9.10.2012 | por Valmir Santos
A seguir, entrevista realizada por email com o professor e pesquisador João Roberto Faria, titular de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Faria acaba de lançar História do teatro brasileiro: volume I – Das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX (Vários autores. Ed. Perspectiva e Edições Sesc SP; 502 págs., R$ 95). O projeto editorial que dirige constitui ambicioso e rigoroso estudo de equipe planejado desde 2002 com o professor emérito e editor J. Guinsburg, também da USP.
Na introdução, Faria reivindica “uma nova história do teatro brasileiro” com a consciência de abordar o texto dramático e a cena conjuntamente. Almeja recuperar o atraso da historiografia do teatro em relação à historiografia da literatura brasileira. “Por atraso, entendo o seguinte: ao longo do século XIX nossa literatura foi objeto de vários estudos críticos e historiográficos, os primeiros feitos com regularidade no país, nos quais se estabeleceu o cânone relativo aos gêneros épicos e lírico que serviu de base às histórias literárias do século XX. (…) No caso do teatro, vale dizer que a dramaturgia – apenas a dramaturgia, não a arte do espetáculo – sempre foi um apêndice dessa historiografia, não merecendo, até 1904, nenhuma obra específica”.
Coordenador da coleção “Dramaturgos do Brasil”, da editora WMF Martins Fontes, e autor de Ideias teatrais: O século xix no Brasil (2001), Faria cumpre temporada de pesquisa em pós-doutorado na University of Wisconsin (Madison, EUA).
Teatrojornal -Dois aspectos parecem cruciais à História do teatro brasileiro: o pioneirismo em construir uma narrativa, preenchendo lacunas imensas, e a adesão empenhada dos departamentos de artes cênicas das principais universidades do país. A pesquisa e o embasamento científico constituem o princípio e a plataforma desse projeto editorial?
João Roberto Faria – Os dois aspectos apontados por você estão presentes na nossa História do teatro brasileiro. Com o incremento da pesquisa em artes cênicas nos cursos de pós-graduação de todo o país, conhecemos hoje o nosso passado teatral com detalhes que escaparam aos historiadores de 30 ou 40 anos atrás. Há muita gente estudando o teatro brasileiro. Dissertações e teses sobre os aspectos mais variados da nossa vida cênica tornaram possível preencher lacunas e construir a história do nosso teatro numa narrativa mais completa. Até pouco tempo atrás, o século XIX era estudado apenas pela sua dramaturgia, exceção feita às biografias do ator João Caetano que nos permitiam compreender algo da interpretação romântica. Hoje, temos um panorama completo do período no primeiro volume da História do teatro brasileiro, visto tanto pela dramaturgia quanto pelas condições do espetáculo teatral, estilos de interpretação, artistas principais, ideias críticas, presença de artistas estrangeiros nos palcos do país, companhias dramáticas e seus empresários. Os capítulos que tratam desses assuntos foram escritos com base em pesquisa rigorosa, por especialistas que têm sólida formação intelectual. O mesmo vale para os capítulos que dizem respeito à primeira metade do século XX: eles captam a continuidade e o esgotamento da forma de fazer teatro do século anterior, daí tratarem também da dramaturgia que não se modernizou, das companhias dramáticas, ensaiadores e artistas que insistiram em preservar os velhos modelos de organização e construção do espetáculo teatral.
Teatrojornal – Por que a dramaturgia surge como eixo? É ela que tradicionalmente fundamenta as historiografias de outros países?
Faria – Esta História do teatro brasileiro não é uma história da dramaturgia brasileira. Todos os aspectos da vida cênica foram contemplados. Acontece que por vezes a dramaturgia se impõe, ou porque num determinado período sua importância parece ser maior ou porque os registros sobre os espetáculos são mínimos. É o caso do teatro no período colonial. Que memória restou dos espetáculos feitos precariamente por atores amadores, quando nem mesmo jornal havia no país? Por sorte temos alguns relatos dos viajantes, que descrevem o que viram em nossos palcos. Se observarmos os capítulos sobre o teatro romântico, veremos que três tratam da dramaturgia e apenas um da encenação e da arte do intérprete. Isso não significa que a dramaturgia é o eixo do livro, mas que naquele período de formação do nosso teatro um único ator, que era também empresário, foi realmente um grande artista [João Caetano, 1808 -1863]. Já os autores dramáticos escreveram em gêneros diferentes, o que exigiu uma divisão dos capítulos para dar conta da tragédia e do melodrama, do drama e da comédia. Observa-se maior equilíbrio na parte seguinte do livro, sobre o teatro realista: um capítulo sobre a dramaturgia, um sobre as encenações e os artistas e um sobre as ideias críticas. Em toda a História do teatro brasileiro esse equilíbrio foi buscado.
Teatrojornal – O sr. acredita que além das abrangências de fôlego dos respectivos volumes, o período contemporâneo também se ressente de sistematização, a partir dos anos de 1960? É mais difícil a missão de dar unidade aos panoramas recentes? O próprio projeto de História do teatro brasileiro pode impulsionar essa prospecção atual?
Faria – Todos sabemos que para fazer história literária ou teatral é preciso um recuo no tempo. Sem esse recuo, não pode haver julgamento que leve em conta de modo balanceado as várias tendências que se contrapuseram num determinado período. O nosso teatro moderno, assunto do segundo volume desta História do teatro brasileiro, já tem imensa bibliografia. Nossos principais dramaturgos, encenadores e artistas têm sido estudados de maneira sistematizada em biografias e estudos críticos, bem como nas dissertações e teses dos cursos de pós-graduação em artes cênicas. É claro que depois da publicação desta História do teatro brasileiro continuarão a surgir obras que vão lançar mais luz sobre nosso teatro moderno. O que posso garantir é que os colaboradores desta História do teatro brasileiro escreveram seus capítulos com base em bibliografia atualizada, de modo a passar ao leitor o que se conhece hoje do nosso teatro. Penso que é mais difícil traçar panoramas do teatro contemporâneo, porque a filtragem do que realmente importa guardar na memória nos é dada pela passagem do tempo. Mas quem sabe esta publicação aponte um caminho para futuras histórias do nosso teatro de hoje… As coordenadas estão dadas em capítulos que tratam tanto da dramaturgia quanto da encenação.
Teatrojornal – Qual o estágio do segundo volume? O sr. pode nos situar em relação à unidade de percurso ou mesmo de capítulos que advirão?
Faria – O segundo volume está previsto para sair no final de outubro. Começa com um capítulo sobre o teatro no Modernismo e outro sobre as primeiras tentativas de modernização do nosso teatro, passando em seguida pelo trabalho dos grupos amadores, das companhias profissionais dos anos 1940-1960, do fortalecimento da dramaturgia, do surgimento dos grupos como Arena e Oficina, dos efeitos da ditadura de 1964 sobre o teatro, chegando por fim às diversas manifestações da contemporaneidade, num total de 25 capítulos.
Teatrojornal – Por que tamanha deferência ao teatro em sua carreira de professor de literatura?
Faria – Fiz a minha pós-graduação na área de Literatura Brasileira, na Universidade de São Paulo, e tive como orientador Décio de Almeida Prado [1917 2000]. Nos anos de 1970, no curso de Letras, ele dava aulas de dramaturgia brasileira, trabalhando na interface da literatura com o teatro. Escolhi para mim o mesmo caminho e não parei mais. Daí meu interesse pela obra de um José de Alencar ou de um Machado de Assis. Qual a importância do teatro na vida desses dois grandes escritores? Estudei a produção dramática de cada um e o envolvimento que tiveram com o teatro, que não foi pequeno. Como professor de literatura brasileira no curso de Letras da FFLCH-USP, ofereço disciplinas optativas sobre dramaturgia brasileira aos alunos da graduação. Na pós-graduação, dou aulas, oriento dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre o teatro brasileiro de modo mais abrangente.
Leia mais >> Reportagem publicada no jornal Valor Econômico em 8 de outubro de 2012.
A crítica guarda especificidades no contexto de um festival. Trabalhar na recepção de um a três espetáculos diários requer empenho de reflexão correspondente ao espírito do evento. Quando sua natureza é local, penso sempre na contextualização junto ao espectador e aos artistas, em sua maioria em formação. É o caso da edição deste ano do Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente, o Fentepp.
Os textos que seguem são fruto dessa natureza, distinta de quando a montagem está em temporada no circuito. Apesar do ritmo acelerado entre assistir a uma peça, performance ou intervenção, para em seguida elaborar um pensamento sobre, não abdicamos de pensar nesse interlocutor curioso, de primeira viagem, que também assistiu ou se interessa pelas questões formais ou temáticas daquela criação que passa por sua cidade.
Por isso partilho a seguir os textos produzidos durante o último Fentepp, de 21 a 29/9, festival em que dividi a missão da crítica com a Luciana Romagnolli.
Tempo morto, tempo posto. Metáfora morta, metáfora…
O mundo está encolhendo. E os artistas da companhia Teatro Inominável, do Rio de Janeiro, revelam sua angústia diante do infantilismo adulto. A patologia se espraia, viral, notória, nas veias públicas e privadas. Daí o cometimento do antivírus Sinfonia sonho, celebração e cerebração das artes cênicas com o frescor e a grata surpresa pespegados pelos jovens criadores cariocas.
Nesse espetáculo estranho, violento, trágico, corrosivo, a dramaturgia espreita um acontecimento real: o assassinato de dez crianças e o ferimento de outras colegas de uma escola do bairro de Realengo, em 2011, por um rapaz doente, um ex-aluno. O espetáculo tangencia o episódio midiático e vai pisar em outras sombras colaterais, como a família disfuncional e a terrível incomunicabilidade entre pessoas que moram sob o mesmo teto.
As referidas distâncias são apropriadas como um dos dispositivos de cena. O diretor e dramaturgo Diogo Liberano corrompe, colaborativamente, as pistas facilmente assimiláveis sobre duas famílias vizinhas. Não há caracterização de personagem entre os nove atores encarregados de dar a ver aos espectadores o núcleo pai/mãe/filho/filha e o núcleo do casal que perde o filho único, fantasma a vagar durante a sessão.
Um narrador-autor pontua rubricas, fragmentos e fraturas de um texto espargido pela partitura dos movimentos. Fieira de “quebras” radicam a noção de que o espectador é estimulado a construir a história sobre aquilo que o mobiliza. Ou rejeitar tal afluência, o que seria uma pena esquivar-se dos silêncios, ruídos e metáforas que encontram moradas em outros recônditos não-verbais desse campo fictício fértil em analogias.
O encaminhamento artístico é o da livre escolha, a mesma que fez a companhia estudar durante meses as obras O anti-Édipo, dos filósofos Félix Guattari e Gilles Deleuze, e Precisamos falar sobre o Kevin, do romancista norte-americano Lionel Shriver, até ser atalhada pelo noticiário de sua cidade. A realidade infiltrou-se no processo criativo que já tinha a crítica da representação em alta conta –, aliás, uma das bases aglutinadoras do Inominável desde 2008, com então graduandos da UFRJ e da UNIRIO (entre os orientadores de Sinfonia sonho estão os professores e pesquisadores Eleonora Fabião, Ronald Teixeira, Desirée Bastos e José Henrique Moreira).
Ao contrário do que pode supor o espetáculo não abandona seu interlocutor à deriva, patinando no plano das teorias. Os códigos de comunicação estão acessíveis, organizados engenhosamente na economia do espaço cênico (cadeiras, uma mancha verde expandida no tablado). Na incisão do desenho de luz sobre os inconscientes em latência. Na música incidental nada óbvia se se levar em conta o título e o desejo do menino de 9 anos que, na peça, é resoluto ao eleger essa arte como ofício, qual música interior. E principalmente no preparo técnico dos atores capazes de cumprir rigorosamente as frações de tempo e lugar sem deixar de afetar o público com os rompantes emocionais das crianças e adultos focalizados sob a condição humana.
O contraditório fica por conta da meta representação, quando o espetáculo realça o telejornalismo sensacionalista com a caricatura de uma apresentadora e uma repórter, atrizes oriundas da plateia. Os microfones em punho e o coloquialismo frouxo da própria cultura televisiva desviam demasiado da organicidade genuína exercida com sagacidade até então, passado pouco mais da metade.
Em seus desafios vencidos, que não são poucos, Sinfonia sonho é mais um exemplo recente de como os departamentos universitários de artes cênicas potencializam o teatro de pesquisa desde a sua cadeia genética, ou seja, o pensamento e a prática do artista em formação propenso e estimulado a ousar com causa, beleza e tutano. (VS)
Empatia de dois gumes
Uma das referências da mímica brasileira, prestes a completar 20 anos, o Centro Teatral e Etc e Tal, do Rio de Janeiro, mantém oito criações em repertório, entre elas No buraco (2004), prova do talento, persistência e carisma do trio Melissa Teles-Lôbo, Marcio Moura e Alvaro Assad, este também diretor e preparador da montagem exibida no último dia do Fentepp.
Os cinco números do roteiro transparecem as especificidades da linguagem que o grupo pesquisou e por meio da qual forjou identidade ao longo do tempo, aliando à pantomima, essa arte literalmente motriz na vastidão de possibilidades dramáticas de seus “textos” corporais, ingredientes do humor e do teatro propriamente dito (sem palavras!).
A caixa cênica é emoldurada por um biombo de ponta a ponta, lembrando as empanadas dos brincantes de mamulengo, expandidas. Projeções de fotogramas intercalam os quadros vivos, um recurso audiovisual bem sacado com narrativas curtas que remetem ao teatro de animação, notadamente o de sombra. Ambos são recursos que vão além do coração desse projeto: a mímica. E a redimensiona, assim como esta aqueles.
Os números mais bem-sucedidos são Parque de diversões? e Nó, nos quais o Etc e Tal desponta, paradoxalmente, menos concessivo na relação com a plateia. E o seu principal instrumento, o corpo, fala pelos cotovelos, no melhor sentido, ao contrário dos demais esquetes em que a empatia trai pela ênfase exagerada nas onomatopeias.
Como as plateias contemporâneas estão cada vez mais condescendentes na busca pela diversão ligeira a qualquer custo, No buraco termina espelhando essa gratuidade em passagens como a do número-título que abre a apresentação. Rapaz flerta com a moça que se enamora de um terceiro. A histrionice vocal concorre com o não dito, dando pouco espaço para o silêncio em que o espectador pode, ou poderia, preencher sua história.
Em Parque de diversões?, o trio se transforma em bonecos no tiro ao alvo em que as pessoas tentam derrubá-los. A excelência técnica casa com uma dramaturgia sofisticada e calibrada. A plateia fica nas mãos dos criadores, eles interagem fortemente, e ainda assim não somos “desviados” por outros apelos no preenchimento da relação.
Idem para Nó, em que o nu e a sexualidade afloram de maneira impactante ao mergulhar no baixo-ventre. Aqui, além das soluções formais caprichadas (a ilusão de planos na cenografia não esgota), o conteúdo toca em questões políticas de gênero e sociabilidade com os devidos achados humorísticos girando em torno dos órgãos genitais.
Entre o virtuosismo da mímica e o empenho em agregar outras artes, o Centro Teatral e Etc e Tal parece equilibrar-se com coerência em sua poética de forte apelo popular e permanentemente aberta ao experimento. (VS)
Talhos e retalhos poéticos entre o céu e o asfalto
O diretor José Celso Martinez Corrêa, fundador do grupo Oficina, contava 21 anos, em 1958, quando escreveu sua primeira peça, Vento forte para papagaio subir. Um canto autobiográfico à liberdade: romper com as amarras morais e familiares que lhe atravancavam em sua cidade natal, Araraquara, para descortinar outros horizontes pessoais – sorte dos milhares de espectadores que acompanhamos o teatro singular de Zé Celso até hoje.
Em Taiô, que estreou em maio na capital paulista, a Companhia do Miolo recorre à simbologia da pipa como espinha dorsal da dramaturgia e da encenação. A ode à liberdade é inequívoca nesse agrupamento dedicado a afirmar sua arte em espaço público. A cidade é tecida a partir de um mapeamento afetivo e crítico que discute noções como pertencer e deslocar-se, reivindicar e submeter-se, estar e não ser. Sua história pede poros da percepção abertos: não é simplesmente contada, mas cantada, sentida, flutuada.
O texto do também ator Jé Oliveira (o mesmo dramaturgo do Coletivo Negro que passou pelo Fentepp) rejeita a imagem idílica da pipa em céu de brigadeiro. Seu papagaio empinado é cortado, sofre um “taio” por outro desses brinquedos que, ironicamente, “disputa” espaço no céu, espelho do que também se dá no chão cotidiano.
Surgem imagens como a grita da molecada para ver quem agarra a pipa que está caindo. O prazer em desbicar e ver a rabiola tremular. O ato de descarregar a linha ou enrolá-la na lata. O baque em ser cortado como um cordão umbilical.
