ANOTA
12.5.2025 | por Teatrojornal
Foto de capa: Gil Tuchtenhagen
São múltiplas as afinidades entre os campos da advocacia e do teatro. Dramaturgias de diferentes regiões do planeta abordam noções de moralidade, ética e justiça em processos envolvendo defensores que despontam ao lado de seus clientes e em meio a juízes, promotores e júri. Já a técnica de interpretação costuma ser veiculada em cursos livres como ferramenta para o desempenho profissional em tribunais. No caso do espetáculo Lady Tempestade, a filosofia de vida, a militância e a coragem do trabalho da advogada Mércia Albuquerque Ferreira (1934-2003) estruturaram o ofício de defensora de pessoas presas, torturadas e muitas assassinadas por fazerem oposição à ditadura civil-militar (1964-1985) em Pernambuco e outros estados vizinhos na esteira do golpe que depôs o presidente democraticamente eleito João Goulart (1919-1976).
A advogada escreveu diários no calor da hora da convivência com cerca de 500 pessoas defendidas, bem como familiares e amigos, ao longo do regime sangrento que violou o Estado de Direito, sobretudo após a decretação do Ato Institucional número 5, o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, sem contar o fechamento do Congresso Nacional, a cassação de deputados e a censura que já abalavam a democracia desde 1964.
Albuquerque dizia preferir o silêncio a mentir a uma mãe sobre a morte de qualquer cliente a que foram impingidos tormentos físicos e psicológicos. Por extensão, ela conheceu agentes da repressão e as entranhas dos sistemas judiciário e penitenciário. A exemplo da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) e do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), este vinculado ao batalhão do IV Exército – órgãos então localizados no bairro Boa Vista, no Recife. Todos corrompidos pelo arbítrio, inclusive a Justiça Militar.
Após temporada no Rio de Janeiro, onde estreou no Teatro Poeira no início de 2024, o monólogo ‘Lady Tempestade’ cumpre temporada em São Paulo a partir de 30 de maio, no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação. Sob direção de Yara de Novaes e dramaturgia de Silvia Gomez, a peça é inspirada na trajetória da advogada militante nascida em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife, reconhecida por defender pessoas presas, torturas e muitas vezes assassinadas durante a ditadura civil-militar em Pernambuco e outros estados vizinhos
Parte desses escritos está reunida em Diários 1973-1974, livro publicado em 2023 pela editora Potiguariana, de Natal. Sob organização do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (CDHMP), sediado na capital do Rio Grande do Norte, a obra é uma das fontes de inspiração para a dramaturgia de Silvia Gomez no monólogo atuado por Andrea Beltrão e encenado por Yara de Novaes.
Após cumprir temporada até o mês passado no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, onde estreou em janeiro de 2024, às vésperas dos 60 anos do golpe civil-militar, a montagem fica em cartaz em São Paulo de 30 de maio a 6 de julho, no Teatro Anchieta, do Sesc Consolação.
Na peça, Beltrão interpreta A., alusão a seu nome, mulher que recebe os diários de Albuquerque e é impactada pelo testemunho da busca permanente por justiça ou, ao menos, pelo paradeiro de desaparecidos, a partir das súplicas de mães enlutadas, vítimas indiretas das violências praticadas pelo Estado e, ao mesmo tempo, resilientes em sua coragem. Numa espécie de “diário dentro do diário”, A. encara o dilema de envolver-se com aquela história, mas acaba mergulhando nela. Aos poucos, vai revelando uma personagem feminina importante, que começa a ser mais reconhecida a partir da publicação de suas memórias em livro, em 2023.
