que ele disse e o que tu disse também, do interesse do próprio artista em querer fazer. A gente precisa também colocar o pão de cada dia, mas antes de mais nada, a gente tem que começar com o trabalho de base. De certo modo, por exemplo, quando o meu grupo (que construiu algo bem sólido lá em Tatuí, hoje a cidade inteira gosta de teatro, praticamente), mas quando ele começou a ganhar ProAC, começou a ganhar a Lei Rouanet, começou a se destacar nesse aspecto, começou a ir para fora da curva, tipo: “Ah, a gente não vai mais fazer, vamos apresentar só para teatro agora”. Quando eu vim com a proposta de a gente ir para a praça, ir para uma quadra de escola, a galera falou: “Não quero ir porque não vai dar certo, porque se a gente ir para tal lugar vão roubar nossos equipamentos”.
Aí montei o meu projeto à parte. A gente ia, apresentava e dava super certo, lotava, o público amava. Embora o meu projeto não fosse tão grandioso quanto o projeto no qual eu atuava, super elogios. Tinha uma senhorinha de 90 anos que tinha dito para mim: “Eu nunca fui assistir a um espetáculo de teatro assim. Me tocou profundamente”. E aí depois disso veio a galera: “Pô, que legal, você está conseguindo um espaço para mim lá, eu quero apresentar lá também…”. Construindo isso, o projeto que eu venho criando, que é Teatro Alimento, é o nome que eu gosto de chamar, pelas regiões mais periféricas da cidade, a galera não conhece, começa a conhecer, começando a gerar um público ali, vai trazendo um pouco mais para o meio, não a área central, mas um pouco mais ali entre a área central e a periferia e vai criando realmente uma rede, onde as pessoas começam a se falar, se conversar sobre teatro.
Foi algo sólido construído lá e agora eu estou em uma outra cidade, em Caieiras, onde estou começando a viver o mesmo desafio. É uma cidade com vários bairros espalhados e os artistas não querem ir até lá. Porque tem um teatro municipal e para eles teatro é um teatro. Então, o que eu quero dizer com tudo isso? Eu acho que para começar, na minha visão, a ter um incentivo maior nessas leis de ProAC, Lei Rouanet, um valor ainda maior, precisa ter interesse da população. A gente já tem aí uma causa e efeito. Por que eu vou investir dinheiro em uma coisa se a população não se interessa? É essa a cabeça do pessoal que pensa quando vai colocar um recurso desse. O que a gente vai fazer, o que a gente como artista está fazendo para que a galera tenha o interesse? Eu entro em atrito com muitas pessoas porque minha visão é fazer de forma totalmente desburocratizada. O meu trabalho praticamente eu faço de graça e eu entro em atrito com muitas pessoas, até com o Luciano que me convidou para estar aqui [risos]. Mas eu acho que futuramente isso vai trazer um retorno, alguém tem que sacrificar, alguém tem que fazer alguma coisa. Acho que quando chegar ao ponto de conquistar o ProAC, a Lei Rouanet, a gente vai apresentar nos teatros, mas eu também quero levar essa oportunidade para outras pessoas, não ficar só fechado ali no que tem, um teatro bonito, acho que a gente não vai conquistar o público, não vai criar um trabalho de base, fazer com que as pessoas se interessem. E não acho que é só um espetáculo bonito, é algo que eles precisam ter. Alguém comentou sobre a orquestra, eu nunca tinha assistido a uma apresentação de orquestra, por mais que morasse em Tatuí, a capital da música. Quando eu fui para Caieiras teve um espetáculo que eu fui, muito fragilizado, o público não estava lá, mas por quê? Porque a galera não tem o hábito de ir. Infelizmente, a gente está num momento em que vai ter que sair e pegar na mão das pessoas, ir nas escolas, levar para praças, penso mais nesse aspecto, em criar um vínculo nas periferias e ir puxando a galera para dentro.
Ana Lucia Lopes
Nós estamos falando de coisas que se entrecruzam, mas que são diferentes. Uma questão é uma decisão política de dar acesso às várias formas diferentes de realização da arte. Quando a gente fala de cultura e arte as coisas se misturam, mas é importante fazer uma diferenciação. A forma de comer, a forma de falar, tudo aquilo que nos construa humanidade é cultura. Agora, as várias formas da arte, a arte é uma expressão de representação, e o teatro é isso. A arte é essa experiência que permite uma experiência estética, mexe com a dimensão do humano e nos coloca em outro lugar, nos coloca na condição de humanos de novo. É algo que não tem uma finalidade prática. […]
O fundamental, eu acho que a gente está falando de uma outra coisa, que é uma decisão política de exigir uma condição de atuação, porque é importante ter condições materiais para realizar as ações. E o público vem. Essa coisa do público com o teatro, eu às vezes tenho que trazer o público para depois o público querer ir também. Porque nós estamos falando de públicos diferentes. Porque o público de classe média é público que tem os dois tipos [como exemplo]. Vamos supor, tem o público de classe média que está lá, já quer ir, e tem aquele público de classe média que tem que trazer, que não tem a experiência artística como um valor. Nem todo mundo tem experiência artística como um valor, muitas pessoas hoje estão totalmente blindadas no mundo da imagem e do som na televisão e dali não saem mais. A experiência de contato é cada vez menos privilegiada, cada vez menos valorizada. O contato, o encontro, estão cada vez menos valorizados, nós estamos numa guerra, quase uma guerra civil, em que a gente está sendo questionado, está virando demodê já.