Esse viés lúdico de complexidade adulta, ainda que embebido na cultura infantojuvenil, guia o imaginário desses Ícaros urbanos que anseiam voar com autonomia e desenvoltura.
A diretora Renata Lemes, o quinteto de atores e toda a equipe esquadrinham poeticamente os elementos do espetáculo, atentos a que a estrutura lírica do texto não relativize a aspereza do asfalto. A lida concreta do cidadão com a cidade é ilustrada pelo transporte público, o ônibus e o metrô abarrotados de São Paulo, especificamente a rotina dos usuários das estações da linha vermelha que liga as regiões leste e oeste, mancha urbana objeto da pesquisa de campo da companhia. São cerca de 3 milhões de passageiros, ou o deslocamento de um Uruguai a cada manhã de dia útil, o que dá ideia do campo de disputa física.
Curiosamente, a primeira sessão do espetáculo no Fentepp aconteceu num final de manhã de sexta-feira, no bucólico bairro Ana Jacinta, cercado por morros e áreas verdes. No pátio externo e cimentado de um equipamento educacional e cultural chamado Praça da Juventude, era possível ouvir o canto dos pássaros e o agito do vento.
Nessa paisagem antagônica àquela evocada em Taiô foi possível verificar como o espetáculo não fica preso ao furacão da metrópole, o que seria uma contradição – não é incomum ver trabalhos que não abarcam tal flexibilidade que muitas vezes reivindicam em suas temáticas e se revelam circunscritos em outras paragens.
O maior trunfo da montagem é o caráter performativo sustentado pela qualidade de energia dos atores, duas mulheres e três homens espertos na palavra enunciada em monólogos e solilóquios, trovadores de uma narrativa que exige um corpo igualmente multipolar no contato improvisação da dança, na disparada perpendicular no meio dos espectadores, na levada hip-hop à maneira dos MCs (endosso dos caixotes grafitados no cenário de Julio Dojcsar), na manipulação de objetos para dar margem às metáforas (guarda-chuvas são convertidos em plumagem), entre outras mutações.
A música é componente seminal nessa jornada com Gabriel Longhitano a contracenar ao vivo, violão e voz, ou ainda operando a trilha para as atmosferas de dolência e persistência do enredo. O músico é coautor de algumas composições ao lado de Charles Raszl, Daniel Farias e Jé Oliveira (os dois últimos completam o elenco com Daniele Rocha, Edilaine Cardoso e Milton Aires).
Figurinos e adereços de Luiz Augusto dos Santos exibem texturas e fiapos à maneira de retalhos que fazem jus ao título da peça e se convertem nas penas dessas figuras “povo-pombo” cansadas de receber migalhas, como sintetiza a Companhia do Miolo. As poesias oral, sonora e plástica fazem de Taiô uma experiência artística de/para/com a rua de extrema riqueza em suas urgências e delicadezas. (VS)
A fome, o amor e a ferrugem
Quais seriam as fomes de Nina e Zé em 2012? A dúvida perscruta desde que os atores Aline Almeida e Antonio Junior recebem o espectador servindo tira-gosto de mortadela. E nos acompanha horas depois do espetáculo da Os Bárbaros Companhia de Teatro, de Presidente Prudente, cujo desfecho é um soco no estômago fora do lugar-comum.
Há 45 anos, Plínio Marcos trouxe à luz a moça e o rapaz recém-casados que enfrentam aluguel atrasado, ameaça de despejo, ele desempregado, ela fazendo bico de costureira. As condições subumanas são ditadas pela panela de pressão sócio-econômica do Brasil do final dos anos de 1960, com a ditadura prestes a recrudescer.
Esses traços sociológicos de época são pincelados na adaptação do grupo. A diretora Deza Costa baliza também o caráter intimista da relação, as asas do desejo desse jovem casal apaixonado que tem suas esperanças desbotadas. Afinal, a obra afunila os estilhaços da realidade para o cômodo dos incômodos de Nina e Zé (interpretados por Aline Almeida e Antonio Junior), quando nem mais a novela e o futebol lhes servem como válvula de escape. Esse beco sem saída é reforçado pela disposição do espaço cenográfico embicado no canto de uma das salas do Centro Cultural Matarazzo.
A voltagem realista dos diálogos de Plínio é amainada pelos parcos objetos e móveis, mesinha e duas cadeiras. O ambiente é iluminado por lâmpada única. O recurso de microfones, o manuseio de lanternas e a introdução de outro casal de atores em trajes sociais (Nilka Costa e Renan Fábri), eles que estavam a operar elegantemente a luz e a sonoplastia, são estratégias muito bem aplicadas e justificadas.
Trata-se de uma licença poética para abrir uma janela no meio do espetáculo e fundir os conflitos de Nina e Zé com os de Nora e Helmer no drama A casa de bonecas, do norueguês Henrik Ibsen, clássico do realismo do século 19. São dois casamentos por um fio. Nina e Nora entreolham-se na distância secular e na proximidade de homens acovardados e incapazes de contextualizar as crises em que estão enredados. Padecem de prestar satisfação à sociedade e de autoaniquilamento. Fechado parêntese, retoma-se a história de Plínio, o que não quer dizer abdicar dos desvios no modo de contar essa história.
Nina e Zé vão bem de cama, mas a vida aperta. Ele busca emprego em outra cidade, encontra vaga, mas é surpreendido pelo funcionário do departamento de pessoal da empresa que lhe pede propina. A camisa-de-força que Nina veste em seu marido (ou melhor, é a atriz Aline em ação de contrarregragem enquanto dá o texto da personagem) redunda o estado de alteridade e descontrole. Nem a anunciada gravidez da mulher impede o desfecho trágico.
Em sua capacidade de inscrever o dramático em outros patamares da cena pliniana, sem barateá-lo, a criação de Deza Costa e equipe diz a que veio com a propriedade de quem pesquisou com afinco a obra do autor. Os protagonistas Aline Almeida e Antonio Junior convencem razoavelmente como o casal, desarmados entre a representação e o contrário dela, os respiros performativos. Mais ela que ele, carecem descontaminar o espírito e o corpo de classe média contemporânea para emergir o desamparo desses seres e valorizar os delineamentos vocais e corporais afins.
É preciso ressaltar a habilidade do coletivo para enfrentar e abraçar essa criação que saúda a obra de Plínio Marcos sem peias. A atualidade está em empreender uma leitura ideológica, filosófica e estética de Quando as máquinas param em pleno movimento de ascensão da chamada classe C no Brasil, quando a “fome” perde terreno para o “consumo”, apesar dos grotões e subúrbios remanescentes onde a pobreza avilta no país.
Também são perceptíveis na montagem a mão e o pensamento do orientador Carlos Canhameiro, diretor da Companhia Les Commediens Tropicales, de São Paulo, um dos integrantes do projeto Ademar Guerra. Quando bem articulada, a ação cultural do Estado no interior paulista gera resultados flagrantes, como atestam Os Bárbaros. (VS)
Contradições em Os Três porquinhos
Com 22 anos de parceria artística, as atrizes Alexandra Golik e Carla Candiotto, cofundadoras da companhia paulistana Le Plat du Jour (o prato dia), conquistaram admiração de público e crítica pela recriação de clássicos infantis ou mesmo pelo repertório adulto. Em ambos, sempre a ênfase na pesquisa da comédia física. Dirigida pelo ator e palhaço convidado Alexandre Roit, Os três porquinhos (2003) é exemplar dessa química. Mas quem interpretou a peça nas duas apresentações em Presidente Prudente foram Flávia Bertinelli e Vivian Bertocco.
Estão lá as partituras para o desempenho calcado nas figuras de desenhos animados ou quadrinhos, nas quais a caricatura é estilizada em prol da comicidade. A versão protagonizada por Alexandra e Carla possuía uma vibração nata, quer pela coautoria da adaptação do conto de fadas dos Irmãos Grimm, quer pela larga experiência de palco da dupla. Na condição de substitutas nessa premiada montagem, Flávia e Vivian cumprem corretamente a missão e talvez resida aí o senão: o tom protocolar da apresentação.
Diante do “mar” de crianças à frente, na sessão matinal no IBC Centro de Eventos, as atrizes deixavam entrever a preocupação com a marcação de cena, o entra e sai em meio ao cenário mutante e funcional com painéis e módulos manipulados pelas próprias nas mudanças de tempo e de espaço da narrativa. A trilha musical com números em playback reforça o artifício (artifício do qual o teatro é feito, mas é tão bom quando não nos damos conta dele).
Em tese, a cenografia de Luciana Bueno, os adereços de Ivaldo de Melo, a direção de Roit e a dramaturgia adaptada concorrem todos para estimular uma performance empenhada das intérpretes em seus diversos registros e interações com o espectador. Empenho há, resta azeitar.
É deliciosamente subversivo o mote dos dois açougueiros, Pipo (interpretado por Flávia) e Pepe (por Vivian), comprometidos na busca de um porco para atender à clientela atrás desse tipo de carne que eles não têm em seu balcão, pois só vendem filés de pantufas, martelo, sapato, etc. Pipo vai à luta, ou melhor, à caça dessa mercadoria. Ele faz às vezes de Lobo Mau (espécie de Mandrake em sua capa e cartola) e viaja até o interior de Minas, na casa de tia Porpeta (a culinária e o sotaque italianos são influências explícitas), para matar um dos três porquinhos que lá vivem.
A essa altura, é possível perceber a teia de personagens em que as atrizes se desdobram, dando conta dos irmãos suínos (os três nunca estão juntos!), da tia mineira e do Lobo malvado que, numa dos momentos mais hilários, tenta se passar por Chapeuzinho Vermelho e Papai Noel no afã de entrar na casa dos porquinhos (duas de palha, as de Zezinho e Pedrinho, e uma de cimento, argamassa e tijolo, a de Federico Afonso, como foram rebatizados nesta versão. Eis a saga sorrateira compactada em menos de uma hora. (VS)
A cultura do Sacy em grande estilo
Simplesmente genial a síntese que a Companhia Teatro Lumbra de Animação, de Porto Alegre, alcança ao cruzar a tradição milenar oriental do teatro de sombra com o folclore brasileiro por meio de um dos seus principais defensores e difusores, o escritor Monteiro Lobato. Sacy Pererê – A lenda da meia-noite é o cartão de visita estreado há uma década e, pela verticalidade da pesquisa, seguirá longevo como uma das boas sacadas que o teatro para criança já produziu nos últimos tempos no país.
De cara, a tela plana perde o status centralizadora do suporte estático comumente empregado quando se fala de teatro de sombras, muitas vezes replicando a cultura do cinema. Não há molduras, e na acepção mais radical. O espetáculo pratica uma sublime transparência da caixa cênica e da maquinaria que está por trás da narrativa de imagens, músicas e poucas vozes, poucas atribuições à palavra falada no reino da representação da fantasia. Um engenho que guarda lá certa rusticidade com o material que elege, como troncos e folhagens que reforçam o vínculo com a natureza (o mato, os bichos, o pôr do sol, a teia de aranha, o fundo do mar, etc.).
Testemunhamos como o fundamento artesanal das artes cênicas é explicitado às crianças que lotaram o Teatro Municipal Procópio Ferreira. De como os atores-sombristas (é assim que eles se autodenominam) exercem ardente paciência em conversar com o público ao final da sessão, sem infantizá-lo, trazendo para a boca de cena todo o aparato utilizado para jogar lá atrás e dar vida a figuras e paisagens. É uma diálogo raro, que situa os espectadores quanto à distinção do Sacy na cultura brasileira, na grafia lobatiana, o ser de assombração mais complexo do que a televisão se encarregou de reduzir na adaptação de O sítio do pica-pau amarelo. Para não dizer da distorção genérica vinda de outro fantasma, aí sim, o da assimilação por osmose daquelas abóboras de Halloween que nada têm a ver com os rastros brasileiros.
A dramaturgia do também diretor e ator-sombrista Alexandre Fávero não teme o recorte regionalista, como alguns discursos contemporâneos gostam de pregar. E justo pela consciência das raízes, filho de um Estado, o Rio Grande do Sul, onde as tradições exercem certo orgulho, para bem e para mal, é por isso que o Teatro Lumbra consegue ser muito contemporâneo em seu hibridismo.
O enredo de Lobato é singelo e parte da oralidade popular: de como um aventureiro que sai a cavalo é surpreendido na floresta devido à aparição do Sacy, a quem esconjura, sai em sua caça, o captura e o prende numa garrafa. Só depois se saberá diante de um brincalhão. O texto pende ainda para uma bem-vinda inclinação ao sincretismo religioso. Resulta sofisticado o modo como a narrativa envolve o plateia, em sobressaltos e risos, comprovando o que o grupo afirma na abertura ao convidar “crianças corajosas e adultos curiosos” para o que viria.
Além da desconstrução da tela de pano, o ator-sombrista sai de dentro dela, dirige-se à plateia e volta para o ponto de origem mimetizado como boneco. O desenho de luz, como não poderia deixar de ser no teatro de animação, é um recurso primoroso para expandir territorialmente a sombra nas paredes laterais da sala. Em muitas ocasiões, um candeeiro, um isqueiro ou até uma vela constituem o único ponto de luz para os olhinhos de mais de duas centenas de crianças atentas.
Apesar da gritaria durante boa parte dos blecautes, o silêncio se fez presente em muitos momentos. No papo final, ao abrir para perguntas e sem apelar à lição de moral, Fávero situou as crianças quanto ao lugar do teatro e ao pacto não declarado para que uma sessão flua a contento de ambas as partes, artistas e público.
Esse Sacy Pererê encantador do Teatro Lumbra de Fávero, Roger Lisboa (ator-sombrista), Fabiana Bigarella (sonoplasta e produtora de palco), Gustavo Finkler (música), entre outros, é uma obra competente, talentosa e inspirada. Fez muito bem o Fentepp em lhe destinar sessão dupla na programação, manhã e tarde. Um deleite. (VS)
Homenagem a Elis perde o corpo para a canção
Quando os dançarinos japoneses Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata cravaram a dor do mundo em seus corpos após a Segunda Guerra Mundial e a consequente devastação atômica de Hiroshima e Nagasaki, eles não fizeram desse trauma histórico uma plataforma elementar. Semearam a dança butoh (também grafada butô, “dança das trevas”) em linhas estéticas distintas, complexas e não necessariamente uma ponte direta com as realidades histórica e social. Ao contrário, essa expressão oriental que influenciou artistas contemporâneos em vários países do Ocidente, inclusive o Brasil (Takao Kusuno, Maura Baiocchi, Emilie Sugai, Antunes Filho, etc.), é manifestada no plano amiúde da espiritualidade, banhada pelo oceano da subjetividade que consegue inscrever uma visão política sobre a existência e seu ciclo natural consumado com a morte.
Caminho diverso é trilhado pelos criadores do grupo Ogawa Butoh Center, de São Simão (SP), em Dusting powder to you, Elis. A pretexto de homenagear Elis Regina, o solo de João Butoh sufoca a intersubjetividade, o elo das consciências individuais entre o dançarino e o espectador, ao dobrar-se incondicionalmente ao cancioneiro legado pela intérprete gaúcha, uma criadora poderosa que exige muito daqueles que se dispõem a contracenar com sua arte. O espetáculo é forrado pela voz da cantora, de ponta a ponta. Uma peça literalmente radiofônica em que o play do aparelho de CD é apertado e reproduz músicas na íntegra, reiteradas corporalmente em suas letras e atmosferas.
Essa estratégia oprime a camada expressionista que o dançarino intenta projetar. Na hipótese de não haver trilha sonora, o canto noturno dos grilos do galpão do Instituto Brasileiro do Café possivelmente realçariam tal perspectiva nos silêncios. A simbologia dos seres vivos é matéria-prima dileta e milenar nas artes cênicas orientais.
Canta a voz de Elis: “Agora o braço não é mais o braço erguido num grito de gol. Agora o braço é uma linha, um traço, um rastro espelhado e brilhante…”. João Butoh ergue o braço e serpenteia suavemente as mãos. Para um canção de protesto, o dançarino cobre a boca com uma faixa de pano verde e amarela. Antes, ouvimos uma vinheta do extinto “Repórter Esso”, trechos de entrevistas de Elis ou de um pronunciamento do ex-presidente Médici, o mais violento na ditadura. Até o boneco de um corpo, que poderia dialogar com a aura orgânica do dançarino, surge como função utilitária, servindo a uma imagem de canção e logo depois reconduzido à neutralidade.
O principal problema do espetáculo em que João Butoh responde por todos os elementos de concepção, sob assessoria de Décio Sebastião Pereira Xavier, é o modo como ele se rende à conotação. A arte de Elis Regina, com sua dramaticidade singular, com seus compositores de primeira linha, não encontra no dançarino cintilações outras, conceituais, de quem a evoca no campo fértil da dança. A presença de João Butoh não transmite intensidade, é poeticamente ofuscada, refém da ilustração da música.
