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A atualidade de ‘Morte e vida severina’

Companhia Ensaio Aberto (RJ) encena obra-prima de Cabral

9.12.2025  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Thiago Gouveia

Vinte e cinco anos separam a primeira montagem de Morte e vida severina pela Companhia Ensaio Aberto, do Rio de Janeiro, então uma coprodução luso-brasileira estreada em Lisboa, em 2000, da temporada paulista da remontagem em cartaz no Teatro Paulo Autran do Sesc Pinheiros até 18 de janeiro de 2026.

A versão mais recente do auto de Natal pernambucano de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), com músicas de Chico Buarque e direção de Luiz Fernando Lobo, estreou em 2022, no Armazém da Utopia, espaço da companhia na Zona Portuária. Além de Lobo, que dirige a peça e interpreta o papel de Mestre Carpina, voz da experiência de vida e trabalho nas comunidades mais pobres do manguezal, o ator Gilberto Miranda também participou da versão original protagonizando Severino, narrador e retirante nordestino que foge da miséria do sertão para o litoral em busca de melhores condições de vida.

No programa da primeira temporada carioca de Morte e vida severina, em 2001, no Teatro Glauce Rocha, a Ensaio Aberto cita a percepção de João Cabral a propósito de seu texto, o empenho em conciliar perspectivas modernas e populares.

Nesses 22 anos que se passaram entre a primeira montagem e a atual, saímos do Mapa da Fome e chegamos a ser a sexta economia do mundo. Ao mesmo tempo, as manchas demográficas da Geografia da Fome não estão mais localizadas apenas nos sertões do Nordeste, e sim dentro das grandes cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Nova Iorque, Paris e Berlim

Luiz Fernando Lobo, ator e diretor

“Quando eu era menino, os trabalhadores do engenho de meu pai vinham me chamar: ‘Vamos à feira, diz que saiu um romance novo’. E à noite era eu quem lia para eles… Essas leituras devem ter influenciado o meu auto, Morte e vida severina; o conjunto de minha poesia é mais simples que a poesia popular, sem rimas; minhas estrofes são mais curtas, porque não quero ‘distrair’ o leitor, mas, em se tratando de uma obra que pretende contar o povo e se contar para o povo, eu devia utilizar a forma mais adequada, que é o metro popular do romanceiro, sempre vivo. E a nossa sorte: nós, artistas de tradição ibérica podemos recorrer a essa mistura de popular e erudito, que vem das fontes. Os maiores poetas utilizaram indiferentemente os dois gêneros de metros, veja-se Góngora ou Camões, e isto ainda é mais patente no teatro de Gil Vicente e Lope de Rueda a Lope de Vega e Calderón… Esta tradição que tem sempre extraordinária vitalidade deve certamente ajudar todos aqueles que querem criar um teatro ao mesmo tempo moderno e popular”. Trata-se de trecho de documento disponível no acervo digital do CBTIJ – Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude.

Escrito entre 1954 e 1955, a pedido da dramaturga, diretora e professora Maria Clara Machado, da companhia O Tablado (RJ), o poema narra a travessia de um retirante nordestino, Severino, dominantemente a pé, como que rente ao curso do rio Capibaribe, desde o interior de Pernambuco, passando por regiões do sertão, agreste e Zona da Mata, no litoral, até alcançar a capital Recife, cortada pelo mesmo rio. Em sua busca de uma vida melhor, ele enfrenta a miséria, a fome e a morte.

O auto de Natal do escritor, um gênero de origens medieval e ibérica, comunica uma crítica social contundente sobre a exclusão. Possui 18 intertítulos que entremeiam os comumente chamados blocos, jornadas, atos ou cenas que indicam mudança de local, ação ou diálogo e são estruturados em versos (estrofes em redondilha, de quatro versos).

Na época, O Tablado avaliou que não tinha condições de encená-lo. Daí Cabral o incluiu no livro Duas águas (1956). O Teatro Cacilda Becker chegou a montá-lo em 1960, em São Paulo, com direção de Clemente Portella.

Mas foi em 1965 que despontou a emblemática encenação de Silnei Siqueira (1934-2013) para Morte e vida severina, musicada por Chico e interpretada por estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). A estreia aconteceu em 11 de setembro daquele ano, na inauguração do Teatro da Universidade Católica, o Tuca, na zona oeste da capital paulista. Durante o processo de criação, parte do elenco e equipe viajou a Pernambuco para pesquisar aspectos culturais, sociológicos, geográficos, econômicos e afins. Foram realizadas 32 apresentações para 17.500 pessoas, com direito à participação no IV Festival Internacional de Teatro Universitário em Nancy, na França.

