ANOTA
15.8.2025 | por Teatrojornal
Foto de capa: João Caldas Filho
No marco dos seus 25 anos de trabalho, a Cia. Elevador de Teatro Panorâmico, da cidade de São Paulo, elegeu montar uma peça do ator e dramaturgo italiano Eduardo De Filippo (1900-1984) escrita há 77 anos e jamais apresentada profissionalmente no Brasil. A grande magia (1948) chega como estímulo atemporal de um dos comediógrafos expoentes do século XX para refletir sobre as formas de violência geradas pela manipulação da verdade, em temporada de 30 de agosto a 21 de setembro no Teatro Raul Cortez do Sesc 14 Bis. O desafio em distinguir a condição humana da produção artificial das coisas, fatos e sensações imprime níveis de tragicidade ainda mais flagrantes nos dias de hoje, tanto no plano das relações interpessoais como de governos tirânicos, cínicos, devotados a ruir a democracia por dentro.
Para efeito de sinopse, o projeto de montagem informa que a história principia no terraço à beira-mar do Hotel Metrópole, onde clientes jogam cartas e conversam. O assunto apimentado daquela tarde diz respeito ao casal Di Spelta: a jovem esposa Marta (atuada por Larissa Garcia) dá confiança (demais) ao fotógrafo Marino D’Albino (Fernando Vitor); seu marido, o ciumento Calogero Di Spelta (Pedro Haddad), mostra indiferença e superioridade diante da situação: “Sou um homem feliz porque não acredito em ilusões”, diz aos veranistas.
Logo é anunciada, para a noite, a apresentação do mágico e ilusionista Otto Marvuglia (Chico Carvalho), “professor de ciências ocultas, um ilusionista famoso”, cuja fama é decantada por seus partidários mancomunados. Quando o show de prestidigitação começa, Marvuglia faz desaparecer Marta, que aproveita a oportunidade para escapar com seu amante Mariano. Conhecedor da verdade e a fim de evitar ser envolvido no caso, o mágico convence o marido ciumento e desesperado de que sua esposa não sumiu, mas foi “presa” em uma caixa mágica que lhe mostra.
Calogero acredita ou precisa acreditar que sua mulher de fato desapareceu, não fugiu com o amante e que, sim, está na caixa, confiante de sua lealdade e inocência. E que poderá aparecer quando ele a abrir. O marido, agora considerado “louco” pelas outras pessoas, segue admitindo tudo que Marvuglia lhe diz, crente na ilusão de que o tempo parou no instante do truque. “As cenas seguem, o tempo passa, e a peça nos apresenta o dilema desse herói humano, resplandecente e miserável em teste com seus preconceitos, com seu condicionamento psicológico e cultural, prisioneiro do jogo Realidade X Ilusão”, afirma o projeto.
Eduardo De Filippo é mais conhecido em palcos brasileiros por textos como Filumena Marturano (escrito em 1946), Sábado, domingo e segunda (1959) e A arte da comédia (1964). Já em 3 de setembro de 1948, mesmo ano em que o dramaturgo colocou o ponto final em A grande magia, ou La grande magia, na grafia original, a Companhia Procópio Ferreira estreava no Rio de Janeiro, no Theatro Serrador, a montagem de Questi fantasmi! (1945), Estes fantasmas!, ao pé da letra, mas traduzido por Renato Alvim e Mário da Silva com o título de O grande fantasma, sob direção do também italiano Ruggero Jacobbi, que havia chegado ao país dois anos antes.
Diretor artístico da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico, Marcelo Lazzaratto relata que, certa vez, quando perguntado sobre A grande magia, De Filippo declarou o que queria dizer com a peça: “A vida é um jogo, e este jogo precisa ser apoiado por ilusão, que por sua vez deve ser alimentada por… fé. Todo destino está ligado a outros destinos em um grande jogo eterno do qual não somos vistos, exceto se não somos irrelevantes”.