Soa previsível o roteiro que enumera as canções como a sugerir a crônica de uma época. O corpo fica colado a essas imagens harmônicas, rítmicas, passionais, indignadas já assimiladas pelas memórias da homenageada. Esse painel não sai do primeiro plano porque o canto em Elis é supremo, não suporta a convenção e topa o risco feito um artista de circo na corda bamba. A entrega dessa mulher é incondicional.
Dusting powder to you, Elis não transparece as vísceras por trás do pó branco em sua saudação à cantora de cores fortes que saltam aos ouvidos diante do espaço cênico, figurinos e objetos igualmente brancos. A força da canção emudece o corpo daquele que se propõe à interlocução.
foto: Fernando Martinez
Bússola sensorial
Em Ver [ ] ter, a Companhia Les Commediens Tropicales, de São Paulo, propõe um trajeto de sensações ao espectador. Sua bússola leva a ações cênicas, musicais, plásticas e audiovisuais que ocupam pátio, corredores, salas e área externa do Centro Cultural Matarazzo. O espaço institucional é subvertido pela arte pública na convergência de linguagens. O grafite desponta como uma das inspirações, sugerindo imagens fixadas em paredes e fachadas urbanas aqui decalcadas para a cena em outro suporte: o corpo. O jazz também é matricial, com seu ritmo de improvisos e misturas.
Não estamos diante de um espetáculo convencional, está claro desde o início, desde o texto da sinopse de mediação com o público. Aliás, não é um espetáculo, mas um projeto de “caráter intervencionista” sem que tampouco configure uma intervenção, uma vez que houve uma convocação para o lugar e o horário. Essa experiência do “entre” resulta sinapses raras na apropriação arquitetônica casada ao ímpeto dos atores e músicos.
Como na gangorra de duas imagens que pinçamos: uma do desejo e outra da destruição.
Na primeira, a lascívia bossa-novista das mulheres de chapéu em vestidos de praia esvoaçantes, chupando sorvete que derrete, é oferecido à lambida do espectador e respinga nos figurinos. A brisa tropical é feita de ventilador sob a lua.
Na segunda, a mulher-bomba que monta seu aparato atrás de um pórtico de vidro ao som de “Malandragem”, sucesso na voz de Cássia Eller interpretado do lado de cá por uma atriz e um saxofonista. Na escuta, a “garotinha” que pede a Deus “um pouco de malandragem”. No olhar, o cinto de explosivos ajustado ao ventre. Na outra parte desta cena, cuja visão não alcançamos, parte do público vê outra mulher sendo montada em figurino pop adolescente. E ao fundo dessa vitrine toda, lemos “bombonière”, uma placa que faz parte dos sinais indicativos do espaço cultural. Doce desilusão.
Em seus lampejos multiformes, a companhia age com desvelo sobre a dicotomia prazer e dor. A dança fundida às imagens de um espancamento. As placas com dizeres sobre sexo, celebridade e opinião. A projeção em vídeo de trechos de filmes pornôs e a correlata saturação dos sentidos na contemporaneidade. E a contrapelo do embotamento, Ver [ ] ter estimula em seu conjunto a sinestesia da arte celebrada como excitação da vida, como num musical de cinema (Cantando na chuva).
Nos deslocamentos-cardumes do público, dispersão e concentração itinerantes, nem sempre conseguimos contemplar o campo de visão. Isso às vezes impele à busca de um lugar ao sol (ou à lua, de novo) ou simplesmente reflete o prejuízo do excesso de espectadores na sessão.
Os Commediens Tropicales referendam a obra e o pensamento do grafiteiro britânico Banksy, anônimo na ativa que cunha nas ruas intervenções com críticas sociais e políticas. O grupo assina coletivamente a dramaturgia e a direção desse projeto que contou com provocações cênicas do Coletivo Bruto, da atriz e diretora Georgette Fadel (Companhia São Jorge de Variedades) e da coreógrafa e pesquisadora Andréia Yanashiro.
Quem assistiu a Penélope Vergueiro no Fentepp, dirigida pelo cofundador dos Commediens, Carlos Canhameiro, em criação paralela, pôde notar a firme disposição de avançar sobre as fronteiras artísticas (teatro, dança, performance, vídeo, música, etc.), lá se vai quase uma década de atividade.
As peças anteriores do núcleo, em palco frontal ou galpão, avançaram gradativa e consistentemente para esse território pós-dramático, mesmo em fricção com romances de Ana Miranda, Márcio de Souza e José Roberto Torero (o diretor Marcio Aurélio, professor de parte da equipe formada na Unicamp, foi interlocutor fundamental, tendo assinado algumas dessas montagens).
Em 2º d. pedro 2º (2009), releitura da história do Brasil via imperador, sob provocação cênica de Fernando Villar, já era possível vislumbrar claramente esse arranjo. Ver [ ] ter, assim, converte-se em súmula dessas pesquisas e realizações continuadas, estágio em que a poética imprime uma originalidade menos ansiosa. Como na derradeira imagem das atrizes e atores equilibrando-se sobre os trilhos ferroviários até sumirem na paisagem noturna, sob a bruma sonora do trompete e do baixo acústico aos vivos. (VS)
O faz de conta levado ao pé da teatralidade
A Companhia Dedo de Prosa, de São Paulo, carrega em seu nome o princípio universal da narração de histórias que deriva das tradições orais ou literárias e sempre encontrou no teatro um espaço cativo. O espetáculo As três mulheres sabidas (2011) tem o mérito de visitar a estrutura dos contos de fada sem abrir mão da teatralidade da qual os integrantes dessa equipe já estão habituados a lidar nas produções adultas.
Súdito, bruxa e mortais surgem e evaporam num triz sem as elucubrações e os adornos típicos das fábulas encenadas. O faz de conta é levado ao pé da letra com soluções simples, jamais simplórias.
As crianças são desafiadas (e seus imaginários dão um banho na gente grande) a percorrer três narrativas curtas que fazem pouco uso de elementos visuais. As máquinas que emitem gelo seco e bolhinhas de sabão, por exemplo, são acionadas com comedimento, cabendo à manipulação de três malas no tablado e à destreza das contadoras as bases para que o público embarque.
Para formas inteligentes, temas idem. As mulheres (e não meninas!) são camponesas, lavadeiras e uma mulher-foca. Ou seja, os personagens ora têm um pé no cotidiano braçal, ao rés do chão, ora voam nas asas da fantasia, do fantástico. A dramaturgia inspirada em contos britânicos de domínio público (dois escoceses, um irlandês) apanha o universo feminino em sua vitalidade, com seres dispostos a desbravar caminhos e não apenar seguir a reboque.
Os codiretores André Garolli e Luciana Viacava e as atrizes Dinah Feldman, Fernanda Viacava e Priscilla Herrerias conceberam passagens dialogadas e narradas tributárias do espírito lúdico e perspicazes à metamorfose do trio em cena.
O espetáculo abre com o conto O touro negro de Norroway, com o correspondente touro/duque para sapo/príncipe: a caçula entre as irmãs lavadeiras tem seu destino cruzado com o de um animal aparentemente rejeitável, mas pelo qual se afeiçoa e depois saberá que se trata de um nobre daquela província.
Em A pobretona que virou rainha, a filha convence o pai, moradores do campo, a pedir ao rei a doação de um terreno para plantio. O soberano cede a terra e acaba apaixonado pela moça graças a sua perspicácia, não exatamente pela aparência física: uma opção pelo caráter e não apenas pela beleza.
O último quadro do espetáculo, O gentil homem de Wastness, é mais introspectivo. Um homem solitário e gentil se apaixona pelas brincadeiras e pelo canto de uma mulher-foca – correspondência mais conhecida entre nós com a sereia. Ela tem sua pele surrupiada por ele, que diz agir por amor e a convence a deixar o reino das águas para se casarem. A criatura consente, por alguns anos, até que não consegue mais ficar longe do mar, recupera sua pele e retorna às origens.
O trabalho da Companhia Dedo de Prosa reflete que os seus processos são consequentes dentro da prática e do pensamento do teatro de pesquisa. Com o adendo de valorizar a narração de história em seus procedimentos técnicos e em sua cultura humanista.
Essa produção representativa do segmento de núcleos dos mais ousados da cena paulistana para crianças foi parcialmente prejudicada no galpão do Instituto Brasileiro do Café. Na sessão das 14h, a luz solar que transpassa o teto e as janelas laterais impediram que o desenho de iluminação original fosse configurado, prejudicando noções de espacialidades e temporalidades. A bela arquitetura, propícia a aventuras de maior fôlego nas artes cênicas locais, como as apresentações noturnas reiteram, deveria acolher artistas e público (sobretudo crianças) com mais cuidado nesse aspecto, ponderando-se ainda a ausência de ar-condicionado e o calor interno acentuado pela sabida característica do horário. (VS)
Uma obra aberta e de peito aberto
Há pouco mais de quatro décadas, uma cena de trânsito inspirou Nelson Rodrigues a escrever O beijo no asfalto. Na vida como ela é, um jornalista veterano foi atropelado por um ônibus no centro do Rio de Janeiro. Um jovem o acorreu. Ao perceber a baforada da morte, a vítima rogou um beijo ao desconhecido, quem sabe um providencial boca a boca para evitar o último suspiro. O dramaturgo explorou ficcionalmente esse episódio e pôs uma lente de aumento sobre o sensacionalismo da imprensa e a homofobia explícita na sociedade.
Nas mãos do ator, diretor e dramaturgo Carlos Canhameiro, de São Paulo, O beijo no asfalto do século 21 seria coalhado de outros desvios para além da arquitetura textual, dramática. É o que acontece em Penélope Vergueiro, espetáculo de sua lavra que aborda uma briga de trânsito passional, na madrugada da metrópole paulistana, sob ângulos performativos que relativizam a representação e instauram um aqui e agora de emergências, suspenses e estranhamentos para transcender a superfície do conteúdo tentado à estereotipia.
Mulher segue o carro do marido que está acompanhado da amante. Quando param num semáforo, ela colide uma, duas, três vezes com a traseira do veículo. O motorista desce, vai até o carro de trás, arranca a mulher pelos cabelos, a espanca. Enquanto isso, a amante abre a porta do passageiro, no carro da frente, vai a um orelhão e some. Eis o resumo do episódio que teve testemunhos na madrugada, pouco depois da 1h, mas ninguém interveio, até a chegada da polícia. O marido também debandou antes, restando à mulher que causou danos matérias as feridas sentimentais e físicas.
Esse miolo realista é desprezado na criação de 2011 que deu à luz a Penélope Companhia de Teatro. O espetáculo cava a condição humana do abandono e da humilhação através dessa figura transgressora triplicada na presença das atrizes-criadoras Erika Coracini, Paula Carrara e Rimenna Procópio. Transgressora em ruminação, submissa, anti-heroína, dependente amorosa, tanto faz, não está em questão condescender para com a vítima ou pichar o agressor. O contraditório está no desejo e seus rumores mais complexos do que supõe a manchete de jornal em letras garrafais.
O título comunga o mito grego da mulher que não esmorece ao aguardar por mais de vinte anos a volta do marido, o herói Ulisses, ocupado com a Guerra de Troia. Penélope dribla a pressão do pai para casar-se com outro. Chovem pretendentes, mas ela acena que só o fará quando terminar de tecer uma tela que sabiamente nunca fica pronta. É essa febre atávica que move a protagonista que fechou o trânsito numa esquina da Rua Vergueiro, nas proximidades do Centro Cultural São Paulo.
A cena plasma a construção e o desmanche de imagens. São elas, as plasticidades despojadas e cirúrgicas, que narram e inscrevem as sensações e pensamentos nos corpos desejados e desejantes. A traição não é motor único. A mulher-coisa, corpórea ou incorpórea, dança na arena feito um vulto. Despe seus segredos de batedeira, manifesta seu ódio ao determinismo falocrático, reconhece suas fragilidades vulcânicas.
Na abertura, Penélope/Erika/Paula/Rimenna está de mal com o mundo. Chega de agradar! Espectador, entre, sinta-se desconfortável. A cadeira também é uma convenção, vamos retardá-la. Por enquanto, mire-se no exemplo dessa mulher de Atena antenada nas agruras do afeto contemporâneo, do massacre da beleza por meio da propaganda faz tempo nada subliminar, aplicadas diretamente nas têmporas.
Penélope Vergueiro aflora, de modo transversal, o antidiscurso feminista de protestos globais sob repressão, como o do coletivo Femen, disseminado por jovens ucranianas, e o das cantoras russas da banda Pussy Riot, julgadas e presas por causa de uma canção punk. As ações da peça falam mais por si do que seus fundamentos. Desfilam frames como o da escova de cabelo tornada microfone. Do abraço fraterno em homens da plateia (não estamos numa peleja de gênero) que lhes entregam camisas cênicas para vestir a nudez ou a seminudez. Da catalogação dos amantes em suas cuecas cultuadas com o mesmo fetiche da lingerie. Do besuntar de preconceitos sobre o corpo da mulher de calcinhas que bate as gemas de ovos sob a nuvem de farinha de trigo e tem a seus pés dezenas de pintinhos mecânicos.
Nessa obra aberta e de peito aberto, o pensamento corporal (concepção da coreógrafa e pesquisadora Andréia Yonashiro) e o desenho de luz (por Daniel Gonzalez) são colaborações decisivas para compor a figura sombria em seus passos de paixão, demolição e compaixão (consigo). Cúmplice nessa jornada, o público é provocado a exercer um olhar periscópio sobre a espécie e os interstícios do verbo amar.
PS: Carlos Canhameiro é cofundador da Companhia Les Commediens Tropicales, que apresenta hoje no Fentepp a intervenção Ver [ ] ter e parte de sua equipe integra a criação de Penélope Vergueiro. (VS)
A qualidade e o lugar da presença
Um grupo que saúda na mesma noite Abdias do Nascimento e Timochenco Wehbi já diz a que veio sobre os assentamentos históricos e sociais da arte que abraça. Nascimento foi cofundador do Teatro Experimental do Negro (TPN), projeto artístico pioneiro realizado no Rio de Janeiro entre 1944 e 1961, com reflexos em muitos pontos do país. Já a dramaturgia do prudentino Wehbi, sociólogo cuja densidade das peças não ofusca uma poética libertária via imaginário, caso de Palhaços. Pois o Coletivo Negro, de Mauá, na Grande São Paulo, evoca a causa antirracista como coração do texto enquanto agrega ao corpo em cena/da cena procedimentos de uma intervenção plena em plasticidades e sonoridades.
Na espiral de tempo de Movimento número 1: O silêncio de depois…, o presente, o passado e o futuro são embaralhados em narrativa conduzida por uma voz ancestral africana, pela atriz Thais Dias, também ela uma “Antiga”, como se diz na peça em relação de respeito aos antepassados. A criação vigorosa alinha manifestações do canto, da palavra e da dança, aos quais valeria acrescentar o olhar magnetizante. A dramaturgia concebida coletivamente, sob texto final de Jé Oliveira, costura os percursos biográficos de uma mulher e dois homens. Esses três cidadãos foram extraídos de seu território de origem, em suma, por fatores como a truculência de agentes públicos, a ilusão amorosa e a falácia economicista do progresso – leia-se especulação do mercado imobiliário.
Alternam-se os planos ficcionais e documentais. Um filho rememora a consciência crítica do pai, uma das lideranças resistentes da comunidade (pelo ator Jefferson Matias). Cansada da relação corpo-objeto, uma mulher se enamora de um estrangeiro e vai experimentar ser ela mesma, na pele e na alma, em outro país (por Aysha Nascimento). Um terceiro rapaz conta como a liberdade de soltar pipas na infância foi ceifada pela ação violenta de uma desocupação (por Raphael Garcia).
Suas histórias são literalmente atravessadas, vez ou outra, pelos solavancos do trem que desliza pelos dormentes e faz menção a uma área desapropriada que virou estrada de ferro e provocou a remoção de muitas famílias.
Os atores desses fragmentos biográficos deixam transparecer o fio do tempo por meio da gestualidade, dos adereços, objetos e figurinos. Os espectadores estão postados rente à cena, numa arena adepta da tradição oral africana de narrar e transmitir saberes ao pé do ouvido. Na apresentação no Sesc Thermas, esse vínculo intimista foi ampliado para arquibancadas complementares e o elenco deu conta de manter a ligação.
O espaço cenográfico envolve bancos de madeira e três nichos/oratórios dos respectivos personagens, demarcados por luzes azul, vermelha e branca (por Julio Dojcsar>casadalapa e Wagner Antônio). A música ao vivo flui como coadjuvante e protagonista nas pulsações rítmicas e ritualísticas (cordas e percussão por Fernanda Camilo e Kauê Palazolli).