Nos dias de hoje

Sobre o espetáculo da Companhia Ensaio Aberto, o diretor Luiz Fernando Lobo afirma que muita coisa mudou de 2000 (estreia em Lisboa) para 2022 (Rio de Janeiro): “Nesses 22 anos que se passaram entre a primeira montagem e a atual, saímos do Mapa da Fome e chegamos a ser a sexta economia do mundo. Ao mesmo tempo, as manchas demográficas da Geografia da Fome não estão mais localizadas apenas nos sertões do Nordeste, e sim dentro das grandes cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo, Nova Iorque, Paris e Berlim”.

Na concepção de Lobo, a peça não é mais um poema regional brasileiro, “pois os que vivem e morrem de morte severina agora estão em todas as serras magras e ossudas do mundo”. A sombra da fome se espalha pelo planeta impulsionada pela crescente desigualdade. Segundo a Oxfam, confederação global de organizações atuantes em mais de 70 países, o 1% mais rico da população mundial possui agora 45% da riqueza global; 44% da humanidade vive com menos de 6,85 dólares (R$ 41,5) por dia; e as taxas de pobreza global praticamente não mudaram desde 1990.

Thiago Gouveia Ator Gilberto Miranda e elenco em passagem de cena coral do espetáculo ‘Morte e vida severina’, da Companhia Ensaio Aberto (RJ), sob direção de Luiz Fernando Lobo para o texto de João Cabral de Melo Neto musicado por Chico Buarque, em cartaz no Sesc Pinheiro (SP)

No ano passado, durante a Cúpula de Líderes do G20, no Rio de Janeiro, o presidente Lula lançou a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza e declarou: “O símbolo máximo na nossa tragédia coletiva é a fome e a pobreza. Convivemos com 733 milhões de pessoas ainda subnutridas. Em um mundo que produz quase 6 bilhões de toneladas de alimentos por ano, isso é inadmissível”.

Morte e vida severina reúne 25 atores e quatro músicos, sob direção musical e arranjos de Itamar Assiere. A cenografia é assinada por J.C. Serroni, a iluminação por Cesar de Ramires e os figurinos por Beth Filipecki e Renaldo Machado. A montagem recebeu três indicações ao Prêmio Shell de Teatro pela temporada de 2022 no Rio de Janeiro, sendo contemplada na categoria música, bem como obteve seis indicações ao Prêmio APTR de Teatro, conquistando a melhor iluminação.

Sobre a Companhia Ensaio Aberto 

A companhia surgiu no Rio de Janeiro. em 1992, com o propósito de retomar o teatro épico no Brasil, optando por uma forma de organização coletivizada. O núcleo artístico fixo tem no Teatro dos Trabalhadores um estudo prático e teórico permanente e, além dos espetáculos, atua em seis laboratórios artísticos e técnicos: cenografia, figurinos, objetos de cena, iluminação, corpo e memória. Entre as últimas obras encenadas, estão Olga Benário – Um breve futuro (2006/2023/2025), dramaturgia de Lobo; A exceção e a regra (2023), de Bertolt Brecht; e O banquete (2024), de Mário de Andrade. Além da exposição cênica A classe trabalhadora brasileira (2023), abrigada no Armazém da Utopia.

Este, desde 2010, é a casa da Ensaio Aberto, um porto aberto a receber coletivos considerados irmãos do Brasil, da América Latina, da África e de todos os lugares do mundo. Durante 14 anos, a companhia lutou para conquistar esse espaço que tem como proposta promover pesquisas e linguagens sobre o teatro épico. Ambiciona ser um lugar de construção de cidadania por meio da qual homens e mulheres adquirem fôlego e estabeleçam novos laços. “Um porto que, em vez de nos amarrar à terra, ajuda a navegar e a recobrar as forças para sobreviver, e até vicejar, em meio ao turbilhão”, diz o material de divulgação.

Em 2024, a companhia, por meio de editais e patrocínios, conseguiu realizar uma ampla reforma do Armazém da Utopia, que agora conta com o Teatro Vianinha, a Sala Sérgio Britto, laboratórios artísticos e técnicos, sala de ensaio e sala de estudo. Iniciativa viabilizada com recursos da Lei de Incentivo Federal – Lei Rouanet.

