ANOTA
10.6.2025 | por Teatrojornal
Foto de capa: João Júlio Mello
No prefácio à mais recente tradução de As veias abertas da América Latina no Brasil, de 2010, o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) admitiu: “Sei que pode parecer sacrílego que este manual de divulgação fale de economia política no estilo de um romance de amor ou de piratas”. Por manual de divulgação entenda-se “um inventário da dependência e da vassalagem de que a América Latina tem sido vítima, desde que aqui aportaram os europeus no final do século XV”, como informa a L&PM Editores na contracapa.
O livro mais conhecido do ensaísta e ficconista inspira a pesquisa e criação do 14º espetáculo da Aquela Cia, Veias abertas 60 30 15 seg, no marco dos 20 anos de trabalho continuado na cidade do Rio de Janeiro, manejando memória coletiva, fabulação e imaginário social no campo das artes da cena, como se viu em Caranguejo overdrive (2015) Guanabara canibal (2017). A temporada de estreia nacional acontece no Sesc Pompeia, em São Paulo, entre 11 de junho e 4 de julho.
“Partimos do livro para discutir temas como a dependência econômica do território e a exploração violenta da mão de obra – consequências direta da colonização”, afirma o diretor Marco André Nunes. “Também queremos mostrar a força de resistência e luta dos povos latino-americanos. Por isso, a peça foi para um lado mais performático, com uma estrutura marcada por aulas de dança de ritmos bem tradicionais, como salsa, bolero e mambo”, acrescenta o diretor, observando ainda que o espetáculo não se pretende uma representação do livro.
No marco dos seus 20 anos de pesquisa e criação continuadas em artes da cena, manejando memória coletiva, fabulação e imaginário social desde a cidade do Rio e Janeiro, a Aquela Cia inspira-se em ‘As veias abertas da América Latina’ (1971), do escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), para construir o 14º espetáculo, ‘Veias abertas 60 30 15 seg’, no qual cerca de 80 quadros cênicos breves, com duração de 60 a 15 segundos cada um, se sucedem como uma timeline, refletindo a velocidade da informação e o modo como consumimos o tempo hoje
O texto assinado por Pedro Kosovski e Carolina Lavigne expande os assuntos abordados na obra. “Quisemos ampliar poeticamente o potencial da obra de Galeano, que é muito dura ao tratar de todas as explorações sofridas pela América Latina e Caribe ao longo dos séculos, principalmente por conta dos ciclos do ouro, da prata e das monoculturas”, diz Kosovski.
Com atuações de Carolina Virgüez, Juracy de Oliveira, Matheus Macena e Rafael Bacelar, a peça narra a história de um militar do exército e um funcionário da empresa estadunidense United Fruit Company que se conhecem em aulas de dança e decidem se casar justamente no âmbito de um dos fatos detalhados por Galeano no capítulo Os filibusteiros na abordagem – título que lança mão do substantivo aplicado a pirata do mar das Antilhas, durante os séculos 17 e 18, ou serve ainda de adjetivo para designar quem é desonesto, aventureiro, trapaceiro.
Trata-se do Massacre das Bananeiras, ocorrido na cidade colombiana de Ciénaga, no litoral norte do país, em 6 de dezembro de 1928, quando o governo de turno enviou tropas do exército para reprimir uma greve por melhores condições de trabalho e de vida, matando cerca de 2 mil trabalhadores rurais terceirizados pela United Fruit, companhia fundada em 1899 (hoje rebatizada Chiquita Brands), então dona do maior latifúndio no país sul-americano e cuja operação triangulava em conluio com instâncias federais nada republicanas e os Estados Unidos.
A usurpação na costa atlântica da Colômbia repetia-se nos mesmos moldes em boa parte do continente latino-americano, como Galeano relata:
O Corão menciona a bananeira entre as árvores do paraíso, mas a bananização da Guatemala, Honduras, Costa Rita, Panamá, Colômbia e Equador permite suspeitas de que se trata de uma árvore do inferno. Na Colômbia, (…) Os trabalhadores bananeiros foram aniquilados a tiros, na frente de uma estação ferroviária. Um decreto oficial tinha sido publicado: “Os homens de força pública estão autorizados a castigar pelas armas…”, e depois não houve necessidade de editar nenhum decreto para apagar a matança da memória oficial do país.