Também responsável pela adaptação, conduzindo um elenco de 11 atuantes, havia anos Lazzaratto cultivava o desejo de encenar o texto por motivos como “o ineditismo da obra em território nacional, por apresentar um dos maiores dramaturgos cômicos de todos os tempos e pouco conhecido no Brasil, pelo tema tão fascinante e atual que o texto desenvolve e por seus personagens cativantes”. Daí o gesto significativo de prospectar a encenação para coroar os 25 anos de atividades ininterruptas da companhia de pesquisa em linguagem cênica. A fim de “Marcar essa data significativa de um grupo de teatro com uma obra essencialmente teatral, que aposta na teatralidade até às últimas consequências para se efetivar”, como observa. “À Carolina Fabri, Marina Vieira, Pedro Haddad e Thais Rossi se somarão atores que já foram da Cia. Elevador ao longo dos anos e que interpretarão os típicos e divertidos personagens italianos que compõem o imaginário de Filippo, garantindo, assim, unidade estilística e diálogo direto com a encenação”.
A primeira vez que Lazzaratto entrou em contato com a obra eduardiana foi em 1999, quando atuou em A arte da comédia no papel de Prefeito De Caro, sob a direção de Marcio Aurelio, junto à Cia. Razões Inversas. “Naquele momento, pude conhecer o talento de um autor que sabe urdir, tramar e tecer personagens e situações com uma capacidade incrível, conduzindo de maneira brilhante o ritmo da cena, o jogo de interesses e a construção da comicidade a partir das mazelas humanas. Que maestria!”, afirma.
Acerca da história absurda de um homem que acredita que tem sua esposa em uma caixa, o diretor compartilha o que De Filippo registrou em suas memórias: “A minha verdadeira casa é o teatro, lá eu sei precisamente como me movimentar e o que fazer: na vida, sou um desabrigado”. Nascido em Nápoles, no sul da Itália, sua vida teatral começou ainda muito jovem, sob a orientação de seu pai, Eduardo Scarpetta, um importante ator cômico que o apresentou à magia da profissão, juntamente com seus irmãos, Peppino e Titina.
Uma citação à primeira infância ilustra bem esse pano de fundo, como a jornalista e diretora de cinema Irene Gianeselli pontua no texto Vida após a morte: Entrevista com o dramaturgo e ator Eduardo De Filippo, publicado na italiana Oubliette Magazine, em 15 de outubro de 2014, usando como fonte o livro com o teatro completo dele, publicado pela editora Mondadori em 2007:
Eu era uma criança que observava muito. Tinha seis ou sete anos e passava dias inteiros no teatro. Assistia a uma peça, seja dos bastidores, seja de um canto da plateia, seja com a cabeça enfiada entre as grades da galeria, seja de um camarote — sei lá quantas vezes. Lembro-me claramente de que até os atores que eu mais admirava e que mais me empolgavam, como meu pai, Eduardo Scarpetta, ou Pantalena, ou o esplêndido Magnetti, me provocavam pensamentos críticos. “Quando eu for ator, não vou falar tão rápido”, ou “Deveríamos falar mais baixo aqui”.
E A grande magia muito revela dessa condição atávica de Eduardo De Filippo para com o teatro, considera Lazzaratto. “Shakespeare nos diz que o mundo é um palco, De Filippo nos diz que a vida é um teatro constante, repleto de representações de diversos estilos. ‘O esforço desesperado que o homem faz na tentativa de dar à vida um sentido qualquer, é teatro’, diz. Em A grande magia, ele nos apresenta uma obra que esmaece as fronteiras entre realidade e ilusão. Obra escrita em um mundo pós-guerra, profetizou e sintetizou uma metáfora perfeita dos nossos tempos atuais, onde a realidade cotidiana é um jogo de ilusão habitado por ‘mágicos’ inteligentes que fazem com que as pessoas acreditem no improvável, tornando-as insensíveis e incapazes de perceber a verdade”.
O diretor vai mais fundo. “A peça nos diz que para não perdermos o que temos, sejam as coisas materiais, sejam as emocionais e simbólicas, nos apegamos à ilusão como verdade e não a largamos por nada. Preferimos a ilusão, ‘pois ela é nossa!’, dizemos iludidos por nós mesmos. Em A grande magia, tanto a manipulação quanto a livre escolha nos tornam reféns com ares de libertação. Eis um aspecto trágico de um grande comediógrafo. Toda comédia nos faz entrever em seu fundo a tragicidade da experiência humana. Poucos autores são capazes de nos oferecer tal complexidade de maneira simples, e Eduardo De Filippo está entre eles”.