“Que papo é esse de encontro? Por que eu tenho que ir lá se eu posso apertar o botão e ir para o mundo virtual?”. Eu acho que a resistência é transformadora. Então, alguém falou alguma coisa superimportante que é a coisa da convivência. Tudo bem, eu não tenho de ser contra a tecnologia, a tecnologia é o destino do homem. O problema é como a gente usa a nosso favor a tecnologia. Eu sei pouco do Theatro Municipal” [quando alguém fala]. “O Theatro Municipal tem que melhorar a sua forma de divulgação. É o limite do Theatro. Nada é tão fácil, são 500 funcionários. O dinheiro que o Theatro Municipal recebe da prefeitura é para pagar os salários. Toda a programação é captação, então eu tenho que correr atrás: 95% da programação artística do ano passado [2022] foi paga com captação. É importante saber que o Theatro Municipal é o único do Brasil e um dos poucos da América Latina que tem o chamado corpo artístico conquistado, ganhando salário mensal, décimo-terceiro, isso custa dinheiro. Isso é superimportante se manter, sim. A programação o Estado não paga, por isso se tem que captar.
Estou misturando os assuntos, mas na realidade queria dizer outra coisa. É uma condição que a gente tem que batalhar pela necessidade de maior apoio. […] Porque é um compromisso público. Eu acho que é fundamental a presença da arte na nossa construção como humanidade. A nossa capacidade de representar, de se ver no outro, é a arte que dá. […] Acho que tem que tentar ter isso como decisão pública, se não a gente só consegue quando tem.
Flávio Desgranges
Vocês conhecem o programa chamado Eu Faço Cultura? Quem conhece? Ninguém conhece. É um programa muito interessante. O Eu Faço Cultura é uma plataforma, me parece que é privada, mas tem alguma coisa do governo, que você inscreve o seu projeto e aí ele analisa o projeto e te dá – sei lá, compra ingressos – e distribui para outros. No início super funcionou, eu mesmo cadastrei vários projetos. Dá um trabalho danado porque você tem que fazer uma formação de público com as ONGs, dizer: “Olha, existe essa plataforma”. Ninguém conhece aqui, todo mundo faz teatro, mas ninguém conhece – é uma plataforma para as pessoas que fazem teatro e é muito interessante. Hoje em dia, eu acho, eu estou com dificuldade de usar a plataforma. A plataforma tem recusado meus projetos que da outra vez aceitou. E aí eu vejo a programação lá e começo a questionar também se eu quero estar lá, porque a programação realmente me parece que não tem critérios, então aí é uma outra questão. Mas é uma ideia boa, é muito interessante, vale a pena olhar.
Henrique Vidal, estudante
Eu não sei se posso dividir muita coisa. Comecei a estudar teatro em 2020, desde lá até hoje acompanho a programação da cidade de São Paulo, faço parte desse público de artistas que vão ver outros artistas o tempo todo. O que eu queria comentar em cima do que vocês falaram também, porque na verdade eu voltei faz uns seis meses de uma viagem que eu estava fazendo, fiquei trabalhando dois anos na Espanha e um ano na Holanda. E daí automaticamente quando você chega lá, mesmo que você esteja para trabalhar em uma área que não é cultural, automaticamente quero visitar os teatros. Você acaba frequentando o lugar, sabendo e acompanhando a programação de tudo. Eu queria dividir porque é uma realidade completamente diferente da realidade da qual a gente vive, principalmente a Holanda, mas na Espanha, por exemplo, tem aspectos de financiamento público.
Por exemplo, a questão de gratuidade de apresentação é extremamente rara, não existe. Não vivi em Madri, tá, em Madri pode ser que haja esse tipo de coisa, principalmente em teatros alternativos e coisas desse tipo. Mas, pelo que eu sei, na cidade que eu fiquei, no norte da Espanha, La Coruña, você tem uma programação de teatro subsidiada em nível do Estado e suas diferentes subdivisões, como província e cidade. Você tem esses subsídios mas, por exemplo, a gratuidade não existe. Existe, por exemplo, ingressos populares.
E fui basicamente formado em teatro como público, aqui na cidade de São Paulo, tem todas essas questões, a Lei de Fomento etc. e tal. E tem as questões da mudança de uma coisa muito simples, do salário mínimo – o salário mínimo em euros é completamente diferente do salário mínimo em reais. A qualidade de vida é completamente diferente e você nota, por exemplo, que os públicos tradicionais de teatro lá geralmente é uma população muito mais envelhecida. Você nota, por exemplo, pessoas envelhecidas, de 50 anos para cima. O grande público é de 50 anos para cima. Enquanto que, por exemplo, você vê em teatros underground que eu frequentei um público muito mais jovem, que flutua entre apresentações de teatro e apresentações de música, é essa questão desse comportamento.