Em sincronismo, Aquela Cia anuncia disposição em contribuir para “recuperar a memória do continente” por meio do espetáculo dirigido por Nunes, cofundador da companhia com Kosovski, em 2005. Para tanto, seus criadores ambicionam “uma radicalização de linguagem”. A montagem propõe um dispositivo de cerca de 80 quadros cênicos breves, com duração de 60 a 15 segundos cada um. “É como uma timeline do continente. Tivemos essa ideia porque temos pensado muito sobre como a nossa atenção é facilmente capturada por esse scroll infinito. Nosso tempo passou a ser dominado por esse imaginário fragmentado”, afirma o dramaturgo.
O casamento das duas figuras da trama acontece na sala onde aprenderam a se expressar com o corpo, mas, justamente nesse dia, acontece o massacre. Em meio à abordagem documental e às questões sociopolíticas e econômicas que expõem as feridas dos processos coloniais – abertas até os dias de hoje –, Aquela Cia sugere uma saída: a reconexão com a imaginação a partir do movimento corporal, o que levaria a uma ligação das pessoas com as suas forças vitais.
Por isso a música desempenha papel central na narrativa, servindo como um meio para demonstrar sentimentos e contextos culturais. A trilha sonora inclui trechos de canções interpretadas pela peruana Yma Sumac, pelo porto-riquenho Mon Rivera, pelo cubano Pérez Prado e por vozes brasileiras de Dolores Duran, Nelson Ned e Elis Regina, entre demais cantores e compositores.
O cenário de Aurora dos Campos e Nunes divide o espaço cênico em nove quadrados, como se fosse um jogo. As performances vão acontecendo nesses locais predeterminados. Além disso, fotografias e quadros impressos fortalecem a parte documental da obra. Nos figurinos, Fernanda Garcia opta por utilizar máscaras tradicionais do território, a exemplo das andinas Tinkus e Ukuku (Diablito e Whipala), expressões dos povos indígenas quéchua, e de lucha libre; bem como vestimentas típicas, como a mariachi (México) e a chola (Bolívia, Peru).
No desfecho do capítulo recém-mencionado, Galeano examina o estado de coisas:
As terras ficavam tão exaustas quanto os trabalhadores: das terras roubavam o húmus, dos trabalhadores os pulmões, mas sempre havia novas terras para explorar e mais trabalhadores para exterminar. Os ditadores, próceres de opereta, velavam pelo bem-estar da United Fruit com o punhal entre os dentes, Depois, a produção de bananas foi caindo e a onipotência da empresa das frutas passou por várias crises, mas a América Central, em nossos dias, continua sendo um santuário do lucro para os aventureiros, ainda que o café, o algodão e o açúcar tenham derrubado a banana de seu trono de privilégios. Em 1970, as bananas são a principal fonte de divisas para Honduras e Panamá, e na América do Sul para o Equador. Por volta de 1930, a América Central exportava 38 milhões anuais de cachos, e a United Fruit pagava para Honduras um centavo de imposto por cacho. Não havia maneira de controlar o pagamento desse mini-imposto (que depois subiu um pouquinho), e ainda não há, pois até hoje a United Fruit exporta e importa o que quiser sem responder às alfândegas estatais. A balança comercial e a balança de pagamentos do país são obras de ficção a cargo de técnicos de pródiga imaginação.
O episódio do Massacre das Bananeiras foi recriado pelo jornalista e escritor colombiano Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão. No romance sobre diferentes gerações da família Buendía, lá pelas tantas, chega à fictícia Macondo uma companhia das bananeiras, de origem estadunidense, não nomeada, que toma conta de fazendas para extração e produção, submetendo trabalhadores a condições miseráveis. A atuação da empresa equivalia a uma “peste”. “A grande greve estourou. Os cultivos ficaram pelo meio, a fruta apodreceu no pé e os trens de cento e vinte vagões ficaram parados nos desvios”, escreve o autor nascido em Aracataca, a 60 km de Ciénaga.
Aliás, o termo “República das Bananas” circunscreve a violência e a repressão características de países politicamente instáveis e com economias dependentes da exportação de recursos naturais. Descreve, em suma, uma situação na qual um governo corrupto e opressor, ou uma junta militar, exerce controle tirânico sobre a população, frequentemente com o apoio financeiro de empresas estrangeiras. Em países latino-americanos e caribenhos, os reflexos derivam da colonização por nações europeias e, mais contemporaneamente, das intervenções militares, econômicas e políticas estadunidenses.
