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Os impactos permanentes da ditadura

LABTD estreia ‘Mural da memória’ no Sesc Pompeia

9.10.2025  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Fabricio Augusto

Os tempos não são para iniciantes. No momento em que, por um lado, um sobrinho do general João Baptista Figueiredo, último comandante-em-chefe das Forças Armadas na ditadura civil-militar (1964-1985), conspira desde os Estados Unidos para “anistiar” o ex-presidente da República Jair Bolsonaro, cuja condenação por tentativa de golpe de Estado ainda não transitou em julgado, por outro lado o escritor e compositor carioca Aldir Blanc (1946-2020), morto em consequência da pandemia do novo coronavírus, tem seu nome alçado à Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), repasse de recursos federais a estados e municípios em prol da democratização e universalização do acesso à cultura. Blanc fez a letra e João Bosco, a música da canção O bêbado e a equilibrista, imortalizada na voz de Elis Regina e marco da luta por direitos humanos na esteira da controversa Lei da Anistia (1979). Pois é nesta hora do Brasil que o LABTD – Laboratório de Técnica Dramática propõe o seguinte exercício de imaginação a bordo do novo e quarto espetáculo, Mural da memória: a Lei da Anistia foi revogada e os crimes cometidos por agentes do Estado começam a ser julgados…

Na sinopse, um General 4 Estrelas é o primeiro a responder diante do tribunal sob acusação de sumir com o corpo de três vítimas. Pelos depoimentos das testemunhas, conhecemos histórias de três pessoas completamente diferentes entre si: o locutor de rádio comunitária Abel (atuado por Diego Chilio), a militante da luta armada Silaine (Maria Emilia Faganello) e a prostituta travesti e aspirante a atriz Catia (Andréa Sá). Suas vidas se entrelaçam numa dramaturgia muralista. Dessa forma, enquanto esse militar responde às perguntas de uma juíza, da promotoria e da defesa, ele tenta se contrapor aos depoimentos das sobreviventes, que comparecem como testemunhas.

Eu sou viúva de um homem que não teve o corpo enterrado até hoje. Fiz um enterro simbólico, anos depois, quando entendi que ele não ia voltar. Aceitar, eu nunca aceitei. Me senti culpada por muito tempo, mas a culpa não é minha: é desse General escorado na imagem do ‘homem de bem que serviu à população’. Recebeu até Medalha do Pacificador do Exército… que paz é essa?

Edna, radialista comunitária atuada por Jessica Marcele em trecho da dramaturgia de ‘Mural da memória’

“Estamos propondo uma dramaturgia muralista, no sentido de uma pluralidade de registros e pontos de vista. Por isso, foi muito importante retratar personagens com identidades e origens sociais distintas que foram brutalmente impactados pela ditadura”, afirma a dramaturga Ave Terrena.

Embora a peça seja ficcional, ela foi construída a partir de muitas histórias reais. O LABTD (pronuncia-se “labitedê”) fez uma longa investigação sobre esse período histórico: entrevistou ativistas, guerrilheiras e sobreviventes; leu os arquivos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicados em 2014; pesquisou acerca dos times de várzea e da Copa de 1970 no Museu do Futebol; visitou o Acervo Bajubá para localizar contextos das operações de perseguição às travestis e a propósito da noite LGBT paulistana durante as décadas de 1970 e 1980; e ainda pesquisou sobre o fenômeno das rádios independentes. 

De todo esse material nasceram as três figuras emblemáticas citadas há pouco, que são pessoas consideradas desaparecidas políticas, ou seja, executadas nos anos de chumbo, presentes no eixo narrativo. “Queremos mostrar que a violência faz parte do cotidiano em um regime opressor, e qualquer um pode ser uma vítima. Por isso é tão importante fazermos justiça”, acrescenta Ave.  

A peça simboliza essa busca por um encerramento digno para quem foi fortemente impactado pela ditadura. “Os personagens cujos corpos não foram encontrados são retratados como pessoas vivas. Quer dizer, eles continuam existindo enquanto os viventes não descobrirem onde eles estão”, comenta o ator Diego Chilio.