E eu queria meter essa questão da idade, da questão do etarismo etc. nisso tudo, porque acho que a questão do público está vinculada diretamente a isso. Eu vejo isso muito claro na Espanha, mas se existe aí um financiamento. Quando eu fui para a Holanda, não existe praticamente financiamento de cultura nenhum. Ou seja, os preços e os ingressos são muito altos. Só que você vai pegar e comparar, por exemplo, o salário mínimo da Espanha com o salário mínimo da Holanda, você tem praticamente uma duplicada do salário mínimo. O salário mínimo holandês é um dos mais altos da Europa. Então, por exemplo, eu conheci um teatro brasileiro em Amsterdã, não sei se vocês já ouviram falar, eles conseguem manter uma programação, que é uma programação de músicas latino-americanas e teatro, e eles conseguem manter o teatro com uma casa de 25 pessoas – 25 pessoas, para terem uma ideia, é casa cheia. Só que eles mantêm o espaço, tudo funcionando. Os donos são brasileiros e vários atores também.
Vi uma apresentação de um ator brasileiro lá e várias apresentações de grupos musicais brasileiros. Eles conseguem montar uma programação de tal forma, no espaço deles que, garantindo 15 pessoas em cada evento, conseguem pagar o aluguel e pagar todo mundo. Então entra num lugar, como a Holanda é desassistida de cultura, as pessoas que vão ver, elas tratam aquilo como se fosse ouro. Pagam os valores altos (óbvio também, você recebe um salário de 2 mil euros, que equivale a R$ 10 mil, que é o salário mínimo da Holanda [em 2023], você tem condição de pagar muito mais alto).
Enfim, tem essas questões que tem a ver também com classe média e tal, mas eu percebi que na Holanda você também tem essa questão, que é europeia, que é a questão do envelhecimento da população em geral. Eu gostaria de discutir a respeito disso. Por exemplo, uma pessoa que já chegou aos 50, 60 anos, não tem tanto interesse de estar em uma situação não confortável. Gosta de comprar um ingresso antecipado, estou falando de um padrão de pessoas na sociedade, gosta de ter lugar marcado, gosta de determinadas estruturas de conforto que privilegiem uma instigação (porque a gente não vai ao teatro só para ficar feliz, teatro não é um estado de entretenimento propriamente dito), quer estar em uma determinada situação e estrutura de conforto. Estou abrindo várias frentes nesse aspecto. Eu queria discutir isso. Desculpe, muitas informações.
Thiago Reis Vasconcelos, diretor e dramaturgo, presidente da Cooperativa Paulista de Teatro
Eu queria dialogar com essa questão do público a partir de dois pontos de vista do que é essa forma que eu acho que ela permanece ainda no chamado teatro de grupo. Acho que tem a ver com esses encontros, que é uma forma, digamos assim, presencial de se fazer isso, mais do que presencial, é presencial e cotidiana. Então, vou usar na fala alguns elementos que eu acho que não podem ser separados.
O público que vai extra cotidianamente a algum espaço é diferente do público que frequenta cotidianamente aquele espaço e essa relação se dá presencial, pode ser que ela acabe. E aí existem algumas coisas que eu acho que não podem ser discutidas separadamente dos modelos produtivos. O que eu quero dizer é, por exemplo, como você falou [para pessoa do público 2], é importante pensar isso sem descartar as formas produtivas. A Holanda até 1790, até pouquíssimo tempo, ainda funcionava dentro dela um órgão colonizador que é as Índias Ocidentais, tiveram aqui no Brasil de 1600 até 1790. É uma pilhagem gigantesca, o que no meu entender permite esse salário. Então, olhar para a Holanda hoje, tentar olhar alguma coisa daquela, é óbvio, quem pilhou e colonizou um espaço no Sul Global durante séculos é, digamos assim, um impulso mercadológico que foi dado ali logo de começo. Mas por que eu estou falando isso? Porque eu acho que a gente discute muito pouco a relação do público e as formas do próprio capitalismo, de como ele lida.
E aí eu vou para uma coisa muito específica. Desculpa, esqueci o seu nome… Ana. Eu concordo muito com você, Ana, quando você faz a diferenciação entre cultura e arte e eu acho que isso é um dos pontos centrais da discussão, porque também é pouco discutido. O que eu quero dizer com isso? A gente está falando de produções artísticas e, portanto, que são destinadas (aí são programas de como cada um pensa a arte). Mas se a gente pensar a arte como uma educação permanente dos sentidos, ela diz mais respeito ao objeto artístico, do que se quer ser dito com a obra. Aí eu vou comentar uma outra coisa. Quando a gente fala: “Espetáculos de determinadas matizes têm lotado”. A minha pergunta é: “É o objeto artístico que tem levado algumas pessoas ao público ou são temáticas?”. E lembrar que temática e objeto artístico são coisas absolutamente distintas e me parece (e isso é uma discussão do Gumbrecht [Hans Ulrich Gumbrecht, teórico alemão radicado nos Estados Unidos]), que sentido e presença desde o século XVIII de maneira colonizadora, a arte foi sendo arrastada por uma arte que seja utilitária. Por isso que a música dá essa experiência. A gente não consegue falar qual é a temática de determinado soneto, essa temática não está dita de maneira, digamos assim, nesse sentido que os europeus quiseram colocar para a gente desde o século XVIII.