São poucos, mas sobressalentes, os momentos em que as falas pendem para o discurso de vitimização, desequilibrando uma obra ademais bem sustentada em seu conjunto em termos de incisão e delicadeza. A fala-manifesto indignada soa mensagem encerrada em si. Não interpõe, constata. Diferente dos demais aspectos formais do espetáculo, a começar pela qualidade da presença dos atores.
Natural a veemência do discurso nessa que é a primeira montagem do Coletivo Negro (daí o Movimento Número 1 do título). O trabalho dialoga com outros pares da produção brasileira que possivelmente também transbordaram no tom de manifesto na largada e, aos poucos, foram alargando os horizontes de elaboração, resultando artisticamente mais categóricos. Citamos o núcleo baiano Bando do Teatro Olodum, com o recente Bença. E os paulistas Clariô, com Hospital da Gente; Os Crespos, com Ensaio sobre Carolina; Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, com Orfeu Mestiço – Uma Hip-Hópera Brasileira; entre outros.
O Coletivo Negro já usufrui clareza quanto ao lugar da arte do qual fala, toca e deseja ser ouvido. E traz em seu ventre a percepção essencial de que a indignação pode ser comunicada por meio de outros silêncios, sonoridades e respiros, calando fundo e resistindo à pulverização das utopias. (VS)
A derrisão crítica dos palhaços esfarrapados
É da natureza do espetáculo de rua impregnar-se da realidade que o circunda. Vide a potencialidade das interferências de passantes, “moradores”, cães, sombra, sol, chuva, etc. E quando a ficção do teatro penetra fortemente o real do centro urbano? Em Júlia, o grupo catarinense Cirquinho do Revirado representa a história de dois artistas de picadeiro desprovidos de sua casa, a lona que pegou fogo, mas esse mote vira pano de fundo diante do flagelo de quem sobrevive nas ruas da cidade.
Os corpos sujos (ou seriam esfumaçados?), as roupas molambentas, a condição de aleijada da personagem-título, sem as duas pernas, e as presepadas de seu companheiro e assistente Palheta, corruptela de palhaço que é, enfim, são alguns indícios do pacote de significações que ganham outros nexos no semicírculo que ocupa o calçadão. O espectador é como que corrompido pela livre associação com os conflitos do espaço público na sociedade brasileira, como a execução de mendigos, a disseminação das cracolândias e a repressão aos artistas de rua dentro do processo de higienização como o perpetrado contra cortiços de São Paulo no início do século 20 em nome da urbanização, prima da segregação que ainda viceja.
A abordagem sociológica que realçamos diante de um espetáculo francamente popular em seus códigos, a começar pela remissão ao circo, corresponde à qualidade da proposta artística do núcleo de Criciúma. A dupla Reveraldo Joaquim e Yonara Marques (quem os batizou assim foram visionários!) redimensionam o caráter mais cruel dos palhaços sem repisar a interação autoritária da qual alguns dos seus pares se revestem. O lirismo e a contundência crítica estão superpostos no mural de imagens que o espetáculo suscita na praça aberta. Gags, corpos, língua inventada, figurinos esfarrapados, carroça estrambólica, são muitos os recursos operados com domínio de timming na troca com a roda. Os atores-jogadores são metamorfoses ambulantes dotadas de muita energia e coragem para lidar com tais conteúdos, radares sócio-espaciais captando os mínimos detalhes no raio de 360 graus.
Na medida em que Júlia e Palheta evoluem para o número em que ela vai dançar – “a dança da aleijada!”, propaga ele, alfinetando o politicamente correto –, a alegoria desses corpos disformes e desagradáveis, seus penduricalhos içados do lixão, sua descartabilidade repugnante, essas percepções vão sendo assimiladas pelo público sem repugnância, tal um exercício de distanciamento em que a consciência crítica pode transitar em paralelo com o humor desbragado e cujo poder de corrosão pode superar a retórica, por que não?
Conhecido de criações com a Companhia Carona de Teatro, de Blumenau (SC), que inclusive integra o Fentepp com outra montagem de rua, Passarópolis, o diretor Pepe Sedrez respeita a reinação dos comediantes e parece dosar com eles essa capacidade de falar sobre o não dito, de abrir frestas para que o espectador entreleia seus próprios sentidos como aqueles que compartilhamos nestas linhas.
Sob o ponto de vista da linguagem, é sensacional a virada que a dramaturgia do catarinense Gregory Haertel dá quando o desfecho se aproxima e as convenções da representação são implodidas de vez. Ao “revelar” as razões que o movem enquanto artistas de circo, a trupe dessa história faz jus ao nome do grupo que lhe dá vida, o Revirado. O espetáculo reafirma a criticidade como manifestação de cidadania, semeando a discórdia para que cada um dos seus interlocutores leve para casa a reflexão que rima com diversão sem que uma exclua a outra. A alienação que poderia ser suscitada na fuleiragem desses desvalidos é devolvida feito um bumerangue. (VS)
Evocação ao jovem Tennessee Williams
O espetáculo Alguns blues do Tennessee abre ao espectador de hoje uma janela para o período de formação do norte-americano Tennessee Williams (1911-83), pseudônimo de Thomas Lanier Williams. Conferir a encenação de algumas das peças curtas escritas quando à beira e a bordo dos 30 anos, pouco antes de trazer à luz textos que o consagrariam definitivamente, como À margem da vida e Um bonde chamado desejo, é constatar como o autor já emanava estilo e densidade no modo de apreender o humano.
Essa dramaturgia em latência é evocada justamente pela ala jovem do Grupo Tapa, 33 anos de trajetória. A excelência artística do núcleo de São Paulo vem conjugada pela escolha dos textos do repertório, pela qualidade do trabalho de ator e pela austeridade da encenação, aqui coassinada por Brian Penido Ross e Eduardo Tolentino.
Forjada historicamente na esteira da Grande Depressão nos Estados Unidos e às vésperas da Segunda Guerra Mundial, as três peças colhidas pelo Tapa no ano passado, quando do centenário de nascimento do autor, refletem seres à deriva para além da moldura de época. As dilacerações são íntimas, universais, atemporais. Três histórias breves para uma partitura do abandono ou o alheamento como música interior.
A velha imigrante italiana que dissimula entrevistada por uma assistente social para falar da filha reclusa em O quarto escuro. A decomposição dos laços entre mãe e filho após a separação do pai, emergindo a esquizofrenia dela sob o testemunho intrépido da criada da família em Verão no lago. E a sublimação do ato criativo por meio da projeção ficcional da cabeça de um escritor habitada por uma pensionista prostituta que mais uma vez tenta protelar o pagamento do aluguel à dona em A dama da loção antipiolho.
Rita Giovanna interpreta três papéis catalisadores pela empatia e aos quais empresta singularidades na composição de cada um: o desvario da mãe italiana, a perspicácia da empregada e a capitulação da beligerante dona da pensão. Em seu percurso tripartido a atriz sintoniza diretamente com o público, equilibrando comicidade sutil e agudeza de espírito.
Do mesmo modo é possível apreciar a palheta de Conrado Sardinha a contrastar o desespero do filho diante da mãe disfuncional (a cena de seu afogamento oculto que enxergamos por meio da expressão do rosto da criada é das mais belas da montagem) e a perseverança do ofício do escritor a quem Williams batiza Tchékhov, em homenagem ao autor russo, no enredo defensor da excêntrica pensionista que se diz rica e dona de terras ao tentar dobrar a proprietária sobre sua dívida.
Kadi Moreno, como a mãe à margem, e Isabella Lemos, como a prostituta que se faz doidivanas, também estão seguras em suas participações, denotando como se apropriam do projeto, sendo ambas cotradutoras das peças ao lado de Rita, cabendo a revisão final à pesquisadora Maria Sílvia Betti.
Como de praxe nas criações do Tapa, Tolentino e Penido Ross (este um intérprete empenhado na pedagogia do ator) valorizam a clareza na enunciação e na ação. Não há sobras no gesto ou no movimento, inclusive com intérpretes fazendo às vezes de contrarregra no espaço cênico que flui multiforme com poucos móveis e ao sabor do ritmo das três peças. A atmosfera subjacente é a dos silêncios, dos tempos estendidos ao vazio existencial, apesar do alívio cômico em certas passagens. O espetáculo ergue plataforma propícia às variações dessas vidas aparentemente desconexas e de fato cortantes feito o sentimento de um blues.
PS: O silêncio concentrado da plateia no blecaute de uns 40 segundos antes da cena ser iluminada, na noite da abertura do Fentepp, ao contrário da excitação festiva que costuma caracterizar essas ocasiões com a presença de autoridades e afins, diz muito sobre a consciência do espectador, sobretudo o espectador comum de Presidente Prudente no âmbito da 19ª edição do principal evento de artes cênicas da cidade do oeste paulista. (VS)
O papel do Fentepp na formação do espectador crítico
Presidente Prudente convive desde meados da década de 1980 com um festival responsável por semear a cultura das artes cênicas na cidade. O bom público que lotou as sessões das peças adultas nesta 19ª edição do Fentepp, que acabou domingo, corresponde a esse imaginário. Os cidadãos se preparam para esses dias em que acontecem de duas a quatro sessões em palcos, galpões, calçadões e campi universitários, inclusive aquelas voltadas para crianças e adolescentes de escolas ou entidades afins. No entanto, é chegada a hora, e a 20ª edição em 2013 parece oportuna, de pensar quem é o espectador do festival e instigar a formação do seu olhar crítico para a cena.
Os organizadores mantêm nos últimos anos a dobradinha de jornalistas ou pesquisadores na recepção crítica aos espetáculos, publicando as análises no site do evento ou distribuindo-as impressas na entrada dos teatros, substituindo assim o papel da imprensa local que põe para escanteio o jornalismo cultural e, com isso, jogo a última pá de cal no campo da reflexão. Pois não é hora de pensar a recepção no campo do espectador?
Em A pedagogia do espectador (editora Hucitec, 2003), o professor e pesquisador Flávio Desgranges , da USP, lança luzes sobre como o público pode ser estimulado à consciência crítica diante da experiência viva de um espetáculo. Faria bem ao Fentepp empreender atividades educativas em torno do espectador (educativas pela natureza do ato de fruir arte, eis o exercício de sensibilizar).
Nesses nove dias e 25 espetáculos, a nossa sensação é de que a plateia tem sido passiva, subserviente a tudo que assiste. O aplauso efusivo e indiscriminado. Teatro como entretenimento, e ponto. A verdade é que tal comportamento se reproduz em todo o país, e haveríamos de praticar a digressão por muitas páginas para especular sobre as razões talvez autóctones da cordialidade.
Mas um festival pode incitar, sobretudo com a tradição que o Fentepp usufrui. Para se ter ideia desse tipo de iniciativa, festivais internacionais em Buenos Aires e Santiago costumam realizar atividades que promovam na manhã seguinte à exibição da peça o encontro direto do espectador com criadores e especialistas, as chamadas “Escuela de Espectadores”.
O desafio é ativar o gosto do espectador pelos meandros do fazer artístico, cultivando assim a criticidade inerente.
Quanto ao festival que termina, a programação elencou obras consistentes em termos de linguagens, contemplando gêneros, espaços e públicos a contento. Talvez uns 20% da programação tenha decepcionado em suas concepções e assuntos, margem de erro, digamos, considerável entre os anunciados 220 inscritos de 19 estados. A curadoria arriscou-se a pinçar núcleos, dramaturgos, diretores e atores das novas gerações e colheu espetáculos ousados que já dariam pano para manga numa roda de espectadores contagiados por essas veredas poéticas provocadoras.
Em termos de infraestrutura, as sessões matutinas e vespertinas para crianças no IBC Centro de Eventos deixaram a desejar e contribuíram involuntariamente para desconfigurar espetáculos pelo vazamento da luz solar, pelas condições acústicas e cenotécnicas inadequadas, deformando justamente o olhar do público de primeira viagem para a arte do teatro nessas instalações. (VS)
(O jornalista viajou a convite da organização do 19º Fentepp)
17.3.2012 | por Valmir Santos
No final da peça Nossa cidade, do norte-americano Thornton Wilder (1897-1975), um homem já morto compartilha com uma mulher – cujo coração também parou de bater e o fluxo inconsciente da dramaturgia a faz retornar ao aniversário de 12 anos – o aprendizado de que existir é “mover-se dentro de uma nuvem de ignorância”. O texto que Antunes Filho prevê montar este ano, no marco das três décadas do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, possui conteúdos e estruturas correlacionados à essencialidade que o criador defende para o trabalho de ator e a cena que o envolve. “O ator tem que ser também um intelectual”, diz. A obra inspira o diretor a criticar a ascendência da cultura de massa no país e, enquanto cidadão, a perceber com ceticismo o crescimento econômico para o qual sobra “orgia” e falta realidade. Leia mais
18.9.2011 | por Valmir Santos
“O homem não teme nada quando ri!”
Púchkin
Por Valmir Santos
Na falta de tramas palacianas matriciais na sua literatura dramática – à maneira de um Shakespeare, por exemplo –, cabe ao teatro brasileiro vasculhar o chão da senzala, os cômodos da casa-grande, os corredores e os gabinetes da administração para colocar o poder em xeque diante dos ritos e vícios públicos e privados. Afinal, nossa modernidade nos palcos conta pouco mais de 60 anos, um piscar de olhos se comparada às tradições seculares das artes cênicas em certos cantos do mundo. Leia mais
17.9.2011 | por Valmir Santos
Em nova temporada no Teatro Augusta, em São Paulo, a peça mais recente do dramaturgo Samir Yazbek traz a percepção do quanto ele vem lapidando o ofício de diretor, uma conjugação cada vez mais comum nos dias atuais. A cena sintetiza a força do texto sobre as memórias revolvidas de uma família de imigrantes libaneses, tudo a ver com a ascendência do autor.
A sagração ou questionamento aos símbolos paternos são esparsos, mas significativo na sua trajetória. Em As folhas do cedro, o dramaturgo nascido e criado em São Paulo compõe uma geografia afetiva do passado para sublinhar o presente. E o faz desde o coração da Amazônia brasileira, roçando a história do país no limiar dos anos 1970.
O ponto de vista nuclear é o da escritora que remonta à barriga da mãe, 40 anos atrás, e imagina o contexto em que se deu a separação. Ela não conviveu com o pai. O comerciante deixou mulher e filhos na cidade grande. Rumou para o norte do país para sonhar a construção da rodovia Transamazônica e se deixou encantar pela floresta e pela sua gente.
Uma das virtudes do texto é a estrutura polissêmica, a lembrar a poesia e a vida dos heterônimos de Fernando Pessoa na premiada montagem de O fingidor (1999), a peça que projetou Yazbek – ele já era diretor também. A voz da escritora – seu alterego – abre passagens no tempo e no espaço aos demais personagens. A jornada mítica inclui um engenheiro, por Douglas Simon, consciente da ditadura militar e dos obstáculos à rodovia que atravessaria vários estados, assim como a narradora ao enredo. Uma indígena, por Mariza Virgolino, de quem o desbravador se enamora. E uma gerente de hotel, por Rafaella Puopolo, vinda da Alemanha. Há ainda a terna presença de uma menina, por Marina Flores, sentada à margem da arena e cuja placidez no rosto e no olhar irradia a criança que já foram um dia a filha, a mãe e seus laços com a cultura árabe.
Mas é no tripé familiar pai/mãe/filha que as atuações se sobressaem. Helio Cicero, Daniela Duarte e Gabriela Flores, respectivamente, conduzem o espectador nessa viagem com a espiritualidade que o teatro pode alcançar com sofisticação. Isso pode ser tributado, em parte, à preparação de ator de Antônio Januzelli, o pedagogo que investiga estados corporais.
Com a equidistância que a realidade biográfica e a ficção concedem às artes, Yazbek percebe o próprio texto por meio de outras lentes e ouvidos da equipe, parte dela parceira antiga, anterior ao nascimento da Companhia Teatral Arnesto nos Convidou, em 2007.
Leia aqui a crítica publicada na revista Bravo!, bem como o serviço da temporada que vai até 29 de setembro.
(17 de setembro de 2011)
1.9.2011 | por Valmir Santos
Por Valmir Santos
Três dias em Salvador, quatro espetáculos. Assim como não dá para generalizar o Teatro Brasileiro a partir do que é produzido somente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, um roçar de fim de semana pela capital está longe de medir a temperatura do teatro baiano atual. Mas a brevidade, felizmente, nos permitiu aferir discursos temáticos e estéticos bem defendidos por criadores de gerações e estilos variados, cuja maioria desconhecia.