“A partir da dramaturgia, a encenação também busca o procedimento muralista, o que cria uma série de desafios. Um mural é uma obra estática, que permite um tempo de olhar e apreciar suas diferentes partes e criar correlações lentas entre as imagens. No teatro, estamos limitados pelo tempo do espetáculo, e nesse sentido exploramos diferentes maneiras de criar a sensação da simultaneidade e de uma temporalidade superposta ao manter o elenco todo em cena, o tempo todo”, conta o diretor Diego Moschkovich, que também faz parte do elenco, ao lado das demais atuantes Andréa Sá, Danna Lisboa e Jessica Marcele, além dos músicos em cena Gabriel Barbosa e Felipe Pagliato, responsáveis por direção musical e composição. “Esperamos ativar a memória geracional das pessoas que assistem”, continua Moschkovich.

O cenário de Mural da memória remete a uma mesa-redonda de programas de debate sobre futebol. Para complementar a experiência, o espetáculo explora vários recursos audiovisuais. Acontecem projeções de documentos da ditadura, de vídeos, de fotos, de cenas da Copa de 70 no México, de documentos pessoais da equipe, registros de travestis fichadas na Lei de Vadiagem, e também das pioneiras na cultura e na política brasileiras: as chamadas divas Valeria, Rogeria, Aloma, Marcinha do Corinto, Neon Cunha e Thais Azevedo.

A trilha sonora também contribui para a ambientação do público com canções compostas exclusivamente para o trabalho. Os músicos estão em cena e cantam ao vivo, operando a sonoplastia junto a performances vocais, utilizando instrumentos convencionais e outros, inesperados, como ossos de animais. A música é um dos elementos mais fortes da pesquisa do LABTD, desenvolvido desde a primeira peça do grupo de forma intrínseca à criação da dramaturgia: não à toa a rádio é o elemento central da peça, junto ao tribunal. 

Destaca-se também o trabalho de direção de movimento assinado por Danna Lisboa, atriz do espetáculo e figura emblemática das danças urbanas no Brasil, com reconhecimento e trânsito pelo movimento hip-hop, pela dança waacking e pela comunidade ballroom. Em seu trabalho de composição corporal, notabilizou-se por trabalhar de forma cênica os elementos criativos dessas culturas, propondo uma síntese entre elas e a linguagem teatral.

A nova montagem é um desdobramento das peças anteriores do grupo: O corpo que o rio levou (2016), As 3 uiaras de sp city (2018) e E lá fora o silêncio (2022). O texto será publicado no livro Mural da memória – dramaturgia muralista: cinco barbantes trançados, de Ave Terrena, criado em processo com o LABTD. Lançamento previsto para dezembro, pela Editora Javali, reunindo prefácios da jornalista, escritora e ativista dos direitos humanos Amelinha Teles,intitulado Memória em retalhos; da mulher negra, ameríndia, transgênera e ativista independente Neon Cunha, A democracia do Brasil deveria ser travesti; e da pós-doutora em história Maria Claudia Badan Ribeiro, autora de Mulheres na luta armada: protagonismo feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional), editado pela Alameda em 2018, A resistência surge cotidiana.

Fabricio Augusto Elenco de seis atuantes e dois músicos em ensaio fotográfico de divulgação para ‘Mural da memória’, quarto espetáculo do LABTD – Laboratório de Técnica Dramática, grupo em atividade há 11 anos na cidade de São Paulo; a temporada no Sesc Pompeia vai até 31 de outubro

Quando Elis canta “Chora/ A nossa Pátria mãe gentil/ Choram Marias e Clarices”, os versos de O bêbado e a equilibrista aludem à Maria Aparecida, uma das duas filhas do padeiro, cobrador de ônibus e então operário metalúrgico prensista Manoel Fiel Filho (1927-1976), bem como à Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), graduada em ciências sociais e presidente honorária do Instituto Vladimir Herzog (IVH), criado em 2009.