“Fazer teatro é levantar o tapete e deixar o que está escondido aparecer, receber luz”, escreve a atriz e produtora no programa de mediação com o público. “Porque enquanto a gente se lembrar, existe a esperança de mudar o rumo da história.” Beltrão como que divide a cena com o filho, Francisco, ou Chico BF, postado em uma mesa ao fundo, à esquerda, a partir da qual cria e opera a trilha. “Contar e recontar uma história, muitas e muitas vezes, é uma maneira de impedir que o horror aconteça de novo”, diz ela, que retorna ao palco do Sesc Anchieta onde, em 2017, apresentou, também em voo solo, a recriação da tragédia Antígona, de Sófocles, sob direção de Amir Haddad, em que a personagem-título enfrenta a ordem do rei Creonte para deixar seu irmão, que lutou na guerra, insepulto.
Foi Beltrão quem deu a ideia a Gomez, a dramaturga, para narrar a história como se fosse o diário de A. lendo o diário de Albuquerque. “A personagem da Andrea diz: ‘Queria fingir que não tinha recebido aquilo, mas não era mais possível. Eram coisas semidesaparecidas e não são mais’. Então, para que futuro vamos após ouvir as palavras de Mércia?”, indaga a autora, acerca das “folhas escritas à caneta que desejaram ser encontradas mais de meio século depois e adiante”.
Segundo a diretora, “Silvia estabelece uma relação de rigor com o histórico e abre fendas de percepção, criando novas zonas de subjetivação, o que, para um tema como a ditadura civil-militar no Brasil, é algo fundamental”. Afinal, prossegue, “estamos em presença, imaginando um novo país, falando de um passado que não passou”.
Novaes prospectou o espetáculo a partir de seu trabalho de atriz que, sincronicamente, também vem ganhado corpo nos últimos anos em outra arte, a do cinema, com roteiros contundentes elaborados a partir da trajetória de cidadãs e cidadãos que fizeram história ao ousar meios de insubmissão aos crimes de lesa-humanidade durante os anos de chumbo no Brasil.
No programa da peça, ela escreve que conheceu Mércia Albuquerque mais a fundo em 2021, durante pesquisa e criação de sua personagem no filme Zé (2024), de Rafael Conde, no qual interpreta Yedda, mãe de José Carlos da Mata Machado, estudante de Direito na UFMG, em Belo Horizonte, e militante da organização política de esquerda Ação Popular. Ele já havia sido preso após 1964, enquanto líder estudantil, mas foi detido novamente, torturado e assassinado por militares no DOI-Codi do Recife, em 1973, aos 27 anos, quando já estava na clandestinidade havia anos, realizando trabalho de alfabetização e conscientização política junto a pessoas empobrecidas em estados nordestinos.
A diretora soube que os diários da advogada estavam em vias de publicação por meio de Roberto Monte, coordenador do mencionado Centro de Direitos Humanos e Memória Popular. Citado na peça como R., a pessoa que envia a encomenda para A., na vida real Monte de fato mandou os escritos da pernambucana para Novaes e Beltrão antes mesmo de publicá-los em livro. Foi a ele que Octávio Albuquerque, marido da advogada, confiou os arquivos após a morte dela, em 2003, aos 68 anos, em sequência de paradas cardíacas. Além dos diários, há cartas e processos no acervo.
“Foi um susto”, diz Novaes, ao lembrar da reação ao receber e ler os diários. Em seguida, as artistas tiveram acesso também a uma entrevista em áudio de Albuquerque para Samarone Lima, autor do livro Zé – José Carlos Novais da Mata Machado. Uma reportagem (1998, Mazza Edições), que, por sua vez, inspirou o roteiro adaptado de Zé, o filme.
‘Como estão as coisas aí, no futuro?’