E isso se confirma com a quantidade de artistas e de produção artística, principalmente de povos originários de vários continentes, que tendem a ter artes mais abstratas, artes que não estão diretamente ligadas a um sentido que diz: “Ah, o que você assistiu no teatro? Eu vi uma história que fala isso, isso e isso e com a função disso”. Ou seja, uma certa apreensão da arte, e essa apreensão é colonizadora, para que ela seja correia de transmissão de propaganda ideológica, mesmo que a gente goste, mesmo que seja uma ideologia que a gente acredite. Estou trazendo aqui um entendimento de arte que seria um exercício fundamental de expressão e da liberdade artística.
Dado essa volta, o que o capitalismo hoje nos apresenta como matéria mais paradigmática? Às vezes a gente vai à discussão sobre uberização e as pessoas falam: “Ah, uberização é a precarização do trabalho e blá, blá, blá”. Não, a uberização, ela é chamada assim porque ela tem um componente que é precarização do trabalho, que é uma coisa muito antiga, a novidade é a plataformização deste trabalho. Portanto, o que caracteriza um trabalho uberizado não é o grau de exploração da classe trabalhadora que está ali, mas sim ele ser plataformizado. Ele é organizado através de uma plataforma que pode escolher ou “desescolher” coisas. Os estudos mais recentes mostram, por exemplo, que o Airbnb tem um racismo estrutural, é mais difícil para uma pessoa com um sobrenome ligado a populações árabes ou palestinas conseguir se alojar num Airbnb do que uma outra pessoa, isso está dado, o algoritmo assim o lê. Essa plataformização está diretamente ligada a um sentimento de exclusão de uma experiência concreta e cotidiana com aquele que faz e produz. É nesse sentido que o teatro de grupo ainda cumpre uma função absolutamente interessantíssima porque ele costuma ser realizado na presença e cotidianamente em determinados territórios dessa cidade e, portanto, não é uma experiência que só acontece extra cotidiana. Ele é formado, e essa peça é formada, num conjunto de relações que aquele cotidiano ali se coloca.
Portanto, o trabalho artístico – não estou nem caracterizando a qualidade do trabalho artístico – nasce desse conjunto de relações e existe uma lei que pensou sobre isso, que é a Lei de Fomento ao Teatro. Não é uma lei de produção de uma, digamos assim, de um produto artístico. E olha que não estou fazendo aquela ligação que eu não acredito: “Ai, logo é mercadoria”. Não, não tem nada a ver, existem dezenas de formas de se produzir um produto artístico. E, às vezes, também quando a gente é chauvinista, que é a principal característica do fascismo, a gente acha que todas as pessoas têm que produzir tal qual nós no teatro de grupo. Não é isso que estou defendendo de maneira nenhuma. Mas estou tentando pegar um olhar para isso no que talvez seja para mim a coisa mais difícil que tem acontecido, que é perder a presença.
Essa práxis de sair da presença está ligada a esse estágio do capitalismo, e por isso que eu acho que tem que ser discutido o capitalismo quando se discute o público, que é um certo “complexo internético”. Estou citando diretamente o Jonathan Crary, que acabou de lançar esse livro que é fabuloso [Terra arrasada – Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista, Ubu, 2023]. Ele chama de complexo internético para que ninguém confunda, como se ele fosse um ludista antitecnologia. Como a Ana disse, a tecnologia é projeto da humanidade. Mas o complexo internético, e acreditar que ele veio, existe, vai ficar e vai continuar, aí já é uma previsão – tanto para os que falam sim, quanto para os que falam não – de futurologia. De fato, o que existe hoje dentro desse complexo, eu diria que temos três problemas principais. A colonização da consciência, e, portanto, a gente volta para o processo de colonização da consciência que a gente viu a experiência acontecer no próprio processo de colonização, o teatro jesuítico, essas coisas todas que ocorreram, só que agora de maneira massiva jamais imaginada. Ia deixar os teóricos da indústria cultural, com a questão do rádio, falando: “Nossa senhora, não imaginei coisa assim”, Adorno, Marcuse e essa turma toda. A segunda, a homogeneização da experiência: a experiência vai ficando parecida para todo mundo, e, em terceiro, uma anestesia dos sentidos.
Aí eu volto: se a arte é aquilo que se comunica de maneira humana junto aos sentidos e os sentidos são o principal meio de recepção do objeto artístico… Porque se fosse só através da racionalidade, nós faríamos só palestras, a filosofia daria conta, a arte não teria sentido se fosse um instrumento de passagem de mensagens, isso seria uma coisa absurda pensar arte nesses termos. Tem projetos que pensaram assim, projetos catastróficos como o projeto do stalinismo e o jdanovismo stalinista [referência ao censor Andrei Zhdanov], que pensava a arte como uma mera reprodução das ideias do próprio Estado. A gente viu onde isso deu, em problemas gigantescos.