Em sua primeira edição, o Bahia em Cena – Festival de Teatro Baiano atravessou agosto apresentando oito espetáculos em curta temporada, de sábado a domingo. O evento permitiu conhecer a perspectiva brechtiana do diretor Luiz Marfuz, de quem sempre ouvi falar e nunca tive contato. Deparar com a irrequietude do diretor e dramaturgo Gil Vicente Tavares à frente do Grupo Teatro Nu. Reencontrar Fernando Guerreiro em movimento oposto à comicidade esparramada pela qual ficou conhecido nas temporadas paulistas da Companhia Baiana de Patifaria, nos anos 1990 (A bofetada). E descobrir a arte da animação que a argentina Olga Gómez pesquisa há anos na cidade onde está radicada, contemplando todas as idades.
O festival recebeu 48 inscrições, das quais foram selecionadas 11. Integraram a comissão mista os professores e diretores Paulo Dourado e Deolindo Checcucci, além do curador artístico do Vivo EnCena, Expedito Araújo. Foram selecionadas ainda as montagens de Os sonhos de Segismundo, texto de Tiago Chaves e Luis Alberto Alonso, também diretor da Companhia Oco Teatro Laboratório; de Sebastião, texto, direção e atuação de Fábio Vidal; de Uma vez nada mais: a comédia muda que vai dar o que falar, concepção das atrizes Aícha Marques e Maria Menezes e da diretora Hebe Alves, da Companhia A4; e de O melhor do homem, dramaturgia da norte-americana Carlota Zimmerman com atuação de Duda Woyda e André Carvalho, dirigidos por Djalma Thürler.
Ainda como extensão do festival, três espetáculos vão circular por Fortaleza (Sargento Getúlio, de Tavares, dias 1º e 2 de setembro, às 18h30, no Centro Cultural Banco do Nordeste); Rio de Janeiro (Pólvora e poesia, de Guerreiro, de 19 a 21 de setembro, às 21h, no Teatro Poeira); e São Paulo (O melhor do homem , de Thûrler, dia 15 de outubro, às 21h, e 16 de outubro, às 19h, no Teatro Vivo).
A seguir, comento as produções das quais fui espectador.
O jornalista viajou a convite da organização do Bahia em Cena – Festival Baiano de Teatro, realizado de 8 a 28 de agosto em Salvador.
AS VELHAS
É a primeira vez que deparo com a encenação de uma obra da potiguar Lourdes Ramalho, de 88 anos, radicada em Campina Grande (PB). Esse encontro nos fez alcançar, num sebo paulistano, a coletânea Teatro nordestino, que inclui a peça em questão e outras quatro da mesma lavra. As velhas (1975) corresponde a um clássico da dramaturgia brasileira de extração nordestina, uma drama rente à cultura popular e em simétrica contundência com os escritos do paulista Jorge Andrade, para fazer uma aproximação ao sudeste. Há coronéis de latifúndios na estiagem, em Ramalho, ainda que proscritos na cena, assim como os há na plantação, em Andrade, explícitos na correlação de poder.
A autora bebe em fontes da literatura, sobretudo o cordel, e reinventa suas próprias referências de imaginários e realidades entre os sertões do Rio Grande do Norte e da Paraíba, onde passou boa parte da vida. Reelabora diálogos agudos sobre a carestia e a manipulação das autoridades locais sobre a população empobrecida. Colocados em primeiro plano, esses senhores e senhoras exibem um mínimo de consciência crítica sobre a condição de explorados. Brandem neologismos como se a língua fosse uma arma afiada. Reagem aos desmandos de fazendeiros e capatazes, estes que jamais aparecem em cena.
O diretor Luiz Marfuz realça os conteúdos político e sociológico da obra sem aprisioná-la a um manifesto de época. Antes, entrelê em Ramalho a força mítica de uma história que é atemporal em seus contornos trágicos. Mais de três décadas depois, a saga de Mariana e os dois filhos – uma família sem teto e sem terra que improvisa moradia na base de uma árvore – ainda diz muito sobre as fraturas rurais e urbanas do Brasil.
Chicó, o primogênito, articula-se com trabalhadores para denunciar o desvio, pelos políticos, de mantimentos que o governo enviara aos flagelados da seca. A esse cenário de fundo, tomado por corrupção e luta de classes, a dramaturga conduz habilmente o plano mítico que antagoniza os passados de Mariana (interpretada por Cláudia di Moura) e Vina (por Andréa Elia). A rusga é o marido de uma que foi amante da outra, e eis que os filhos de ambas estão enamorados.
Marfuz desenha dialeticamente a luz e o espaço cênico para contrastar a narrativa do que transcorre na ação e nas lembranças ou visões. Há um tonalidade esmaecido no chão batido, um vermelhão feito um giz caucasiano que atravessa figurinos e os poucos objetos. Há uma aridez no ambiente que também é a das almas que ali transitam. “O tempo está com cara de herege”, ouve-se de um dos personagens como antevisão.
Espinheiros, safados, miseráveis, os papéis gestados por Lourdes Ramalho não são de uma face só. Cláudia di Moura é uma atriz que convence essas nuances desde a mirada, bem acompanhada por um diretor com profundo conhecimento do texto e das potencialidades ou limitações de cada intérprete (são seis ao todo). A despeito da conformação espacial circular tão evidente na cena, adaptá-la à frontalidade do palco italiano é uma opção que coloca o projeto em desvantagem. Mesmo que tenhamos pinçado tais qualidades, elas se insinuam inegavelmente mais impactantes se levadas a uma arena efetiva, como pede a própria noção de eterno retorno entranhada no texto.
O PÁSSARO DO SOL
Dedicado exclusivamente ao teatro de animação desde que veio à luz, em 1997, o núcleo A Roda Teatro de Bonecos mergulha pela primeira vez no desafio das formas de sombras tão pouco visitadas na produção brasileira contemporânea. A plateia de crianças e adultos se deixa levar incandescente pela manipulação oculta de objetos em contraluz. Desenrola-se um mundo à parte atrás da tela. Figuras recortadas em couro e uma miríade de matizes superpõem os planos coloridos ou em preto e branco, à frente e ao fundo, transmitindo à retina do espectador a ilusão de movimento. A narração em off e a música são recursos de apoio à fruição da história adaptada do livro de mesmo nome da escritora Myriam Franga e ilustrado pela escultora Olga Gómez, também ela diretora de O pássaro do sol e cofundadora do grupo.
Trata-se de uma versão da mitologia da busca do fogo no céu para a evolução da humanidade. A perspectiva é da cultura indígena e da não grega, como é mais propagada entre nós, inclusive nos palcos, por meio da jornada de Prometeu. De acordo com a lenda, quem ousa aventurar-se por sete dias na via láctea e trazer a chama é o pássaro Japú, arcando com as consequências do seu ato heróico.
Mantido no anonimato em favor de toda a engrenagem de animação, o quarteto Fabio Pinheiro, Maíra Valente, Isabela Trigo e Rafael Rolim é tecnicamente exímio enquanto atores-manipuladores. Conquista realmente o interlocutor com a magia da transposição de personagens, lugares e tempos ao operar de maneira cirúrgica todo o mecanismo rudimentar, artesanal, com apuro de lembrar a projeção cinematográfica, a sofisticação dos efeitos tecnológicos em suportes audiovisuais.
E outro elemento chave na criação do núcleo A Roda é a música concebida, dirigida e executada por Uibit Smetak, filho do compositor, professor e pesquisador Walter Smetak (1913-1968), suíço naturalizado brasileiro que influenciou os tropicalistas. Na peça, as bases sinfônicas, percussivas e de cantos corais, embrionários das tribos tradicionais guarani, esbanjam identidade e coroam as imagens para tornar a imersão ainda mais singular.
Tamanha determinação em descortinar a proposta dessa forma animada específica e até então não manejada pelo grupo parece ter levado Olga Gómez e parceiros a descuidar daquilo que se imagina mão na luva para os seus integrantes: os bonecos. São eles que dão o ar da graça no prólogo e no desfecho do voo metalingüístico, a circularidade da história dentro da outra. Mas os manipuladores surgem na boca de cena com suas energias dispersas, quem sabe, pela preocupação com a etapa de sombras que consome boa parte da apresentação. Como os corpos humanos estão à mostra, contracenando com os seres de madeira, não é difícil notar certo automatismo, uma sensibilidade tarefeira e não de entrega artística incondicional nesses momentos-chave. Ainda bem que ambas as passagens são breves e a ação cênica tem na tela o seu principal território para desfilar os jogos de contraluzes no céu, no mar e na terra imaginários. Translúcidos.
PÓLVORA E POESIA
O hiato de uma década entre as montagens de Márcio Aurelio e Fernando Guerreiro para Pólvora e poesia, de Alcides Nogueira, respectivamente em São Paulo e Salvador, vem convergir de modo visceral o homoerotismo dos poetas franceses cujas criações e pensamentos são colocados em relevo. A antinomia tradição/ruptura não ofusca a condição amorosa de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud. Seus corpos apaixonados, literalmente em atrito, espelham as diferenças de estilo, de classe social, de ideologia, de idade, enfim, as variantes desses planetas alinhados e depois em rota de colisão.
Guerreiro contrabalança a carne ao espírito. A intensidade física das atuações de Caio Rodrigo (Verlaine) e Talis Castro (Rimbaud) é proporcional ao peso das idéias em fricção. A encenação delineia bem o confronto formal que o texto estabelece entre as escolas em voga na Europa do final do século XIX, a arte condicionada às rédeas burguesas ou libertária na esteira da modernidade. Há uma moral também contrastada: o bem-sucedido intelectual, casado, apaixonado pelo adolescente sem peia, o ímpeto juvenil desestabilizador das regras e etiquetas.
O diretor cava fundo na dramaturgia de Nogueira a textura corpórea para dizer a que veio. Dessacraliza os poetas por meio do tato. Toca a contemporaneidade sob o teto de um templo secular outrora religioso e tomado pela cultura, a Igreja da Nossa Senhora da Barroquinha, construída no século 18. Redimensiona a arte tão particular dessa amizade que irrompe violenta, em todos os sentidos.
A concepção cenográfica de Rodrigo Frota materializa o desequilíbrio e a suspensão dos protagonistas. Nos primeiros minutos do espetáculo, uma plataforma de madeira a cerca de um metro do piso surge como epicentro, mas logo é fraturada ao meio. A digressão sentimental e ideológica é travada quase o tempo todo ali. No desequilíbrio exasperante dos passos imberbes e veteranos. Aclives e declives nos quais a horizontalidade só se instaura, ao menos simbolicamente, quando no atraque dos corpos.A cena de sexo é pungente.
Ambientada no interior da igreja histórica, átrio de paredes rústicas, a montagem tem seu espaço cenográfico central naturalmente expandido. Os atores descem e transitam em volta dessa plataforma pelo vão até o espectador que a envolve nas filas frontais. Nessa área retangular, a intimidade concilia a vastidão do pé direito do edifício e os solos da guitarra que o músico empunha na penumbra do púlpito.
É essa mesma arquitetura arrebatadora que vai trair e engolir parte considerável das passagens do texto, quando a projeção de voz se esvai nos embates de luta e afeto que são dominantes. Isso fica mais evidente quando os atores estão postados nas extremidades: o público daqui nem sempre ouve o que se diz lá, ou ao contrário. A incoerência fica explícita numa criação que tem na palavra sua gênese. A despeito desses momentos, Rodrigo e Castro sustentam do início ao fim as simbioses e decomposições dos seres que abraçam. Constituições físicas que salientam a aura professoral de Verlaine (a barba, a postura ereta de Rodrigo) e a sedução latente em Rimbaud (a dissimulação no rosto angelical e a transgressão atávica no olhar de Castro). Uma dupla à altura das tantas afinidades e dissonâncias que ganham corpo.
SARGENTO GETÚLIO
A literatura universal confere ao relato épico uma infinidade de arranjos e estilos para construir heróis, anti-heróis, sentimentos, ideias e geografias que levem o leitor ao longe. Quixotes e Policarpos são atemporais por isso. Como o Sargento Getúlio imortalizado por João Ubaldo Ribeiro em sua obra-prima de mesmo nome publicada nos anos 1970. A versão de Gil Vicente Tavares para o palco devota a essa história um lugar inspirador na escala das artes cênicas, ela que também foi visitada pelo cineasta Hermano Vianna na década seguinte, Lima Duarte à frente. A começar pela capacidade de concisão que o encenador do Grupo Teatro Nu imprime às formas espacial e interpretativa, capaz de traduzir substancialmente o caráter romanesco da narrativa em primeira pessoa.
Mais da metade do caminho desse monólogo é tributária da presença do ator Carlos Betão. O ator e o diretor transparecem a química que vem de outras parcerias, uma intimidade explosiva para compor silêncios e rompantes. A proeza de Betão está em mimetizar a figura corisca e carismática do sargento da polícia militar Getúlio Santos Bezerra por meio da enunciação oral e da expressão facial. Pactua com o espectador a humana ambiguidade desse matador profissional nas barbas do Estado, prestes a se aposentar e incapaz de afrouxar a missão que um político de cabresto lhe incumbiu: meter-se nos cafundós do sertão para capturar um opositor e trazê-lo à capital sergipana de Aracajú, cumprindo uma jornada desde o município baiano de Paulo Alfonso.
Quer no afinco da diligência quer na fuga da contra-ordem com o preso a reboque (o mandante pede para recuar, mas o sargento persevera na sua ética delirante), a encenação contrapõe a esse deslocamento frenético a delimitação cênica de pouco mais de metro quadrado. É nesse palquinho central, tendo atrás de si apenas a porta verde de uma Rural Willys, esguichada de lama, tal pintura realista ancorando a prosa em espiral, é aí que o espetáculo organiza e afirma com convicção a sua teatralidade mínima.
Justo essa engenhosidade em limar a cena faz saltar aos olhos um ponto sem nó: a dificuldade de Betão em comunicar a mesma síntese no gesto e no movimento do corpo (preparação assinada por Mell Borba). As intencionalidades ainda não conferem, revela a “lupa” montada por Tavares. Faltam sutilezas invisíveis à coerência brutal desse homem e seus desdobramentos na voz e na representação dos demais personagens ou aparições aos quais abre janelas no embalo do que descreve, sente, vê, ouve, cheira (o padre, a namorada, o defunto sem cabeça, o dragão, o boi).
Pelo menos as instâncias vocais e o olhar esbugalhado já sublinham esses estados subjetivos, como na espécie de ditirambo que expõe o quão primitivo são os instintos e a sociedade em que Getúlio está metido: o interior do País ambientado nos anos 1950, sob reflexos da Era Vargas, como que atualizado para a violência dos dias de hoje em alguns recantos.
O desenho de luz de Eduardo Tudella (apesar das derrapagens da operação naquela noite) e a trilha original de Ivan Bastos equilibram as atmosferas e subtextos, sensibilizam a percepção do público diante da complexa obstinação desse homem de mão pesada e coração amolecido pela solidão, capaz de narrar a própria morte sem autopiedade. Haja distanciamento.
Coproduzido pelo Bahia em Cena e estreado nesta primeira edição – inteligente iniciativa para escapar ao ramerrão dos formatos de festivais em geral -, o espetáculo do Teatro Nu demonstra pulso para cumprir desde já uma trajetória vitoriosa.
(1º de setembro de 2011)
3.8.2011 | por Valmir Santos
Por Valmir Santos
O número 29 da revista Folhetim é uma edição especial dedicada a Nelson Rodrigues. Destacam-se ensaios que analisam textos, espetáculos e a recepção crítica ao teatro rodriguiano. Alain Ollivier, Antonio Guedes, Cláudia Tatinge do Nascimento, Edélcio Mostaço, Fátima Saadi, Fernando Marques, Mariana Oliveira, Silvana Garcia, Sílvia Fernandes e Walter Lima Torres delineiam um panorama da produção brasileira pelo prisma da ruptura que o surgimento da obra do autor demarca a partir dos anos de 1940.
Mais da metade das 427 páginas, em formato de livro, são preenchidas com um dossiê de críticas jornalísticas ainda inéditas em livro. Organizado pela editora-geral Fátima Saadi, o material cobre seis décadas de espetáculos, de 1942, quando estreia A mulher sem pecado, a 2009, quando Antunes Filho cria A falecida vapt-vupt – aliás, o diretor do Centro de Pesquisa Teatral e do Grupo Macunaíma discorre em longa entrevista à publicação sobre suas montagens rodriguianas desde 1965. Por meio das 98 críticas pesquisadas em 15 periódicos, é possível acompanhar as polêmicas e a progressiva aceitação da obra de Nelson no Brasil.
O lançamento aconteceu na semana passada, no Teatro Glaucio Gill, no Rio, com direito a mesa-redonda com os diretores Ana Kfouri e Marco Antônio Braz. O encontro foi mediado pelo diretor Antonio Guedes, do grupo Teatro do Pequeno Gesto.