Metateatro
Ao considerar o período de escrita e a primeira exibição de A grande magia, em 12 de dezembro de 1949, em Nápoles, no Teatro Mercadante, pela companhia Il Teatro di Eduardo con Titina De Filippo, Lazzaratto pondera que vale a pena notar o modo experimental da peça, plena de referências metateatrais:
Para o diretor artístico da Cia. Elevador, De Filippo fala de maneira precisa da relação entre o mundo do teatro e o mundo das pessoas espectadoras, sobre as fronteiras invisíveis e incontroláveis entre essas duas realidades complementares. “Mas também fala da crise de um autor que buscou encontrar sua razão de ser em anos difíceis do pós-guerra; e ali percebeu que as pessoas – com os sentidos embotados – preferiam não olhar para a realidade: e esta peça, de certo modo, denunciava, além disso, o ‘teatro’ que era considerado uma arte auxiliar, não uma ferramenta de alerta, mas apenas um jogo de ilusão tranquilizante”, continua.
“O que de fato acontece com Calogero Di Spelta, infelizmente, é de grande atualidade: ele se encerra completamente em si mesmo, símbolo de uma humanidade egoísta e hipócrita, que recusa a construção de uma sociedade melhor. Mas também traz em si certa ingenuidade: basta pensar nas muitas pessoas que ainda caem em armadilhas por pretensos ‘magos’ e ‘videntes’ que prometem soluções fáceis para todos os problemas da vida… as redes sociais estão infestadas deles. Mas o grito de alarme lançado por A grande magia também se refere a um discurso mais amplo, visando todos os sutis jogos ilusórios que se infiltram em nossas vidas diárias”, afirma Lazzaratto.
Trazendo a voz do filho do autor: “Nós pensamos sobre como a realidade de hoje nos é oferecida cada vez mais por jornais, TV e Internet, e não sabemos quem somos”, diz Luca de Filippo, que dirigiu e atuou em montagem do texto pela sua própria companhia na Itália, em 2013. Em seu ponto de vista, é um De Filippo “cínico e desencantado” que escreveu a peça que faz referência direta à imagem de uma Itália em reconstrução, ainda prisioneira de circunstâncias imutáveis, como as sequelas do fascismo sob o regime do primeiro-ministro Benito Mussolini (1922-1943), um país que deslizava em um autoengano tolo.
“Qualquer semelhança com a realidade brasileira atual não é mera coincidência”, diz Lazzaratto. “Mas não podemos esquecer o principal objetivo do teatro para esse autor fundamental: ‘Contar uma história, de preferência repleta de paixões humanas, filtrada através da lente de uma poesia extraordinária’. E que história inquietante nos conta A grande magia!”.
25 anos esta noite
Desde sua fundação na capital paulista, em julho de 2000, a Cia. Elevador de Teatro Panorâmico busca “apropria-se dos mais diversos temas para dialogar diretamente com o homem contemporâneo, estabelecendo um trabalho de pesquisa e criação, propondo a junção da verticalidade dessa pesquisa com a horizontalidade de sua abrangência ao público”, segundo seus criadores anotaram em projeto anterior.
Nesse percurso, a premissa de investigar a linguagem cênica traz pelo menos três influências norteadoras: do escritor francês Stéphane Mallarmé (1842-1898), que, em seu poema-chave da modernidade, Um lance de dados jamais abolirá o acaso, propõe o Acaso e a Escolha como vetores fundamentais, tanto para a criação quanto para a recepção estética; do ator, dramaturgo e pensador francês Antonin Artaud (1896-1948) e seu conceito de contaminação-contágio; e da coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009) e seus processos criativos em que a dicotomia ator-personagem deixa de existir, cedendo lugar à persona do artista que cria quando escolhe.
Essas variantes contribuíram para o desenvolvimento de “um trabalho em Improvisação Teatral com o nome Campo de Visão: pressuposto estético em que esses princípios fundamentais são revitalizados sob o conceito de ‘processo como obra’ e onde o esboço se configura como a própria estética”, afirma Lazzaratto, autor dos livros Campo de visão: exercício e linguagem cênica (Editora Unicamp, 2011) e Arqueologia de um ator (Editora Appris, 2022). Há um quarto de século, mesmo idade da companhia, ele concilia a vida teatral com a lida de professor no Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.