Isso de um lado, e do outro a arte como propagação também de ideologia, que é o que a gente vê nas novelas da Rede Globo ou como a gente vê nos produtos da indústria cultural e de maneira mais disfarçada, ou seja, utilizando inclusive mais da forma, digamos assim, aceita, fazem o mesmo tipo de propaganda. Então, a minha grande questão é se a gente tem tido essas três questões (anestesia dos sentidos, colonização da consciência, homogeneização da experiência), uma arte que desde o século XVIII tem privilegiado a intelecção de uma mensagem, a própria presença cênica, a presença artística, técnica, tudo que se apresenta aos sentidos, a gente tem tido uma enxurrada de pessoas e isso é o que acontece, o que a gente tem chamado lá nos nossos trabalhos de colapso da subjetividade. Ao mesmo tempo que o colapso do meio ambiente está apontado, aponta-se também o colapso da subjetividade.
E é lá para cima, no Norte colonizador, que a pesquisa mais recente saiu, se eu não me engano é na Dinamarca, que é a primeira vez na história da humanidade que uma geração tem uma capacidade intelectiva inferior a anterior, que é o livro, esqueci o nome, já vou recordar. O que significa isso? Desde que a humanidade se conhece, se pesquisa e fala de si mesma, isso jamais teria acontecido. Ou seja, diminuição da capacidade de concentração. Não estamos falando de um país onde o salário mínimo não dá para comprar absolutamente nada, estamos falando de Dinamarca, veio de lá. Existe uma eminência de um colapso. Esses pontos aqui geram diminuição da capacidade de concentração, diminuição de interesse de coisas que não digam ao seu próprio umbigo. Ou seja, assuntos teatrais ou assuntos formais sobre a arte dificultam aquele espectador a criar um cotidiano com o objeto artístico. E aí a gente cria uma série de estruturas que são mercadológicas que se repetem que a gente vê e que eu acho que como tática, não estou criticando a tática, mas o que a gente discute para depois. Por exemplo, museus. Museus se tornaram coisas que conseguem fazer mega exposições, ou seja, os sentidos ficariam assustados até, porque quando você vê todas as obras de determinada pintora ou determinado pintor são megas exposições cheias de aparatos pseudoparticipativos – ah, pinte a obra, faça não sei o quê – as daqui ainda não, mas as de Holanda, França, Inglaterra… Você vê [exposições] muito ligadas a um verdadeiro supermercado do Louvre. Você encontra cada uma daquelas obras como imã de geladeira, cada um daqueles livros, ou seja, você tem um verdadeiro aparato tático para tentar trazer aquelas pessoas. Esse aparato tático se confunde se ele ajuda a alienação ou se talvez aquilo esteja dado, e pouco a gente discute sobre esse processo digital.
Então, assim, o que é fazer arte hoje com um público digital e que provavelmente esteja sendo atacado por todos esses processos que arrebentam com a subjetividade? E se a arte é justamente uma comunicação humana que diz respeito à integridade de uma subjetividade, não um pedaço racional da mensagem com quem nós estamos falando, quais possibilidades a gente consegue através do processo artístico de abrir de novo as portas dessa coisa que é revolucionária em si, no meu entender, que é a arte?
Portanto, a gente vê artistas que são de esquerda fazerem objetos artísticos que são absolutamente ridículos e demagógicos e não servem para coisa nenhuma, e a gente vê artistas que são de extrema direita e participaram de coisas políticas que a gente se envergonharia e que fazem objetos artísticos que você fala: “Não tem como não gostar desse objeto artístico”. Portanto, a arte tem esse poder de transcender inclusive aquele que o faz, ela consegue isso, ela é uma manifestação. E portanto é uma manifestação de uma criação subjetiva por uma recepção subjetiva e que hoje é preciso ser analisada e olhada através desse público digitalizado e das suas problemáticas digitais.
Estou falando que a gente tem que agir com velocidade, porque talvez a próxima geração já não lembre o que é o encontro e aí vai ser tarde demais para que a gente tente reverter essa presença, que é realmente o que acontece na arte de mais importante. E essa presença, se radicalizada, a gente consegue fazer com que ela seja uma presença e cotidiana.
E as experiências do teatro de grupo estão aí para serem colocadas, os grupos têm vindo aqui e contado suas experiências. A Ágnes Heller, que é uma teórica que fala sobre o cotidiano, talvez coisas que a gente escuta pouco, diz: não é a pessoa se deslocar até o lugar onde acontece, mas em que tipo de cotidiano esses espaços acontecem. Por isso, agradeço ao Luiz, esse encontro que está acontecendo mais uma vez, porque ele visa, além da peça que está aqui, criar um cotidiano de pensamento do que acontece e que não deve ser matematizado. Eu fiz a conta a partir do relatório e essas coisas são moralistas, a conta de quanto custa um ingresso ou por cabeça, cada pessoa que vai no teatro X, Y ou no próprio Theatro Municipal. Isso eu acho que é moralizar o assunto quando a gente está vivendo uma crise gigantesca da subjetividade.