A pesquisadora, tradutora e dramaturgista Fátima Saadi respondeu ao Teatrojornal, por email, questões relativas ao número especial e à trajetória da publicação nesses 13 anos de perseverança nas idéias sobre essa arte.
Teatrojornal – Com esta edição especial nas mãos, tão múltipla e densa em seus ensaios, entrevistas e o dossiê de fôlego com a recepção crítica à obra de Nelson, você concorda que esse documento constitui desde já uma referência na pesquisa sobre o dramaturgo?
Fátima Saadi – Acho que a edição 29 do Folhetim – Especial Nelson Rodrigues reúne um ótimo time de
pesquisadores/ensaístas, de vários pontos do país e do exterior: o falecido diretor francês Alain Ollivier; a especialista em Nelson Rodrigues Ângela Leite Lopes, tradutora e professora da Escola de Belas Artes da UFRJ; a diretora e professora da Wesleyan University, nos EUA, Cláudia Tatinge Nascimento; Edélcio Mostaço, professor da Udesc, em Florianópolis; o dramaturgo, pesquisador e professor da UnB Fernando Marques; a atriz e doutoranda da Unirio Mariana Oliveira; a pesquisadora e professora da EAD Silvana Garcia e a pesquisadora e professora da ECA-USP Sílvia Fernandes, além de Antonio Guedes, diretor e professor da Escola de Belas Artes da UFRJ; de Walter Lima Torres, ator, diretor e professor da UFPR, em Curitiba. A diversidade de enfoques permite oferecer um panorama, não exaustivo, mas bastante amplo, do que se tem pensado sobre Nelson Rodrigues nos últimos anos.
O dossiê foi idealizado para dialogar com as críticas sobre as obras de Nelson que já estavam publicadas em livro e acrescentar, por meio da pesquisa em arquivos, material que servirá, certamente, de base para análises as mais variadas.
Ao fazer o levantamento dos textos – no acervo Cedoc/Funarte, na Biblioteca Nacional e na Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa -, pensei em diferentes fios possíveis para estudos. Imaginei que, a partir daquele conjunto de críticas, seria possível estudar a relação entre a imprensa e o espaço público de discussão do teatro (até o Jornal dos Sports mantinha uma coluna de crítica teatral nos anos de 1950). Esse espaço começa a minguar com o golpe militar e mais decididamente dos anos de 1980 em diante. Seria também possível observar, com base no conjunto de críticas, a variedade de abordagens do espetáculo teatral (de viés psicológico – primeiro prisma de aproximação das peças da fase inicial do Nelson; de viés predominantemente estético – com o trabalho pioneiro de Décio de Almeida Prado, continuado por Sábato Magaldi e Yan Michalski. No trabalho de Yan o viés político é bem nítido, Mas se mescla de algum modo às pesquisas semiológicas que também marcam a época).
Seria possível também acompanhar, por exemplo, o trajeto de uma crítica como Mariangela Alves de Lima [de O Estado de S.Paulo], que entra em cena nos anos de 1970 e continua presente, com análises delicadas e refinadas, propondo interpretações que vão além do espetáculo, projetando-o contra o pano de fundo cultural do país.
Enfim, diferentes viagens são propostas pelo roteiro de críticas coletadas no dossiê e acho que ele será útil não apenas aos profissionais de teatro, mas aos estudiosos de outras áreas como a sociologia, a história, a antropologia, a comunicação, etc.
Teatrojornal – Pontue brevemente a trajetória do Folhetim [o “o” é porque posso tratá-lo como caderno?], desde a concretização do desejo antigo de “criar uma publicação de ensaios sobre teatro”, lá no número zero, de janeiro de 1998, no qual também já se falava em superar a “precariedade de recursos”, perseverança que a equipe do Teatro do Pequeno Gesto exercita ao longo desse tempo todo. Como ele é viabilizado hoje? Periodicidade?
Fátima Saadi – Posso dizer que meu trabalho começou em 1977, no arquivo do antigo Serviço Nacional de Teatro. Eu deveria ler, selecionar e classificar todos os artigos que aparecessem sobre teatro na imprensa do país todo. O material acumulado vinha desde o ano de 1970 e estava selecionado pela empresa Lux Jornal (lembra dela?).
Em 1978, ainda no SNT, fui transferida para o banco de peças, que era chefiado por Edwaldo Cafezeiro, que estava trabalhando com a edição dos Clássicos do Teatro Brasileiro. Lá, aprendi boa parte do que hoje utilizo em meu trabalho de editora e preparadora de textos. A outra parte aprendi com Yan Michalski, na Escola de Teatro da Unirio, onde cursei Teoria do Teatro, tendo participado da revista Ensaio/Teatro, organizada por Yan para a prática dos alunos.
Meu primeiro trabalho de tradução foi uma encomenda de Luís Antônio Pilar: a tradução de Os negros, de Jean Genet, em 1985. De lá para cá tenho trabalhado com constância nessa área e uma das minhas tarefas como dramaturgista é, sempre que necessário, traduzir os textos que montaremos. Proponho muitos projetos a editoras, sempre em diálogo com o que considero lacunas na bibliografia sobre teatro no país. Foi assim que propus à coleção Dramaturgias, coordenada por Ângela Leite Lopes para a editora 7 Letras, a tradução de Notas sobre o teatro de Lenz e Regras para atores, de Goethe, e para a Perspectiva O filho natural e Conversas sobre o filho natural, de Diderot; O teatro é necessário?, de Denis Guénoun; e uma coletânea de ensaios de Béatrice Picon-Vallin, A cena em ensaios. Atualmente, estou trabalhando na tradução dos Discursos, de Corneille, sobre a tragédia, texto de 1660, diálogo astuto do autor com a Poética, de Aristóteles.
Como dramaturgista, meu trabalho ganhou consistência quando comecei a trabalhar com Antonio, em 1987, em O olhar de Orfeu, dirigido por ele no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, e, desde então, vem se desdobrando por autores e perspectivas diversas, incluindo até uma parceria em criação de texto (Penélope, escrita a quatro mãos, em 1995). Como editora, a experiência com o Folhetim retoma o trabalho com a Ensaio/Teatro e os Clássicos do Teatro Brasileiro. Procuro avaliar os textos para a nossa revista, junto com o conselho editorial (Antonio Guedes, Ângela Leite Lopes e Walter Lima Torres) a partir de seu viés ensaístico, isto é, a partir da consistência das idéias desenvolvidas, e veicular, ao lado de ensaístas maduros, autores que estão se iniciando nas lides do ensaísmo, como alunos de graduação e pós-graduação.
A revista tem se mantido graças a vários tipos de colaboradores: aqueles que escrevem, aqueles que nos ajudam a divulgá-la e a uma equipe, diminuta, mas que trabalha com afinco: o designer Bruno Cruz, o produtor de imagens e fotógrafo Luiz Henrique Sá, os coeditores Antonio Guedes (que cuida também da produção da revista), Ângela Leite Lopes e Walter Lima Torres, a secretária Márcia Alves e o revisor Paulo Telles. Às vezes contamos com algum apoio de instituições, que compram um lote de exemplares para distribuição gratuita ou anunciam suas atividades na revista. A Funarte é nossa parceira mais constante. Em 2009, por sugestão de Gustavo Ariani, diretor da CAL [Casa das Artes de Laranjeiras], organizamos um Clube de Amigos do Folhetim para financiar a impressão do nº 28, lançado naquele ano. Foi uma iniciativa pioneira de “crowdfunding”. Acho que em breve repetiremos o apelo aos amigos.
O que norteia nosso trabalho de seleção de textos e entrevistas é a preocupação com a relação teoria/prática no campo teatral. Procuramos privilegiar o pensamento a respeito da prática e temos tido ótimas experiências com autores do país todo, professores, profissionais da cena, alunos de graduação e pós-graduação. Há muita gente boa que tem o teatro como núcleo de seus estudos, prova é que quando criamos a revista, havia pouquíssimas publicações especializadas na área e agora já são muitas, em geral ligadas às universidades. Embora a revista não esteja diretamente ligada aos espetáculos do Teatro do Pequeno Gesto, há pontos de interseção, quando nossa pesquisa para montagens serve de mote a um número da revista. O número 12, sobre o trágico, lançado em 2002, acompanhou a preparação teórica de Medeia. Foi assim também com o número 7, o primeiro especial dedicado a Nelson Rodrigues, lançado em 2000, pouco depois da montagem de A serpente, pela qual o Antonio foi indicado ao Prêmio Shell do Rio nas categorias direção e trilha sonora. E, ao comemorarmos 15 anos, fizemos um número especial sobre o Teatro do Pequeno Gesto. Mas procuramos, respeitando a linha da revista, solicitar aos ensaístas convidados, Flora Sussekind, Sérgio Alcides e Silvana Garcia, que levantassem questões atinentes ao trabalho, respectivamente, em Medeia, O marinheiro e no próprio Folhetim que, àquela época, já estava no número 24. Já experimentamos a periodicidade quadrimestral, trimestral, semestral e anual. Como o trabalho aumentou, com a criação da coleção Folhetim/Ensaios em 2003 – o próximo volume será uma coletânea de textos de Jean-Pierre Sarrazac, que está sendo preparada para lançamento em 2012 -, acho que a tendência é mantermos a periodicidade anual.
Em tempo: pode se referir ao Folhetim no masculino (eu também uso no masculino, dando
precedência ao gênero do substantivo “folhetim” que ao caráter revista, que me
levaria a usar o “a”)…
>> A edição 29 do Folhetim – Especial Nelson Rodrigues custa R$ 35,00 e pode ser adquirida por reembolso postal sob respectiva taxa. Interessados, escrevam para: folhetim@pequenogesto.com.br
>> Confira o site do grupo Teatro do Pequeno Gesto
>> Reportagem sobre a edição especial do Folhetim publicada no jornal Valor Econômico
(4 de agosto de 2011)
2.8.2011 | por Valmir Santos
A temporada de Jaguar cibernético em São Paulo introduz as Peças do Pensamento Selvagem tal como percebidas por Francisco Carlos. Essa “tetralogia canibal” cava razões e desconcertos matriciais na escrita desse amazonense que também encena seus textos.
Ele está radicado na cidade desde 2005, mas engole bem suas entranhas urbanas. Como prova a entusiasmada recepção de atores quando Românticos da idade mídia, Namorados da catedral bêbada e Banana mecânica – todas no outro escaninho do autor, o das Peças das Culturas do Progresso – caíam em suas mãos em projetos como Arena mostra novos dramaturgos, organizado pela Companhia Livre, ou Reflexos de cena, pelo Sesc Consolação. As leituras logo mobilizaram uma corrente independente para levá-las à cena. A obra finalmente foi iluminada de vez na sala do subsolo que a Companhia de Teatro Os Satyros mantém na Praça Franklin Roosevelt, na região central paulistana.
Formado em Filosofia, recém-atravessado meio século de vida, nascido em Itaquatiara em 10 de dezembro de 1960, Francisco Carlos correlaciona fenômenos extremos dos habitantes da metrópole e da floresta num torvelinho verborrágico e imagético. Ergue uma cachoeira de palavras, subordinações e neologismos compostos, a lembrar José Celso Martinez Corrêa em sua transposição versificada de Os sertões. Jaguar cibernético não perde a prosa de vista mesmo em desvios narrativos, dialógicos, digressivos, rimados até. Sua poética cênica é cosmogonia.
Em 2007, ao convidar Francisco Carlos para ser um dos integrantes do seminário Nova dramaturgia brasileira em perspectiva, no âmbito do Festival Recife do Teatro Nacional, o crítico e curador paraense Kil Abreu, que hoje vive na capital paulista e o conheceu em Belém, na juventude, assim o percorreu nas memórias: “(…) fundou em Belém o grupo Trompas de Phalópio, que agitou a cena teatral na década de 80 com peças como O estranho caso da pantera da serra com o bandoleiro durango Brasil e Os caçadores da vaca fosforescente, entre outras. Seu teatro tem grande interesse na antropologia, especialmente a partir da obra de Lévi-Strauss, e procede na ‘bricolage’ que assimila referências que vão do surrealismo ao cinema de Hitchcock. Trata em seus textos das diversas etnias amazônicas (yanomami, mundurucu, kamayurá, mura, ashaninka), explorando por meio da escritura experimental elementos como ritos, crenças e xamanismo”.
Em março passado, na semana seguinte ao ensaio de Jaguar cibernético para os programadores do Sesc, sem saber se a temporada vingaria, Francisco Carlos e equipe caíram de pára-quedas na última edição do Fringe, do Festival de Curitiba, com sete peças na bagagem: três do repertório urbano mais a tetralogia canibal inédita. A iniciativa fez parte da mostra Conexão Roosevelt, a convite do curador Ivam Cabral. O ator d’Os Satyros o convenceu da pré-estreia nacional. Sem cachê, mas com direito a caminhão para o cenário viajar de São Paulo, mais transporte, hospedagem e alimentação para 33 pessoas, o núcleo de atores de Francisco Carlos, como chegou a ser anunciado, desdobrou-se diuturnamente no Teatro HSBC, em pleno calçadão central da cidade, a chamada Rua das Flores, a XV de Novembro.
O palco italiano, nada a ver com a perspectiva circular da obra em questão, era atravanco de menos. Aos atores, aos técnicos, o importante era ver, enfim, o Jaguar cibernético levado à cena após um semestre de ensaios. Afinal, pela primeira vez Francisco Carlos dispunha de uma equipe continuada com a qual pôde mergulhar de fato em processo criativo, arriscar-se tanto na condição de encenador como o faz costumeiramente na construção do texto.
As sessões da tetralogia aconteceram às 16h, 18h, 21h e à meia-noite do dia 4 de abril de 2011. Apenas 14 pessoas testemunharam uma parte ou outra, sendo que dois ou três acompanhamos de cabo a rabo a sequência: peça 1, Banquete tupinambá; peça 2, Aborígene em Metrópolis; peça 3, Xamanismo the connection; e peça 4, Floresta de carbono – de volta ao paraíso perdido. As apresentações agendadas para o dia seguinte se deram na ordem inversa. Provavelmente, nunca mais o projeto será visto nesse formato, de trás para frente, como a sublinha a autonomia de voo das peças. A temporada no Pompeia exibe duas a cada noite. Mas a disponibilidade dos envolvidos e o manto artístico que armaram em pleno fuzuê do Fringe, evento no qual a aderência raramente acontece, lá em Curitiba essa jornada fez a diferença ao colocar em relevo essa obra demasiado original que não quer vaticinar o novo, e sim canibalizar as tradições. Por isso destacamos no pé da entrevista que segue trecho de um ensaio de Michel de Montaigne, Sobre os canibais, assentado no encontro do escritor e filósofo francês com três índios tupinambás, em 1562, e pertinente ao universo “franciscano”.
Na manhã de 5 de abril, Francisco Carlos – e seu nome da estirpe de cantor romântico de multidões – conversou com o Teatrojornal no café de um hotel curitibano. Também tomou parte na entrevista a jornalista Pollyanna Diniz, repórter do blog Satisfeita, Yolanda? e do jornal Diário de Pernambuco, de Recife.
Teatrojornal – Vamos iniciar pelo Jaguar. Esse é um texto mais recente?