Outras derivas da obra-prima

No panorama contemporâneo, vale pontuar outros artistas, companhias e grupos que abraçaram o auto de Natal de João Cabral de Melo Neto. Em 1996, mais de três décadas após a experiência universitária no Tuca, o mesmo diretor Silnei Siqueira foi convidada pelo Grupo Tapa a dirigir Morte e vida severina com direção musical de Gustavo Kurlat e elenco numeroso.

Em 1997, Gabriel Villela assinou a montagem junto ao núcleo de atores do Teatro Glória, no Rio de Janeiro.

Sediado em Taboão da Serra, cidade da Grande São Paulo, o Grupo Clariô de Teatro criou Severina – Da morte à vida, em 2015, para discutir identidade e opressão de populações periféricas e expor demais questionamentos sociais sob direção cênica e direção musical de Naruna Costa e dramaturgia de Will Damas e grupo.

Com aproximações a uma “peça palestra”, o Grupo Magiluth, do Recife, partiu da obra do escritor e poeta conterrâneo para criar Estudo n° 1 Morte e vida, em 2022, dirigido por Luiz Fernando Marques, o Lubi. No mesmo ano, Elias Andreato encenou uma produção com igual nome do texto de Cabral e direção musical, arranjos, aboios e lamentos de Marco França e atuação de Dudu Galvão como Severino – ambos ex-integrantes do Grupo Clowns de Shakespeare, de Natal. A temporada ocorreu justamente no histórico Tuca.

Houve ainda desdobramentos em diferentes formas de manifestações artísticas, a começar pelo disco Morte e vida severina (1966), de Chico Buarque, com 13 faixas compostas especialmente para o trabalho universitário de Siqueira. “Sem o espetáculo, eu jamais musicaria João Cabral. Nunca faria aquelas músicas, porque seria uma coisa seca demais. Muitas ideias nasciam do grupo, à medida que o espetáculo ia saindo”, disse o músico.

Em Severino (1994), os Paralamas do Sucesso registram 13 faixas narradas em terceira pessoa, diferentemente do poema. Com um tom politizado, o álbum mostra a oposição entre a elite econômica do país e os severinos, com referências ao movimento sindical da região do ABC paulista e ao vírus da aids, por exemplo, conforme relata o jornal literário Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná.

No campo do audiovisual, Zelito Viana dirigiu Morte e vida severina (1977), filme que intercala ficção e realidade com depoimentos de sertanejos, imagens de seu cotidiano e participações de atores como Stênio Garcia e José Dumont. Em especial para a Rede Globo, em 1981, Walter Avancini dirigiu um programa protagonizado por Elba Ramalho, Tânia Alves, Sebastião Vasconcelos e Dumont, entre demais artistas.

Em 2005, os versos de Cabral ganharam adaptação em quadrinhos assinada pelo cartunista Miguel Falcão, em preto e branco, preservando o texto original, disponível no canal do YouTube da TV Escola.

No já citado programa de mão da primeira montagem que chegou ao Rio de Janeiro, em 2001, a Companhia Ensaio Aberto menciona outra passagem na voz de João Cabral de Melo Neto, forjador de uma escrita, em termos de linguagem, marcada pelo rigor construtivo, pela objetividade, concretude e antilirismo: “Você vê os gregos: o Pégaso, o cavalo que voa, é o símbolo da poesia. Nós deveríamos botar antes, como símbolo da poesia, a galinha ou o peru que não voam. Ora, para o poeta, o difícil é não voar, e o esforço que ele deve fazer é esse. O poeta é como o pássaro que tem de andar um quilômetro pelo chão”.

[Este conteúdo tem apoio do Sesc São Paulo]

Serviço 
Morte e vida severina
Companhia Ensaio Aberto 

De 5 a 21 de dezembro de 2025 e de 8 a 18 de janeiro de 2026.

Quinta a sábado, 20h, domingo, 18h; no sábado 17/1, sessões 16h e 20h. 

90 minutos | 12 anos | 1.010 lugares.

Sessões com acessibilidade em libras: dias 18, 19, 20 e 21/12 e 15, 16, 17 e 18/1. A unidade possui rampas de acesso e elevadores, além de banheiros e vestiários adaptados para pessoas com mobilidade reduzida. Também conta com espaços reservados para cadeirantes.