E aí a gente se joga em dois lugares. O sistema de políticas públicas apresenta editais competitivos. Então, o que seria bonito? Eu, Flávia, Renata, que somos da Antropofágica, contar experiências de como nós somos felizes com o público. Por que? Porque nós estamos fazendo até uma propaganda do que a gente vai colocar no próximo edital. Outro lado disso é a gente olhar para quem não foi feliz e falar: “Está vendo? A experiência dessas pessoas deu errado”.
E, aí, pensar um pouquinho que a experiência da subjetividade não é uma experiência individual, ela é a experiência de um lugar comum. Se a gente não recriar fóruns que nem esse para discutir público, se deixar essas experiências fracionadas nos seus territórios e se não arrebentar essas barreiras, a gente vai se explodir, porque o problema está coletivamente colocado e talvez as experiências exitosas não durem mais do que uma temporada. É preciso que a gente junte Theatro Municipal, os projetos do ProAC, com os projetos do Fomento, Cooperativa, Sated, todos esses lugares que trabalham com o público e fazer um ciclo e pensar quem é esse público digitalizado.
Flávio Desgranges
Eu vou falar rapidinho para passar para o Dago. É interessante, porque imagino que a experiência de vocês não deve ser diferente da que eu vou relatar. A nossa experiência, do grupo de pesquisa que eu integro, é a de propor encontros com o público depois do espetáculo. A vontade que as pessoas têm de participar e o modo com que participam e como essa subjetividade se apresenta e as pessoas se mostram ávidas pelo encontro também é interessante. Porque vai na contramão desses estudos, que eu não estou dizendo que não existem e que não sejam fato, mas há também um anseio pelo encontro e, quando ele se apresenta, quando ele se abre com efetividade, com a possibilidade mesmo da presença, as pessoas mostram uma ansiedade muito grande, uma disponibilidade muito grande para trocar e para compartilhar esse encontro. Eu acho que isso é muito interessante. Então, como estabelecer, propor encontro? E como compartilhar esses estabelecimentos, essas propostas que já vêm sendo feitas? Eu acho que é muito interessante.
Dagoberto Feliz
No início, eu falei assim: “Eu não sei por que falar sobre o público, teriam pessoas que falariam mais que eu”. Pode parecer bem ingênuo, mas voltando para a criação de uma obra artística, eu não consigo pensar a não ser no encontro. Se eu penso fora dos meus interesses, eu não consigo criar, eu não consigo pensar: “Ah, eu preciso criar uma forma de divulgar”. Essa é a última consequência e as coisas estão ficando totalmente invertidas. O nosso pensamento artístico está sendo levado, a gente tem que estar mais atento, a gente está começando a não pensar mais artisticamente. A gente está começando a pensar de um outro jeito que não é nosso, sendo que o nosso é muito mais interessante, porque volta para a pessoa. E artisticamente tenho preferido fazer assim. Eu falo assim: “Vem cá, vamos conversar. Vem cá”. Por escolha estética, por necessidade absoluta de encontrar essa pessoa. Não é à toa que está todo mundo se voltando, vamos conversar. A gente está aqui hoje. Porque senão, o nosso pensamento vai ficar invertido. E aí vou começar a entrar em uma área que eu não sei, que é matemática; que eu não sei, que é porcentagem; que eu não sei, que é tabulação; eu não conheço o Excel, eu faço por obrigação apenas. Se a gente começar a entrar nesse lugar, a gente perde, a gente não consegue.
A tua fala [para pessoa do público 2], assim, eu não quero entender como é, eu quero entender o básico para eu poder pensar um dia, e não: “Eu quero aprender a pensar desse jeito para conseguir”. Eu perco totalmente o porquê de estar fazendo, o porquê de estar criando qualquer coisa. Insisto, eu adoro viajar para Europa, adoro dinheiro, gosto de comida japonesa […], eu preciso de dinheiro, mas se eu deixar de pensar, se nós deixarmos de pensar, criativamente, eu vou perder tudo.
Flávio Desgranges
Eu li um artigo recentemente, já foi escrito há algum tempo. Como é o nome daquele teórico português? Gil… [José Gil]. Ele falou uma coisa muito bacana num encontro, que ele fala assim: “Quando duas pessoas se encontram e vão começar a conversar, como é que se estabelece essa conversa e como que ela engata?”. Ele fala que essa conversa não engata pelo tema, as pessoas podem começar pelo tema, como é que você está, está frio, está quente, está chovendo, o tema pode ser um início, mas ela engata pelo tom. Acho isso muito interessante, pelo tom que se estabelece. Como as pessoas conseguem estabelecer um tom que vá criar um engate, de que a conversa continue. Portanto, eu acho isso interessante, pensar como fazer esses encontros e como propor encontros que estejam marcados pelo tom com que ele vai ser proposto. Eu acho interessante.
Luiz Fernando Ramos
A gentileza e a rudeza podem ser fatais.