“O tempo do teatro é estranho, às vezes é tão lento que só chega no espetáculo seguinte, às vezes nasce antes mesmo de nascer e às vezes nos surpreende. Não foi premeditado, mas simbólico como este espetáculo encontrou seu tempo para estrear neste ano, 2024, marca de 60 anos do golpe de 1964. Curioso também como essa noção de tempo permeou o nosso processo, como se o diário, a todo momento, nos perguntasse: ‘Como estão as coisas aí, no futuro?’. Ou como se nos fizesse girar, encontrando pessoas desaparecidas, mães aflitas, telefones berrando o horror, campainhas expectantes, cachorros latindo, crianças chorando, canalhas, necrófilos, tarados impunes. Recife, Rio, Paraisópolis, Serra Leoa em coro recitando Castro Alves em tribunais imaginários: ‘Existe um povo que a bandeira empresta/ Pra cobrir tanta infâmia e covardia!…’ [versos antiescravidão do baiano Castro Alves em O navio negreiros, 1869]. Relembrar e imaginar são modos de agir. A imaginação é um eixo da realidade, pois ela liga o fato, o concreto, a significados e valores que dão sentido à vida. E o diário de Mércia nos ensinou: ela foi uma mulher que, acima de tudo, agia. E imaginava. Caso contrário, teria desistido diante das tantas atrocidades presenciadas”, afirma Novaes.
Em sua opinião, Albuquerque “foi uma mulher intrépida de um tempo a não esquecer. Um diário escrito no passado, mas em conversa com o presente de um país que não cessa de repetir seus apagamentos e injustiças. É aqui, neste presente, que agradecemos aos seus registros e a imaginamos, muito viva e brilhante”.
Parênteses para dizer que, ainda no cinema, Novaes protagonizou Malu (2024), de Pedro Freire, em torno da atriz paulista Malu Rocha (1947-2013), “uma mulher de meia idade com um passado glorioso”, segundo o material de divulgação, e que “se vê presa em um caos existencial”. A complexa relação com sua mãe racista e conservadora e com sua filha adulta torna a crise ainda mais aguda, em meio a momentos de carinho e alegria entre as três. Dentro e fora dos palcos, Malu vivenciou a tentativa de destruição da cultura brasileira pela ditadura. Ela morreu em 2013, aos 65 anos, por complicações de uma doença neurodegenerativa de príon, causada por uma mutação de uma proteína presente no cérebro.
Albuquerque foi presa pelo menos 12 vezes durante os governos dos generais. Na quarta vez, em 15 de junho de 1965, estava sozinha em casa com seu bebê recém-nascido. Da varanda, mandou mensagem em uma garrafa, presa numa cordinha, para a vizinha de baixo, Dona Pepe, pedindo para cuidar do filho dela, Aradin, enquanto não fosse liberada pelos “gafanhotos”, uma das alcunhas que usava para chamar os militares.
Já na primeira vez em que foi detida, 12 de junho de 1964, trabalhava em um escritório de advocacia, na região central do Recife, e acabou conduzida à Secretaria de Segurança para averiguações, onde permaneceu por nove dias, liberada por interferência de uma tia. Na décima vez, em 6 de setembro de 1969, foi presa com o jornalista Ricardo Noblat quando o embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick era trocado por 13 presos políticos após ser sequestrado por guerrilheiros do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) e ALN (Ação Libertadora Nacional), entre eles o militante comunista Gregório Bezerra (1900-1983).
Na apresentação ao recém-lançado livro com a dramaturgia de Lady Tempestade (Cobogó, 2025), o escritor e jornalista Samarone Lima disserta sobre uma passagem emblemática que pautaria o destemor de uma mulher contra a barbárie. Era 2 de abril de 1964, “a professora primária Mércia Albuquerque tinha acabado de dar aula para crianças de uma escola pública do Recife, num dos muitos morros da Zona Norte”. Caminhava perto da Praça de Casa Forte, no bairro de mesmo nome, “quando esbarrou em uma cena que mudaria sua vida e a de centenas de pessoas”. Em pleno sol do meio-dia, avistou “um general fardado, puxando um homem debilitado, ferido, vestido apenas com um calção, sendo arrastado, com uma corda no pescoço. Uma multidão olhava a cena, em silêncio”. Esse general, continua Lima, “comemorava a vitória do golpe militar, realizado com sucesso, no dia anterior”. “Os pés do homem sangravam. Ele estava sendo levado de volta para o quartel, onde sofrera as torturas iniciais”.