Como se sabe, a obra mítica Las venas abiertas de América Latina costura uma profusão de dados históricos com faro jornalístico e verve literária. Foi traduzida em mais de 20 idiomas. A primeira edição data de abril de 1971, em lançamento simultâneo por três editoras: a cubana Casa de Las Américas, a mexicana SigloXXI e a uruguaia Universidad de la República. No Brasil, saíram duas traduções: a de 1978, pela Paz e Terra, assinada por Galeano de Freitas, e a de 2010, pela L&PM, por Sergio Faraco.
A primeira edição brasileira já veio com a versão atualizada com 17 notas de Galeano adicionadas às páginas finais, sete anos após o lançamento em espanhol. Situa de largada: “Este livro tinha sido escrito para uma conversa com as pessoas. Um autor não especializado se dirigia a um público não especializado, com a intenção de divulgar certos fatos que a história oficial, história contada pelos vencedores, esconde ou mente”.
Convém lembrar que, a essa altura, o escritor já havia sido preso pela ditadura civil-militar no Uruguai e encontrava-se exilado, primeiro na Argentina, depois na Espanha, passando o mesmo período de duração do regime fora do país (1973-1985).
No último parágrafo das anotações complementares, Galeano é incisivo:
Nestas terras, não assistimos à infância selvagem do capitalismo, mas sua decrepitude. O subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento. É a sua consequência. O subdesenvolvimento da América Latina provém do desenvolvimento alheio e continua alimentando-o. Impotente pela sua função de servidão internacional, moribundo desde que nasceu, o sistema tem pés de barro. Quer identificar-se como destino e confundir-se com a eternidade. Toda memória é subversiva, porque é diferente, e também qualquer projeto de futuro. Obriga-se o zumbi a comer sem sal: o sal, perigoso, poderia despertá-lo. O sistema encontra seu paradigma na imutável sociedade das formigas. Por isso se dá mal com a história dos homens, pela frequência com que muda. E porque na história dos homens cada ato de destruição encontra sua resposta, cedo ou tarde, num ato de criação.
Em artigo publicado em 3 de setembro de 2020, quando, se vivo, Eduardo Germán María Hugues Galeano completaria 80 anos, o escritor, tradutor e amigo Eric Nepomuceno declarou, referindo-se ao uruguaio, que “Nos últimos tempos, buscou se distanciar de seu livro mais conhecido, As veias abertas da América Latina. Sentia-se incomodado, como se todos os seus outros livros fossem ofuscados. Engano dele. A trilogia Memória do fogo e principalmente O livro dos abraços tiveram vendas próximas ao livro que o consagrou”, escreveu em O Globo. “Eduardo tinha uma escrita direta, buscava reduzir tudo que saía de sua caneta (sim, ele escrevia primeiro à mão…) à mais pura essência. Repetia mil vezes a lição de Juan Rulfo, [escritor mexicano] mestre de mestres: ‘Escrever é cortar’.”
[Este conteúdo tem apoio do Sesc São Paulo]
Serviço
Veias Abertas 60 30 15 seg
De 11 de junho a 4 de julho.
Quarta a sexta-feira, às 19h. Sessões extras em três sextas-feiras, às 15h, dias 20/6, 27/6 e 4/7.
Sesc Pompeia – Galpão (Rua Clélia, 93, Pompeia, tel. 11 3871-7700).
60 minutos | 16 anos.
R$ 50 (inteira), R$ 25 (meia-entrada) e R$ 15 (credencial plena).
É possível comprar direto nas bilheterias das unidades ou pelo link https://www.sescsp.org.br/programacao/veias-abertas-60-30-15/.
Ficha técnica
Direção: Marco André Nunes
Texto: Pedro Kosovski e Carolina Lavigne
Elenco: Carolina Virgüez, Juracy de Oliveira, Matheus Macena e Rafael Bacelar
Músicos: Felipe Storino e Pedro Leal David
Direção musical: Felipe Storino
Direção de movimento: Márcia Rubin
Cenário: Aurora dos Campos e Marco André Nunes
Cenógrafa assistente: Juliana Augusta Vieira
Figurino: Fernanda Garcia
Iluminação: Renato Machado
Iluminador assistente: Paulo Denizot
Assistente de direção: Gabriela Ruppert
Assistente de figurino: Mag Pastori
Operação de luz: Juliana Augusta Vieira
Operação de som: Fabio Luchs
Produção: Corpo Rastreado – Gabi Gonçalves | Nathália Christine
Idealização: Aquela Cia
Realização: Sesc Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Daniele Valério e Carina Bordalo