Luiz Antônio Rocha
Acredito que o encontro a gente sabe fazer, ou pelo menos a gente tenta fazer bons encontros, acho que a gente está aqui por isso. Mas a questão é a manutenção disso. Também não me adianta fazer um bom encontro que seja visto uma única vez. A gente está aqui discutindo, acredito eu, é como manter esses encontros em grandes temporadas, acho que essa é a questão. O valor do encontro, isso é fundamental. Uma das coisas que eu faço em todos os meus espetáculos é o bate-papo após a apresentação. A sensação que eu tenho é que a peça não acaba ali, as pessoas vão para casa e vão discutir. Adoro quando saio da peça e vou para uma mesa conversar sobre aquilo que eu assisti. A sensação que eu tenho quando eu abro esse bate-papo para o público é que esse encontro se estica e a gente acaba ouvindo o público, o público vira protagonista porque aí ele revela realmente e aquilo transforma o próprio encontro que foi feito. Tenho uma vivência muito interessante em relação a isso, a esse bate-papo, é muito vivo, é muito impressionante.
Mas acho que a questão é como manter isso, porque eu vivo de teatro e eu pago contas. Acho que faço bons encontros, mas eu preciso me manter vivo, me manter, e o caminho do meio talvez seja essa coisa que a gente está procurando. Eu fiz um espetáculo onde eu tive três pessoas (isso não é vantagem ou desvantagem), três pagantes, no meio da Copa do Mundo. Um edital que teve no Rio de Janeiro horroroso, que aí todo mundo achou que as pessoas que iam para a Copa do Mundo iam, e aí tinha um edital de ocupação e eu ocupei lá, um teatro no centro da cidade, achando que ia ter algum público da Copa do Mundo, algum turista ia à cultura, e foi um fiasco o edital, não dava dinheiro, não dava público. A gente foi para lá e um dia eu tive três pessoas. As três pessoas levantaram e aplaudiram de pé, falaram que nunca tinham visto uma apresentação tão legal. No outro dia, a gente teve seis; no outro dia, teve 18; no outro dia; teve 24. Hoje faço essa apresentação no Rio de Janeiro, eu loto, mas eu tive que passar por esse lugar do três, que indicou… Acho que o boca a boca, ele continua sendo a nossa maior divulgação quando tem esse encontro que ele falou muito bem. Esse encontro ele é fundamental, mas eu acredito muito que o boca a boca realmente ainda é a nossa melhor arma.
Thiago Reis Vasconcelos
Queria só fazer um relato que o Flávio e o Renato não estão aqui e é um agradecimento ao Dagoberto. A gente, em determinado momento, como grupo, eu assisti 11 semanas seguidas, 11 vezes, à peça Palhaços [2013, de Timochenko Webhi]. [Risos] Isso arrebentou e cada vez que eu fui assistir eu ia com umas dez pessoas. A Renata deve ter visto o quê, umas oito vezes?
Renata Adrianna, atriz
Eu vi três.
Thiago Reis Vasconcelos
Flávia viu algumas.
Flávia Ulhôa, atriz
Muitas.
Thiago Reis Vasconcelos
Por que eu estou falando isso? Porque acho que é a peça que eu mais vi na minha vida. A Oresteia a gente viu umas oito, nove vezes. Por que esse relato é importante? Porque eu não sabia explicar, eu ia para as oficinas e para as pessoas e eu falava da peça – nós temos que ver – e nenhuma das pessoas que estavam ligadas à Antropofágica deixaram de ir naquele momento, porque simplesmente ela operou um maravilhamento artístico e principalmente no trabalho de interpretação dele e do Danilo [Grangheia]. Era uma coisa absolutamente assustadora, e a beleza que aquilo trazia [direção de Gabriel Carmona].
Aquilo trazia a perspectiva que dava para a gente de continuar fazendo. A discussão (e aí é para linkar com o que o Luiz disse), o silenciamento da crítica pelos jornais, a pulverização desses processos, faz com que a gente também não chegue em determinadas formas de trabalho que arrebentam na gente. Onze vezes uma peça na sequência é muito difícil. Acho que as 11 vezes que eu saí dali, eu fui transformado 11 vezes. Por que? Porque era a presença e o jogo entre dois, entre duas pessoas e intérpretes fazendo, que para mim é o fundamental do teatro isso que acontece, sempre tinha alguma variação que me transformava e me fazia ir mais uma. Onze vezes não é um exagero, não estou sendo exagerado, eu assisti 11 vezes contado, seguidas. Isso é uma coisa muito importante e transformadora de uma subjetividade que faz teatro também. Essa presença de estar ali, eu não lembro quantas pessoas tinham era uma sala pequena, mas essa possibilidade transformadora que tem é uma coisa impressionante. Eu não podia deixar de fazer um agradecimento aqui e ao mesmo tempo dizer que isso que você fez foi fabuloso.