Francisco Carlos – Bem, ultimamente tem-se falado algumas coisas… De minha parte e da parte das pessoas que estão envolvidas com o meu trabalho, se tentou esclarecer a seguinte forma: a minha dramaturgia tem essa lenda de que já escrevi 30, 40 peças, inclusive eu mesmo não sei direito quantas foram, porque têm peças que estão muito prontas, têm peças que estão quase prontas e têm peças que são pré-projetos. O que acontece, até foi por uma questão assim, a gente começou a fazer mostras, tipo a Mostra Sesc de Dramaturgia, em 2005. A Majeca [Angelucci, atriz] fazia a curadoria, e aí se pensou assim: uma coisa são as Peças Urbanas e as outras, Peças do Pensamento Selvagem, até porque era a ideia que eu estava refletindo. Aquela ideia que o Walter Benjamim reflete sobre o Baudelaire, de que as metrópoles, a partir do século XIX, elas trouxeram um novo tipo de humanidade que é essa humanidade da multidão, que hoje a gente chama de sociedade urbana, sociedade das metrópoles. Essas peças que têm mais esse perfil urbano a gente resolveu tomou a iniciativa de montá-las, já que não conseguíamos fazer as peças do Pensamento Selvagem, porque mais monumentais em termos de produção. E aí a gente acabou chamando agora de Peças de Fenômenos Urbanos Extremos. Em 2008, junto com Marat Descarte e outros, tentamos montar uma peça do Pensamento Selvagem, A expedição dos amantes da máquina, sobre a viagem dos espanhóis na Amazônia, sobre a questão da descoberta do outro, que tem a ver com a Europa, etc. E a gente montou, com atores incríveis, ele, a Maria Manoela, a Majeca, o Cristiano… Mas a gente não conseguiu produzir, porque queríamos fazer como estamos fazendo agora no Jaguar cibernético. Partimos então para as Peças Urbanas, mais fáceis de produzir, porque é um universo próximo e as pessoas (os atores) têm roupas, objetos… A Maria Manoella, depois de duas leituras que a gente havia feito na Folha, ela ligou para o Rodolfo [García Vázquez], disse que a gente queria “fazer na marra” e ele disse que n’Os Satyros era o lugar certo para isso. Como diz o Gustavo Machado, era “rock’n’roll”, mete a cara e faz. A gente fez primeiro Namorados da catedral bêbada e Românticos da idade mídia com essa “legenda” de que eram Peças de Fenômenos Urbanos Extremos. E aí eu tinha conversado com a Mafalda Pequenino, a atriz negra do Banana mecânica, e ela articulou para estrear essa peça também n’Os Satyros, fechando o que a gente entendeu como uma trilogia das peças urbanas. Quando a gente fez o Banana, mas falidos do que nunca, em férias, estreamos achando que era uma festa de carnaval nossa, que os amigos iam, a Mafalda convocou a comunidade afro, com a qual ela tem um envolvimento cultural grande, e as pessoas vieram e a DJ Evelyn Cristina fez a trilha, e a Girlei Miranda fez a direção musical, mas aí todo mundo foi ver e culminou com a crítica do Luiz Fernando Ramos [na Folha, em 20 de março de 2010], que foi uma crítica definitiva para o trabalho, e as quatro estrelas, que a gente ainda não sabia o que era aquilo (risos). A gente soube por que a peça era só aos domingos, e quando era terça-feira, as pessoas ligavam para o teatro e já não tinha mais lugar. E depois teve também a indicação ao Prêmio Shell. E tudo isso era um pouco a preparação para o momento que não só eu, mas a Majeca, que foi a pessoa que ajudou a articular meu trabalho em São Paulo, e todo esse pool de atores fantásticos, estavam preparando junto comigo. Eles achavam que era um grande sonho, que era montar uma peça do Pensamento Selvagem, porque ali as pessoas achavam que estava a essência fundamental e definitiva do meu trabalho, a ligação pessoal que eu tenho com o tema que faz parte da minha vida, e então eu especulo ele sempre, eternamente, em todos esses momentos. Havia, para esses atores, uma tentativa, um esforço para chegar aí. A Ondina Clais Castilho [atriz], que é professora do Célia Helena, trouxe a Rosário [Dmitruk, produtora-executiva de Jaguar], que é uma aluna de lá e queria se engajar na produção. E a Rosária moveu um certo mundo, é casada com um pequeno produtor, e eu trouxe a Clissia Morais, que é diretora de arte no cinema, amiga especializada em filmes indígenas, ela fez os filmes Hans Staden [dirigido por Luiz Alberto Pereira em 1999] e Brincando nos campos do senhor [por Hector Babenco, em 1991], e ela é uma grande parceira. Nós pesquisamos juntos há mais de 20 anos toda essa coisa de uma possibilidade de uma cenografia indígena. Ela estava muito ocupada no cinema, não fez as peças urbanas, mas veio para o Jaguar cibernético, já que estudava as peças há muito tempo.
E o que é o Jaguar? Acho que ele é minha peça central nesse sistema das Peças do Pensamento Selvagem. Tem um personagem que seria o meu Hamlet/Dionísio, que é o Jaguar. A primeira versão eu escrevi em 1993 e de lá virou o meu work in progress. Algumas peças do Pensamento Selvagem saíram de dentro dela, da matriz. Quando eu conheci você [Valmir], foi no Festival Recife do Teatro, quando o Kil Abreu me convidou para o Seminário de Dramaturgia, no qual seria lida uma peça minha. Ele queria que fosse uma do Pensamento Selvagem, que ele achava o centro da minha pesquisa, tanto de dramaturgia como de encenação, focou no que era mais peculiar no meu trabalho. Pediu um texto mais curto e com poucos personagens. Escolhi A luta mística entre o anjo e o índio, a única peça do Pensamento Selvagem que tem poucos personagens, quatro. No encontro em Recife, havia um comentador para cada leitura, e o Luiz Fernando Ramos participou da minha. Antes do dia determinado, o crítico me pediu que enviasse a ele quatro peças do Pensamento Selvagem, e junto com elas foi o Jaguar cibernético. O Luiz Fernando chegou ao seminário e disse que não queria desprezar nenhuma das outras três, mas o Jaguar cibernético seria minha peça definitiva…
Teatrojornal – E ela já era dividida em quatro partes?
Francisco Carlos – Na época, não tinha a terceira parte. Eram três atos de uma mesma peça. E ele falou que era um Hamlet e que tinha que definitivamente montá-la. Bom, a gente fez as peças urbanas com a maior felicidade, porque elas foram… Tinha toda uma coisa, que a Maria Manoella repetia às pessoas, “Olha, vocês vão, são peças um pouco difíceis, mas a gente acha superimportante montar o Francisco”, e tudo mais, a gente achava que não fosse ter uma comunicação com o público, que os críticos provavelmente admirariam, os pesquisadores de teatro, mas que a gente teria de se conformar que o público talvez não batesse. E a grande surpresa foi que a gente fez agora uma terceira temporada com as duas peças em que entramos e saímos bombados. A felicidade foi extrema.
Teatrojornal – Afinal, você já escrevia há tempos…
Francisco Carlos – Eu não trabalhava em São Paulo, cheguei a São Paulo porque todo mundo achava que eu tinha que mostrar o trabalho em São Paulo. Até os anos 1980, eu montava, ia para alguns festivais. Por uma circunstância pessoal, problema de saúde de minha mãe, eu morava em Belém nessa época. Pessoas como Zé Celso falavam que minha dramaturgia era incrível, mas eu achava que um dramaturgo precisa ter um projeto claro. Achava que eu tinha noção disso, mas não tinha construído isso ainda, apesar de já ter escrito à época, das hipotéticas 40, umas 20 peças. Precisava ter um projeto de dramaturgia claro, pelo menos para mim, para meu entendimento. Nesses cinco anos de Belém eu encenei muito. Foi naquele período, entre os anos 1980 e 1990, que construí a fase do Pensamento Selvagem, estudos profundíssimos em Claude Lévi-Strauss, Gilles Deleuze, todo esse lado antropológico do Antonin Artaud em relação às peças dos índios mexicanos [os tarahumaras], de uma escrita xamanista, fui fazer conexão com os beatnik, a escrita automática proposta pelo André Breton, fui entender toda essa conexão do Lévi-Strauss com surrealismo, principalmente com Max Ernst [pintor alemão] e sua união com os estruturalistas clássicos, da qual Lévi-Strauss construiu um sistema que depois desencadeou mais mitológico no que se tornou hoje o sistema de antropologia estruturalista. Tudo isso, fui pensando esse tempo. Não podia construir uma dramaturgia etnográfica sem pensar profundamente tudo isso. E aí tinham duas tarefas: uma, entender profundamente isso, um assunto que me interessava profundamente, e a outra era que eu tinha que pensar como isso poderia conversar com a minha dramaturgia, com a minha escrita dramática. Isso não podia ser uma tese, precisava ser um texto teatral.
Teatrojornal – E como é seu processo de escrita?
Francisco Carlos – Tem uma outra história, que até as pessoas gostam. Quando eu resolvi que podia ser um dramaturgo, eu entendi que estava num momento em que não havia necessidade do dramaturgo. Por quê? Com a revolução do teatro moderno, ela atingiu, de maneira positiva, o dramaturgo, ela se propôs àquilo que foi chamado de a ditadura do texto, a obra dramática, como claramente teorizado no texto do Teatro da Crueldade, de Artaud, que foi definitivo para que existisse a cena moderna. Já em garoto eu disse que queria isso, não aquilo… (disse à jornalista)
Então, eu entendi que não precisava ter dramaturgo, nem texto dramático. Que isso aqui, por exemplo, poderia ser texto de uma encenação maravilhosa, como o romance Macunaíma foi para o Antunes, Os sertões para o Zé Celso. Não são textos dramáticos. Para que existir dramaturgo se há histórias grandiosas na literatura mundial e tudo isso pode virar texto para a cena contemporânea. Então, não precisa ter dramaturgo mais, estão certas as pessoas que afirma isso? E aí, vou ser o quê? Vou ser encenador? Mas aí pensei que podia ter o dramaturgo, a partir do momento que ele escrava para esse tipo de cena, e não para a forma que se fez até o final do século XIX. Então, precisei me debater, atravessar essas crises todas. E surgiu uma outra questão: entendi que os dramaturgos históricos, eles precisam realizar uma coisa que na minha cabeça eu comecei a chamar de “uma filosofia da cultura”. Todo dramaturgo potente realizou, de alguma, uma filosofia da cultura. Eu precisava fazer isso. A única formação acadêmica que eu fiz foi um curso de filosofia. Até o terceiro ano, fui um aluno perfeito, mas depois viajei muito para festivais de teatro, tinha que correr para não ser reprovado por falta. Pronto, é isso aqui. É a partir disso que vou organizar um universo filosófico, como acho que um Tchékhov tem, um Shakespeare tem, um Beckett tem. É uma reflexão sobre a cultura daquela situação que estou focando.
Teatrojornal – Existe uma oposição ou uma antropofagia da cultura ameríndia com a cultura ocidental? Você não deixa essas duas instâncias estanques e lança uma terceira?
Francisco Carlos – Tem as duas e tem uma terceira. Tem as duas por causa do senso de realidade. Como Heiner Müller fala, no Medeamaterial, o Jasão é o primeiro colonizador mítico. Então, essa história da colonização, ela existe desde que o mundo é mundo. Não é porque as pessoas dizem que vivemos num mundo pós-utópico, pós-revolucionário, que ela não existe mais. Essa ideia do centro e da periferia, da colônia e da matriz, ela existe. Todos nós estamos aqui discutindo isso. Aquele discurso de “fim da história” é europeu, porque já se esgotou. O Müller falava que a única possibilidade de reinvenção da história e da arte seria na América Latina, e acho que é por aí. Consigo ver a história antiga de outra maneira, não como uma história cronológica, mas cheia de camadas que se envolvem, que se misturam, que são rizomáticas, que são antropofágicas, toda mistura, não compartimentada por eras. É uma história fragmentada como a nossa contemporaneidade.
Teatrojornal – Há uma categoria, a do Teatro Antropológico, geralmente associada a uma fisicalidade do ator. No seu trabalho, com toda essa visão étnica, esse elemento antropológico parece não estar exatamente no corpo, mas na palavra. Concorda?
Francisco Carlos – Eu não sou muito bamba no Barba [o diretor italiano Eugenio Barba, um dos teóricos do Teatro Antropológico] (risos)… Eu sou melhor no Grotowski [teatrólogo polonês Jerzy Grotowski], até porque, para um garoto de 14 anos que estava querendo aprender alguma coisa e ter achado na biblioteca justo aquela tradução de Em busca de um teatro pobre (provavelmente por Aldomar Conrado], ele foi uma influência muito definitiva. Grotowski me abriu muitas janelas. Mas o Barba, eu acabei tendo mais um interesse teórico, dos comentários dele sobre o teatro laboratório do que pelo teatro dele, que na verdade eu nunca vi. Pelo que sei, pelo que já li, o que ele chama de teatro antropológico é porque ele faz mais uma antropologia, pelo que entendo, uma antropologia do ator, e até mais, da cena. Ele não faz uma antropologia etnográfica, faz uma antropologia da atividade teatral, uma antropologia do ator. No meu caso, não acho que meu teatro é antropológico. Nas peças do Pensamento Selvagem eu trabalho com uma temática que é a mesma da antropologia etnográfica, principalmente por uma corrente muito avançada da antropologia brasileira capitaneada pelo Eduardo Viveiro de Castro, em algum momento, e que foi definitiva, solidarizada pelo Lévi-Strauss. O meu foco, o meu objeto, o meu interesse é o mesmo deles, mas eles são antropólogos e eu sou um dramaturgo e encenador. Nesse sentido, não faço um teatro antropológico, não quero realizar um método antropológico dentro do teatro. Meu trabalho é, talvez, se se quer aproximar de um método, mas parecido com Brecht e Heiner Müller [dramaturgos e teatrólogos alemães], sendo este mais encenador que aquele. São caras que estão querendo atingir invenções no teatro a partir de invenções na dramaturgia. Claramente, o meu trabalho é isso. Tenho uma tendência, como Darci Figueiredo [ator e dramaturgo] comentou comigo recentemente, quando lemos as peças na Folha, a imprimir em tudo que faço uma proposta teatral para as pessoas que vêm receber aquilo, os artistas, o público. O meu trabalho é a tentativa de uma pesquisa teatral na qual tento atingir, a partir de uma reescrita do texto, não só de uma reescrita do texto, já que minha invenção não tem a ver só com a escrita, mas com os jogos de palavras, as conexões todas que realizo na escrita, como comentam… Mas eu acho que é uma via Brecht e Heiner Müller, que fala que o teatro precisa ser reinventado e como a gente pode colaborar com isso. Primeiro, tentando fazer isso no texto, já pensando obviamente que esse texto pode alterar sistemas cênicos, resultando ou não no que quer que seja.
Teatrojornal – No Jaguar cibernético, é impactante a questão propriamente formal da cena. Para quem assistiu aos trabalhos anteriores, a gente entra nas peças do Pensamento Selvagem e as associa a um espaço talvez mais aberto, de códigos mais fechados, mas fiquei surpreso com o encenador Francisco Carlos. Esse é um lugar em que você se sente bem? Além de autor, você tem esse recuo para ver e propor essas ideias para a cena?
Francisco Carlos – O que os atores acham – e falo deles porque eles foram parceiros, me possibilitaram, me descobriram –, e partilho aqui coisa que a gente tem partilhado nesse processo, não são necessariamente observações minhas só, as peças urbanas são, talvez, temas mais experimentados, até porque as pessoas vivem em São Paulo, os encenadores, muitos estão dentro desse universo, então essa temática talvez esteja mais esgotada em termos de experimentações dos encenadores inventivos, criativos. Essa temática do Pensamento Selvagem, primeiro, ela é um tabu, por uma série de coisas. Essa coisa da cultura indígena, que as pessoas têm medo por vários motivos, têm preconceito, coisas que estão relacionadas à situação do índio na América do Sul, no nosso caso no Brasil, na Amazônia que concentra a maior parte da população indígena. Esse tipo de universo, que hoje as pessoas podem até achar que está muito na moda por conta da ecologia, então as pessoas já querem até dizer “estou fazendo um trabalho sobre isso”, mas até há pouco tempo era um tabu, como o índio era um tabu. É um caminho extremamente difícil e perigoso. Com eu estou investigando, acho que, talvez, a partir desse universo consiga trazer muito mais invenções para o teatro, a partir desse universo, do que do urbano. E o universo urbano, como todo mundo conhece – estou falando das pessoas de São Paulo, estou montando lá –, isso cria um facilitador. As peças do Pensamento Selvagem são uma grande dificuldade, inclusive para mim. Isso propõe um mergulho e um salto no abismo muito grande. E o resultado do salto no abismo, ele acaba sendo muito mais criativo e mais produtivo em termos de invenção do teatro. A equipe acredita que é aí que está o grande barato, a grande invenção, a grande potencialidade. Houve esse esforço geral de todas as pessoas exatamente porque achavam que aí estava a grande possibilidade de contribuição para o teatro.
Teatrojornal – Aquela escultura da oca na primeira peça, os bambus trançados, aquilo firma um impacto cenográfico de largada…
Francisco Carlos – A gente pensou aquilo durante seis meses. Ontem, foi a primeira vez que a gente viu no palco…
Teatrojornal – Você acha que o a produção brasileira e o público contemporâneos estão mais preparados para abrigar e fruir uma tetralogia, a divisão em partes, mergulhar nessa densidade? Quer dizer, tirando esse contexto aqui de Curitiba, no âmbito de um festival…
Francisco Carlos – A gente não vai fazer longo em São Paulo. Na realidade, amo ver as peças longas, vou ao Oficina e saio de lá extasiado. Mas eu não tenho paciência para ver uma peça encenada por mim que dure mais de uma hora e meia. Começa a me dar uma angústia… E acho que essa angústia vai dar nas pessoas. Acho que as pessoas têm que sair do teatro que eu faço enfeitiçadas, angustiadas, extasiadas. Nesse sentido, acho bárbara a frase do Luiz Fernando Ramos na crítica que ele fez [a Banana mecânica], dizendo que meu trabalho, de alguma forma, é o “teatro da crueldade tupiniquim”. É aquela coisa que atinge o nervo, a afetividade, que é lindo, é maravilhoso, é terrível, é divino, é infernal, é prazeroso, mas choca extremamente… A ideia é apresentar uma peça por dia. Na realidade, aqui [em Curitiba], como são quatro peças, há os intervalos e a pessoa vê ou não vê, não é como ver uma peça que dura seis horas e ela está inteira ali, e aí você tem que ficar ou ter o constrangimento, sei lá, de ir embora. Aqui são quatro peças mesmo, até porque a gente conseguiu uma coisa que era a nossa grande batalha, tanto em termos de encenação com elenco como de direção de arte, de modo que as peças ficassem cada uma com sua característica própria. Elas têm autonomia, não se parecem…
Teatrojornal – E o Francisco diretor de ator, tua relação com um ator urbano, jovem, fazendo um índio? Como se dá esse diálogo?