Sesc Pinheiros – Teatro Paulo Autran (Rua Paes Leme, 195, Pinheiros)

Ingressos: R$ 21,00 (credencial plena), R$ 35,00 (meia) e R$ 70,00 (inteira). Venda on-line pelo aplicativo Credencial Sesc SP ou pelo site https://www.sescsp.org.br/programacao/morte-e-vida-severina/, bem como presencial em todas as bilheterias da rede Sesc SP.

Thiago Gouveia A primeira montagem pela Ensaio Aberto do auto de Natal que comunica uma crítica social contundente sobre a exclusão estreou em 2000, em Lisboa, e no ano seguinte no Rio de Janeiro; a nova versão entrou em cartaz em 2022, no Armazém da Utopia, seu espaço, e agora ganha temporada na capital paulista até 18 de janeiro de 2026

Ficha técnica/Trabalhadores do espetáculo 

Texto: João Cabral de Melo Neto

Músicas: Chico Buarque

Direção-geral: Luiz Fernando Lobo

Direção musical e arranjos: Itamar Assiere

Direção de produção: Tuca Moraes

Cenografia: J.C. Serroni

Iluminação: Cesar de Ramires

Figurinos: Beth Filipecki e Renaldo Machado

Programação visual: Jorge Falsfein e Marcos Apóstolo

Produção: Aninha Barros

Severinos

Gilberto Miranda – Severino

Anderson Primo – Irmão das Almas, Funeral de um lavrador

Ana Clara Assunção – Mulher da Janela

Bibi Dullens

Carla Muzag – Funeral de um lavrador, Cigana 3

Eduardo Cardoso

Grégori Eckert

Iris Ferreira

José Guerra

Kyara Zenga

Leonardo Hinckel

Luciano Veneu – Irmão das Almas

Luiz Fernando Lobo – Mestre Carpina

Mariana Pompeu – Nanã, Anunciação, Cigana 2

Mateus Pitanga

Matheus França

Mika Makino

Pedro Fernando – Irmão das Almas
Rafael Telles

Rossana Russia – Maria

Thaise Oliveira

Tomás Santa Rosa

Tuca Moraes – Cigana 1

Victor Hugo

Victor Seixas

Thiago Gouveia Segundo declarou João Cabral de Melo Neto, “em se tratando de uma obra que pretende contar o povo e se contar para o povo, eu devia utilizar a forma mais adequada, que é o metro popular do romanceiro, sempre vivo”

Músicos 

Acordeon: Itamar Assiere e Matheus Queiroz

Cello: Saulo Vignoli

Percussão: Mingo Araújo

Violão e viola: Marcílio Figueiró

Assistente de direção: Octavio Vargas e Paola de Paula

Assistentes de produção: Laura Gonna

Produção de set: Fellipe Rodrigues

Preparação vocal: Ana Calvente

Preparação corporal: Luiza Moraes e Mika Makino

Músicas adicionais: Itamar Assiere, Carlinhos Antunes, Airton Barbosa

Design de sonorização: Branco Ferreira

Sonorização: Gramophone

Operação de som: Branco Ferreira

Operação de luz: Pedro Passini

Microfonista: Ana Bittencourt

Assessoria de imprensa: Armazém Comunicação | Christina Martins
Coordenação Ciência do Novo Público: Clarice Tenório Barretto

Ciência do Novo Público: Andreza Dias, Gilberto Miranda, Grégory Eckert, Júlia Freiman, Mateus Pitanga, Maura Santiago e Thaise Oliveira

Fotos e imagens de divulgação: Thiago Gouveia

Fotos do programa: Thiago Gouveia, Renam Brandão e Leon Diniz

Vídeos: Maria Flor Brazil, Claudio Tammela | Banda Filmes

Ilustrações: Carybé

Gerente de projeto gráfico: Priscilla Fernandes

Produção gráfica: Marcello Pignataro

Assistente de cenografia: Débora Ferreira

Pintura de arte: Biby Martins, Beatriz Leandro, Danubria Martins e Andréia Amorim

Estagiária em cenografia: Nick Cavalcanti

Cenotécnicos: Wagner de Almeida e José Alves

Maquinista: Sidney Viana Técnicos: Valdeir Baiano e Pedro Passini

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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