Dentre as produções encenadas na linha de tempo do núcleo artístico estão Uma peça por outra (2000), dramaturgia de Jean Tardieu; A ilha desconhecida (2001), adaptação para o público infantojuvenil do conto homônimo de José Saramago; Loucura (2001), monólogo atuado por Gabriel Miziara, a partir de fragmentos de obras de Fernando Pessoa, Santo Agostinho, Rainer Maria Rilke, Fiódor Dostoievski, Guy de Maupassant, Carl Gustav Jung, Albert Camus, Georg Büchner e Antonin Artaud; Eu estava em minha casa e esperava que a chuva chegasse (2007), de Jean Luc-Lagarce; Ifigênia (2012), baseada em Ifigênia em Áulis, de Eurípedes, com dramaturgia de Cássio Pires; O jardim das cerejeiras (2014), de Anton Tchékhov; Caro Kafka (2022), infantojuvenil com dramaturgia de Carla Kinzo e Marcos Gomes; Tebas (2022), dramaturgia de Lazzaratto a partir das três peças da Trilogia Tebana de Sófocles: Édipo rei, Édipo em Colono e Antígona; e por fim 21 Passos para MdEa (2024), atuação de Carolina Fabri para texto de Lazzaratto em que uma mulher contemporânea desperta de repente, sem saber por que, em uma ponte à beira do abismo e, a partir daí, começa a reconstruir, através de sutil jogo entre linguagem e memória, sua vida e realidade.
[Este conteúdo tem apoio do Sesc São Paulo]
Serviço
Cia. Elevador de Teatro Panorâmico
De 30 de agosto a 21 de setembro de 2025.
Quinta, 15h (exceto 18/9, 20h), sexta e sábado, 20h, e domingo, 18h. Sessões com libras: 11 e 14/9, quinta, 15h e domingo, 18h. Sessões com audiodescrição: 13 e 14/9, sábado, 20h e domingo, 18h.
Sesc 14 Bis – Teatro Raul Cortez (Rua Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista, tel. 11 3016-7200).
120 minutos | Livre | Acessibilidade | 523 lugares.
R$ 60 (inteira), R$ 30 (meia-entrada) e R$ 18 (credencial plena).
Disponível para compra on-line a partir de 19/8, terça-feira, 17h, pelo link https://www.sescsp.org.br/programacao/a-grande-magia/. A partir dessa data, é possível comprar direto nas bilheterias das unidades.
Ficha técnica
Texto: Eduardo De Filippo
Direção e adaptação: Marcelo Lazzaratto
Elenco:
Carolina Fabri – personagem Zaira
Chiara Lazzaratto – Amélia
Chico Carvalho – Otto Marvuglia
Ernani Sanchez – Arturo e Gennarino
Fernando Vitor – Mariano, Guarda e Oreste
Gabriel Miziara – Gervásio e Gregório
João Portela – Criado
Larissa Garcia – Marta Di Spelta e Guarda
Marina Vieira – Senhora Zampa, Sargento e Rosa
Pedro Haddad – Calogero Di Spelta
Rita Gullo – Senhora Locascio, Roberto e Matilde
Iluminação: Marcelo Lazzaratto
Direção de arte (cenografia e figurino): Simone Mina
Trilha sonora: Marcelo Lazzaratto
Fotos: João Caldas
Visagismo: Roger Ferrari
Assistente de figurino e arte: Graziela Cavalcante
Assistente de cenografia: Vinicius Cardoso
Assistente de direção: João Portela
Assistente de produção: Rafaela Gimenez
Produção de figurinos e arte: Rick Nagash
Pintura de arte: Werner Schultz
Cenotécnico: Wanderlei Silva
Operador de som: Gabriel Bessa
Operador de luz: Filipe Batista
Contrarregra: Hiago Oliveira
Camareira: Alessandra Ribeiro
Assessoria de imprensa: Pombo Correio
Produção: Anayan Moretto
Um projeto da Cia. Elevador de Teatro Panorâmico