Dagoberto Feliz
Usando o exemplo do que você está falando – agradeço, obrigado, é muito mágico para mim e para o Danilo e o Gabriel [Carmona], que dirigiu, é por um momento muito específico –, no Palhaços, a gente teve uma discussão muito forte. Que é assim, a gente fez, acredito onde você viu, no Poeirinha, a gente sempre fazia em lugares pequenos e sempre assim: “Ah, mas você tem que fazer em lugares de 800 pessoas, tem que fazer não sei o quê…”. A gente fez uma vez em um lugar imenso. Foram as piores coisas que a gente já fez, porque: “Ah, você tem que ficar aqui, você tem que aumentar o público, você tem que ganhar dinheiro…”. Insisto, eu adoro dinheiro, eu gosto. Isso tem a ver com o que você falou, se você tira o porquê que você está fazendo. Ele [o espetáculo] não nasceu para isso. E nada contra nascer para fazer dinheiro. Mas quando você deturpa o porquê que a criação artística nasceu… A gente também sabe fazer espetáculo para ter público. Até contando com toda a classe média da gente, sabe fazer, e a gente pode até ganhar muito dinheiro. E vai ter que fazer muita terapia depois, porque você não investiu em nada. […] Acho que a gente tem uma discussão aqui que é da questão artística e de políticas públicas de aumento e manutenção e provocação para novos públicos. A gente vai continuar fazendo, às vezes mais fodidas, às vezes menos fodidas. Mas aumenta público? Aumenta. Demora, mas se a gente for para a produção em massa também, começa de novo a usar argumentos que não são nossos, que não interessam, não quero fazer.
Ana Lucia Lopes
Isso serve justamente para a gente não se perder. Isso é fundamental, a manutenção do princípio, isso não quer dizer que você não pode negociar outras coisas, mas sem negociar o princípio, aí que é o suor.
Luiz Antônio Rocha
Eu discordo um pouco. Porque, assim, a Clarice Niskier [atriz] é muito minha amiga, e ela começou a fazer A alma imoral, como um exemplo vitorioso. Começou sem público, num lugar pequeno no Rio de Janeiro, e aquilo foi tomando uma receita. É um monólogo e a gente conversa muito e ela fala: “Luiz, eu faço igual para mil pessoas ou para dez pessoas num lugar pequeno”.
Ana Lucia Lopes
É a natureza do espetáculo dela.
Luiz Antônio Rocha
Não, nasceu pequena e ela cresceu. Porque ele [Dagoberto] relatou um certo desconforto em fazer num espaço muito grande, onde a peça foi concebida num espaço pequeno.
Dagoberto Feliz
Não exatamente.
Luiz Antônio Rocha
Mas foi o que eu entendi. Acho que a gente tem que aprender esse caminho do meio, que às vezes é necessário a gente forçar, porque a forma é igual, o público vai mudar, mas acredito muito nessa natureza do encontro. Ela independe do volume de pessoas. Acho que ela é igual, ela tem que ser igual.
Luiz Fernando
Bem, a gente vai ter que encerrar. Eu queria agradecer o Flávio, a Ana e o Dagoberto e dizer que a gente na semana que vem continua. Vai ser o nosso quinto encontro e o tema é exatamente um que também interpassa toda essa discussão do Fomento, dos grupos, mas também a questão da formação. A gente vai entrar no tema da formação. É a pesquisa continuada na universidade, quer dizer, a pesquisa continuada nos grupos, com o Fomento, mas existe a pesquisa continuada na universidade que é um conceito mais amplo, até anterior, mais antigo, e no teatro, nesses dois planos, invenção e manutenção. Esse é o tema.
Vão estar conosco, o Biagio Pecorelli, que é um artista da Motosserra Perfumada, um grupo de São Paulo, e que fez um doutorado no nosso programa da USP muito interessante sobre os vienenses, os artistas vienenses da década de 1960 que eram muito radicais, e ele fez uma conexão com o Georges Bataille, uma tese muito interessante e ao mesmo tempo tem essa experiência de grupo, de pesquisa. O Miguel Rocha, que é ninguém nada menos nem nada mais que o diretor que criou a Companhia de Teatro Heliópolis, que acabou de ganhar o Prêmio Shell, há 15 dias, com um grupo de periferia de São Paulo, e o Thiago Vasconcelos, que é o diretor da Antropofágica, não sei se ele gosta de ser chamado de diretor [risos], mas, enfim, ele é um pouco de diretor da Antropofágica, que é um grupo que tem uma continuidade de quase… quantos anos?
Thiago Reis Vasconcelos
21.
Luiz Fernando Ramos
Maioridade… Então, acho que também tem um sentido de pesquisa. Vai ser na próxima semana, se vocês puderem estar conosco. Boca a boca é fundamental. A gente tem mantido um público e hoje, mais do que todos os dias, quanto à ideia do encontro a gente foi muito feliz, tendo chegado nesse conceito. Você que disse que não tinha muito que dizer sobre esse tema… [para Dagoberto Feliz]. É isso, vamos bater palmas para o nosso encontro.
.:. Como foram as mesas 1) Lei de Fomento & novas impossibilidades: financiamento, produção e distribuição, com Rudifran Pompeu, Aury Porto e José Fernando Peixoto de Azevedo; 2) O cordão de ouro da periferia, com Dione Carlos, Lucelia Sergio e Naruna Costa; e 3) Teatro e política: dissidências e resistências, com Ademir de Almeida, Alexandre Dal Farra e Georgette Fadel.
.:. Programação completa do ciclo cujos nove encontros, entre março e maio de 2023, estão sendo transcritos e editados no site.