Albuquerque sabia quem era o cidadão atormentado em praça pública: Gregório Bezerra, então com 64 anos, líder comunista respeitado, que participara, como deputado federal por Pernambuco, da Constituinte de 1946. Dono de feitos extraordinários, tinha se alfabetizado aos 25 anos, sofrido tortura anteriormente, em 1935, organizado sindicatos de trabalhadores rurais país afora, conhecido Luiz Carlos Prestes, inspirado um poema de Ferreira Gullar.
“Ela voltou para casa chorando. Estava com 29 anos e iniciara sua vida de advogada um ano antes. Chorava de indignação e raiva. Não só pelas cenas medonhas, mas pela letargia das pessoas. Ninguém fazia nada para deter aquela barbárie. Pior. Ninguém falava nada. A inércia da população recifense foi como um espelho. Ela também não disse uma palavra. Ao chegar em casa, avisou ao marido, Octávio: ‘Vou defender Gregório Bezerra. E quem mais precisar de mim’.”
Lima escreve que Bezerra deve ter se impressionado com a ousadia daquela mulher “miúda, de olhos faiscantes e sem meias palavras”. Na concepção do escritor: “As crianças do Recife perderam uma professora dedicada e amorosa, de cintilantes olhos azuis, e uma legião de presos políticos que abarrotava as delegacias do Recife ganhou uma defensora que parecia imune ao medo”.
De volta aos Diários 1973-1974, eles são intercalados por poemas da lavra de Mércia Albuquerque, a exemplo do que segue, datado de 5 de agosto de 1974, sem título:
Eu trago no rosto
Sulcos profundos,
Que cicatrizes são
De dez anos de luta
Onde está a minha juventude
A beleza de minha mocidade
Procuro e não encontro
Se foram sem que sentisse
Fios de prata enfeitam-me
Marcam a presença do tempo
Injustiças aos estudantes
Intranquilidade ao povo
Mas não envelheço a alma
Pois caminho com a mocidade
Sofro com ela as crueldades
De um poder tacanho e velho
Em tempo: o título do espetáculo deriva de uma frase anotada por Mércia Albuquerque Ferreira em 27 de outubro de 1974: “Mamãe sempre ajudou aos filhos e educou a todos; mulher terna e acomodada, totalmente diferente de mim. Enquanto sou tempestade, ela é bonança”. Daí a dimensão heroica, ao modo da advogada, que a dramaturga adotou. Assim, Lady Tempestade tem o mérito de reforçar a relevância histórica e documental da militância da advogada ainda pouco (re)conhecida em nível nacional.
[Este conteúdo tem apoio do Sesc São Paulo]
Serviço
De 30 de maio a 6 de julho.
Quinta a sábado, 20h. Domingo, 18h. Quarta (4/6), sessão extra, 15h.
70 minutos | 12 anos | 280 lugares.
R$ 70,00 (inteira), R$ 35,00 (meia entrada) e R$ 21,00 (credencial plena).
Sesc Consolação – Teatro Anchieta (Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 11 3234-3000).
Vendas on-line a partir de 20/5 em www.centralrelacionamento.sescsp.org.br e no app Credencial Sesc SP, e a partir de 21/5 na bilheteria das unidades.
Ficha técnica
Lady Tempestade com Andrea Beltrão
Direção: Yara de Novaes
Dramaturgia: Silvia Gomez
Cenografia: Dina Salem Levy
Desenho de luz: Sarah Salgado e Ricardo Vívian
Figurinos: Marie Salles
Criação e operação de trilha sonora: Chico Beltrão
Desenho de som: Arthur Ferreira
Assistente de direção: Murillo Basso
Assistente de cenografia: Alice Cruz
Identidade visual: Fábio Arruda e Rodrigo Bleque | Cubículos
Fotografia: Nana Moraes
Assessoria de Comunicação: Vanessa Cardoso | Factoria Comunicação
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Produção: Quintal Produções
Direção de produção: Verônica Prates
Coordenação de projetos: Valencia Losada
Produção executiva: Camila Camuso
Realização: Boa Vida e Quintal Produções