No Partido Comunista Brasileiro (PCB), Fiel Filho, que nasceu em Alagoas e migrou para São Paulo aos 20 e poucos anos, era responsável pela difusão do jornal Voz Operária e pela organização do partido entre os trabalhadores das fábricas localizadas no bairro paulistano da Mooca. “Às 12h do dia 16 de janeiro de 1976, Manoel foi conduzido por homens que se designavam como funcionários da prefeitura à sede do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-‑CODI do II Exército). No dia seguinte, uma nota foi divulgada pelo II Exército afirmando, com falsa versão, que Manoel havia cometido suicídio ao se enforcar com suas próprias meias na cela em que estava. Manoel morreu aos 49 anos em circunstâncias análogas aos casos de José Ferreira de Almeida, Pedro Jerônimo de Souza e Vladimir Herzog”, informa o capítulo Mortos e desaparecidos políticos no volume 3 do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014).

Nascido na Iugoslávia, Vladimir Herzog mudou-se com a família para o Brasil aos 9 anos. Fez graduação em filosofia pela USP e enveredou pelo jornalismo nos anos 1960, atuando em O Estado de S. Paulo, na emissora pública de rádio e televisão inglesa BBC, em Londres, na revista Visão e na TV Cultura. Nesse período, casou-se com Clarice e teve dois filhos. Vladimir também foi morto no DOI-CODI do II Exército, onde havia comparecido voluntariamente para prestar esclarecimentos sobre seu envolvimento com o PCB. Em nota, o Comando do II Exército declarou que o jornalista teria admitido seu vínculo com o partido desde 1971 ou 1972. “A comunicação sustenta ainda que às 16 horas, quando foi novamente procurado, Vladimir foi encontrado morto, enforcado com uma tira de pano e portando um pedaço de papel rasgado, no qual teria descrito sua participação no partido. Dessa forma, era montada a falsa versão de suicídio”, cita o Relatório da Comissão Nacional da Verdade.

Centenas de assassinatos como esses jamais foram julgados e punidos, diferentemente de tribunais da Argentina, do Chile e do Uruguai, países que atravessaram ditaduras e promoveram algum nível de reparação histórica. Em contraponto às mentiras oficiosas, desmascaradas anos depois, o LABTD – Laboratório de Técnica Dramática busca fabular com incisão sobre os documentos da história brasileira contemporânea reavivados em suas dramaturgias e encenações.

[Este conteúdo tem apoio do Sesc São Paulo]

Serviço

Mural da memória

LABTD – Laboratório de Técnica Dramática.

De 8 a 31 de outubro de 2025.

Quarta a sexta, 19h30, e toda quinta também 16h.

100 minutos | 14 anos | 80 lugares.

Sesc Pompeia – Espaço Cênico (Rua Clélia, 93, Pompeia, tel. 11 3871-7700).

Ingresso: R$ 50,00 | R$ 25,00 | R$15,00

Disponível para compra on-line pelo link: https://www.sescsp.org.br/programacao/mural-da-memoria/. Ou direto nas bilheterias das unidades.

Fabricio Augusto Os instrumentistas Felipe Pagliato e Gabriel Barbosa (à direita), que dividem a cena com o elenco e são incumbidos da direção musical e composição

Ficha técnica

Texto: Ave Terrena

Direção: Diego Moschkovich

Elenco: Andréa Sá, Danna Lisboa, Diego Chilio, Diego Moschkovich, Jessica Marcele e Maria Emília Faganello

Direção musical, composição e música em cena: Gabriel Barbosa e Felipe Pagliato

Cenografia e desenho de luz: Wagner Antônio

Figurinos: Diogo Costa

Assistente de direção: Vladimir Bocharov

Criação em vídeo: Vic Von Poser

Preparação vocal: Palomaris

Direção de movimento: Danna Lisboa

Operação de vídeo: Ricardo Kenji

Direção de produção: Igor Augustho

Produção executiva: Lydia Arruda

Assistentes de produção: Mariana Pinheiro, Rafaela Gimenez e Rebeca Forbeck

Financeiro: Ivanes Mattos

Estagiários de produção: Hanon Arthur e Pedro Oliveira

Design gráfico: Alan Amorim

Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Daniele Valério e Flávia Fontes

Estratégia digital e video creator: Gabi Berbert

Fotografias (divulgação): Fabrício Augusto

Maquiagem e cabelos (divulgação): Magô Tonhon e Alice Guél

Fotografias (registro): Renato Mangolin

Transporte: Izildo Tadeu e TELopes Transporte

Produção: Pomeiro Gestão Cultural e Centelha Produções

Realização e Criação: LABTD – Laboratório de Técnica Dramática

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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