Francisco Carlos – Outro dia eu estava discutindo com os atores sobre diretores do século XIX, do século XX e do século XXI, e eles disseram achar que eu sou um diretor do século XXI (risos). Discutiu-se até heranças da TFP [a ultraconservadora e católica Sociedade de Defesa da Tradição, da Família e da Propriedade], em pessoas extremamente modernas que talvez não tenham sido atingidas efetivamente pela Semana de Arte Moderna de 22 (risos), enfim, uma série de debates sobre essa coisa de como ser diretor num teatro que se pretende ser um teatro humano, coletivo. Eu sou muito… Não querendo dizer muito amigo dos atores, porque acho que o diretor não precisa ser muito amigo dos atores, e tem o caso de um ator que é um parceiro muito próximo comigo, um ator caladão, e a gente nem conversa muito, que é o caso do Marat Descarte, que chegou a ensaiar essas peças… Bem, mas procuro ser um cúmplice do ator o tempo todo. Preciso dessa cumplicidade. Do jeito que estou falando aqui, eu falo com eles o tempo todo. Só na hora em que o ator descarrila, aí eu sei dar um pito. Mas eu vivo o tempo todo fazendo acordo com o ator, essa é a primeira coisa. Eu acho que os atores, no Jaguar, estão ali para me ajudar no projeto e eu para ajudá-los a resolver o projeto pessoal deles de ator. Foi isso que trouxe um certo mito de que trabalho em São Paulo com atores incríveis, porque propus isso verbalmente e, na prática, eles viram com todas as letras que era aquilo. Eu preciso de atores com formações muito diferentes, com possibilidades múltiplas, com “atores-leque”, como disse a Luciana Brites [atriz e bailarina], que possam abrir em várias direções. Eu propus isso, eles entenderam isso e começamos a levar isso para a prática. E foi essa prática que trouxe a gente até aqui. Eu preciso de tudo que o ator tem, sua formação, seu talento, preciso que ele entenda aquilo que preciso e, a partir daí, a gente vai tecendo acordos minuciosos para que ele possa trazer tudo isso dele e que tudo isso possa encaixar em relação a todas as minhas solicitações.
Teatrojornal – Você concorda que no Pensamento Selvagem há mais propensão para interiorização? Senti os atores mais próximos disso, de uma apropriação das figuras, dos personagens, do espaço, das palavras…
Francisco Carlos – As peças do Pensamento Selvagem são um desafio maior, como disse. A gente começou as leituras em dezembro de 2010, fomos organizando material e mergulhamos no ensaio e na pesquisar em setembro [seis meses antes da entrevista], atravessamos Natal, Ano Novo… Hoje, a gente diz que ainda resta muita coisa a ser estudada, escutada… Nesse processo, todo mundo viu que não tinha escapatória: ou íamos para o fundo dessa coisa ou… O Júlio [Machado], que solicitei para ser o Jaguar, ele teve uma disponibilidade espiritual, mental e corporal incrível. Foi uma pesquisa física incansável, nos últimos dois meses ficávamos eu e ele das 8h às 20h na sala de ensaio, e as pessoas passavam… Eu não teria feito a peça se ele não fosse essa figura estratégica, porque ele teve uma vontade, uma alegria sempre. A gente nunca teve um arranhão, uma prontidão incomum.
Teatrojornal – Você disse que tinha sido uma surpresa Os namorados… Quando você foi fazer o Jaguar, já pensou nesse público de outra forma?
Francisco Carlos – Uma vez, a Barbara Heliodora falou uma frase meio absurda, em entrevista ao Programa Roda Viva, e eu comecei a pensar nisso… Ela disse que Shakespeare escrevia com o olho na bilheteria. Se você escreve ou monta pensando no público? Não, não monto pensando que o público vai gostar disso ou daquilo. Mas, eu acho que o teatro, a dramaturgia, ela é para o público, para o mundo, para a civilização. De alguma forma, esse mundo está em seu cangote. Nas comédias comerciais, as piadas são feitas estrategicamente para ter o público na mão, senão não vai ter a casa lotada. Claro, não penso por aí. Mas acho que aquilo precisa ser compartilhado.
Teatrojornal – Fale da dimensão política do trabalho. O Jaguar, em muitos momentos, dá uma sensação de manifesto, às vezes um tom mais niilista em relação à humanidade. O caráter político, o teatro político, o que te toca a respeito?
Francisco Carlos – A política é um dos elementos que sempre teve na dramaturgia, desde os gregos. É um elemento histórico da reflexão humana, desde o início da filosofia grega, a ideia da pólis, por exemplo, está associada à literatura. Como isso é colocado, é que é outra história. Tem aquela coisa que as pessoas falam: é panfletário, não é panfletário. Eu costumo dizer assim: o panfletário é a má poesia, porque se você for pensar não existe nada mais panfletário do que Maiakóvski, Brecht, Heiner Müller… Mas ninguém diz isso desses autores, porque são poetas fortes, são poesia de potências extremas. Para mim, não existe obra panfletária ou não panfletária. Acho que existem grandes poéticas e não poéticas. No caso da política, ela é um elemento, uma temática que sempre existiu na filosofia e na dramaturgia desde que existe arte. Como a temática da morte, a temática da ética, a temática do poder, a temática do amor, do Eros, a temática do ciúmes. São temáticas originais fundamentais da obra de arte. E como a gente vive no mundo em que a gente está do lado em que a corda arrebenta, porque a gente é a colônia no sistema colônia-metrópole do colonialismo, isso acaba, de alguma forma, tirando uma necessidade ética e estética. Para eu ser poético, eu preciso ser isso.
Eu entendo a ideia do Teatro da Crueldade como uma estética da periferia. Até porque eu leio muito a ideia do Artaud, tematicamente, como lá nos escritos sobre os índios do México, apesar de outros elementos artaudianos me interessarem. Em relação ao Jaguar, o que me interessa profundamente são os textos relativos aos índios mexicanos, a iniciação xamanista, a maneira como ele anota aquela experiência. Eu me interesso muito por aquela escrita xamã, pode estar relacionada à escrita automática de Walt Whitman, que o André Breton também propõe, mais a geração beatnik, porque esses escritores também se interessavam pela fala xamanista dos índios americanos, e aquilo tem um fluxo, tem um jazz. Nesse sentido, os escritos sobre os tarahumaras me interessam profundamente. Eu consigo, ali, me sintonizar.
Teatrojornal – Você falou até que queria retomar essa questão da escrita, dessas vozes sampleadas… O neologismo que não é puramente efeito e se dá organicamente em nossa escuta, nas imagens que projeta, os diálogos casados com a narrativa, como é esse seu processo criativo do texto? Às vezes dá impressão de um mero jogo de palavras, mas resulta uma liga, uma composição atômica de vários elementos…
Francisco Carlos – Tem até uma crítica que estou fazendo à maneira como as pessoas entendem a questão da dramaturgia no Brasil. Há pouco tempo, uma atriz que trabalhou comigo e trabalha muito no Rio, muito graciosa, falou uma coisa que reflete o tipo de debate que tem no Rio. Ela disse: “Ah, o texto de fulano é de teatro, tem aquela coisa da carpintaria teatral, e o seu é literatura, aí tem que ter uma certa dificuldade”, e não sei o quê. Existe uma mentalidade no Brasil que a nossa própria teoria da dramaturgia não corrigiu, que é essa ideia de que dramaturgia não é literatura. Não existe uma crítica, no país, da dramaturgia enquanto literatura. Outro dia eu vi um autor da USP, cujo nome não lembro, fazendo uma análise não literária das peças do Oswald. Essa ideia, ela compromete um debate sobre a escrita do texto teatral. Quando vim para São Paulo pela primeira vez, que foi a história dos 50 anos do Arena, que a Companhia Livre me convidou, eu morava em Belém ainda, tinha um debates [foram lidas Namorados da catedral bêbada e A expedição dos amantes da máquina], acompanhei alguns debates e a Majeca comentou comigo que os participantes não discutiam a escrita, a dramaturgia, ninguém discutia isso. Essa coisa da escrita não é debatida… Debate-se assim: “Como você escreveu, como você teve a ideia desse tema?”, mas nunca se debate a escrita, ou então se debate outro aspecto que é o personagem, como ele foi construído, o que é interessante também saber como se elabora um personagem em termos de texto. Mas ninguém discute a estrutura da escrita. Essa observação em relação ao meu trabalho foi muito me chamada atenção pelo crítico que me identificou aqui em São Paulo, o Kil Abreu, que conhecia meu trabalho desde muito jovem em Belém. Ele sempre apontou isso, “tem uma coisa aí que é a sua escrita, você está pegando num ponto interessante”. Eu observava que você tem que, para fazer dramaturgia, tem que escrever para uma cena contemporânea. Então, essa cena contemporânea precisa ter uma escrita que é contemporânea. E aí eu corri atrás. Eu fui estudar todos aqueles autores que trabalharam isso, no Brasil ou lá fora, Oswald, Mallarmé, Ezra Pound, Lewis Carroll, todos que experimentaram a escrita desde a antiguidade… [segundo Pound, “paideuma” é a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos]. Todo esse paideuma que os poetas concretas fizeram no país, o que seria a poesia inventiva, Jules Laforgue, Rimbaud, e entender isso como escrita, foi a partir daí que eu descobri milhares de conexões, inclusive, com a escrita xamanista, quer dizer, a fala xamanística indígena, já que não tem escrita, é o texto oral. Walt Whitman, e os comentadores falam claramente, ele falava isso, tinha interesse por um texto oral que tinha fluxos, que tinha conexões, que tinha fragmentações. Hoje eu tenho até um estudo desenvolvido sobre a relação da arte contemporânea, coloco lá a cena do Picasso com um tipo de estrutura fragmentária que vem lá dessa coisa que estou chamando de mantra indígena. Essa especulação da escrita, da literatura contemporânea, independente se ela é dramaturgia ou não, ela pode ser poesia, pode ser Guimarães Rosa, ela pode ser Faulkner, Gertrude Stein, pode ser qualquer autor, os beatniks… O Deleuze está cheio disso tudo, toda a história do devir animal. A gente estudou muito o livro 4 [volume de Mil Platôs], do Deleuze e do Guattari, que trata do devir animal, do bando. Na cultura indígena não é um deus, é um devir, como anotou Viveiro de Castro, uma experimentação de corpos. Essa ideia da cena tem a ver com isso. Não é representação, é uma experimentação de corpos. O Deleuze fala que o devir não é uma representação, ele é uma experimentação de corpos. Essa pesquisa na escrita se deu, por um lado, de eu mergulhar na estrutura do texto indígena vocal em conexão com a escrita da literatura e das poéticas escritas da arte moderna contemporânea. E aí não é jogo de palavras, foi uma especulação que esses autores todos fizeram em termos de ideias, de reflexões. As pessoas às vezes ficam achando que é jogo de palavra. É, mas lá adiante a coisa pega…
Teatrojornal – Há várias camadas de rejeição se o espectador for querer apreender de imediato. Bem, vamos virar o jogo para a sua biografia. Conte-nos onde nasceu, sua família, sua formação.
Francisco Carlos – Às vezes eu vejo as pessoas dando entrevista na televisão e elas ficam falando, contando coisas de si… Eu penso comigo que se eu fosse a um desses programas, não saberia o que dizer. Eu tive uma vida muito comum, normal (risos). Às vezes, a Majeca me liga e pergunta o que estou fazendo. Eu digo: “Estou dando uma de Emily Dickinson”. Porque Emily Dickinson [poeta estadunidense] cuidava de um irmão com problemas de saúde, não frequentava o círculo de escritores de sua época. E quando ela morreu, descobriram lá as caixas de textos e ela viveu assim, domesticamente. Eu fico brincando assim… Enfim, eu posso falar de algumas coisas. Nasci numa cidade do interior do Amazonas, chamada Itaquatiara, que é a maior cidade depois de Manaus, é próxima a Manaus. Numa família de professores de língua portuguesa [apenas uma prima dava aulas, os pais eram comerciantes] que tinham muito interesse pela língua e pela literatura na medida da possibilidade, com bibliotecas muito simples no contexto de um colégio no interior do Amazonas. Comecei a fazer teatro por volta dos sete anos, nessa cidade. Via algumas peças. Então, eu não tenho outra vida fora do teatro. Enquanto Paulinho da Viola também faz carpintaria, eu sou a pessoa mais incapaz do mundo de fazer outra coisa, absolutamente nada que não seja ficar escrevendo. A minha família era classe média, estudei em colégios particulares. Quer dizer, eu não nasci pobre, eu estudei em colégio particular e foi o teatro que me deu esse entendimento total. O teatro me deu entendimento de tudo porque ele surgiu em minha vida antes de tudo. A faculdade de filosofia potencializou esses entendimentos. Deu-me a possibilidade de ler qualquer texto, um texto de filosofia, de literatura. Fiz a faculdade em Manaus [Universidade Federal do Amazonas], mas nunca fiz uso academicamente disso. Nos primeiros anos do curso eu fui brilhante, mas nos últimos, eu já estava circulando nos festivais de teatro. Mas acho que a filosofia foi muito importante, até porque essa pegada etnográfica, até pela própria situação muito presente, a questão indígena era muito debatida dentro da universidade, Lévi-Strauss e outros antropólogos brasileiros, então ela foi fundamental para eu cair de cabeça nessa história. Com 12 anos eu já tinha um grupo de teatro, alguém precisava dirigir e eles achavam que eu era a pessoa que tinha de fazer isso. Nunca quis ser ator, achava muito chato. E tinha aquelas peças que eu lia e achava magníficas, Shakespeare, Nelson Rodrigues… Mas eu achava que a gente não ia saber fazer isso, esses textos, e então comecei a escrever, eu era bom de redação na escola e as pessoas diziam: “Menino, você vai ser escritor!”. Minhas primas mais velhas e minhas tias eram professores de língua portuguesa, então líamos muito em casa. Quando tinha uns 13, 14 anos, chegou à cidade uma companhia que veio não sei de onde, talvez de Belém, com uma montagem de Os inimigos não mandam flores, do Pedro Bloch, nem lembro muito do enredo [conta a saga de um casal “confortavelmente infeliz” após muitos anos de vida em comum e que, numa reviravolta surpreendente, consegue se libertar dos jogos emocionais viciados e cruéis, resgatando o amor e a paixão], mas essa peça bateu forte na minha cabeça. Eram dois atores num palco pequeno, num clube da cidade, e eles andavam pela plateia, saiam e voltavam para o personagem. Eu já tinha visto algumas peças nos teatros de Manaus com atores da televisão, e eu vi essa peça bem feita. Havia uma serie de quebras de quarta parede e tudo mais. Olhei aquilo e tentava imitar no grupo essas peças clássicas que eu via. E no programa de Os inimigos não mandam flores dizia que aquilo era teatro moderno. Passei uma semana, um mês impressionado com aquilo. Pensava assim: “Fazer teatro é muito mais fácil e legal do que as pessoas com as quais eu tenho conversado falam. E é muito mais criativo, parece brincadeira isso. Se um fia for fazer teatro de verdade, vai ser por aí”. Não tinha cortina que abria e fechava e eles, os atores, se misturavam à plateia. Eu nunca tinha visto isso. Então eu queria fazer teatro moderno. Como fazer isso numa cidade do interior amazonense? Buscava inspiração em filmes, em espetáculos de dança. Já que uma peça de teatro pode ser de qualquer jeito, ela pode ser qualquer coisa, ela tem essa liberdade, então eu não precisava trazer coisas só do teatro, mas de outros lugares. Eu frequentava o único cinema que tinha na cidade. E aí comecei a fazer teatro ali. Em meados dos anos 1970, a companhia do Marcio de Souza [romancista manauense autor de Mad Maria e Galvez – imperador do Acre, diretor do Tesc, Teatro Experimental do Sesc do Amazonas] viu minha peça e me convidou para o Festival de Teatro de Manaus. Eu fui e os atores começaram a ficar encantados pelo meu texto. Sempre tem essa coisa de os atores conseguirem ficar encantados pelo meu trabalho. Eu viajava muito para Manaus nas férias, casa de família, via peças e tudo o mais. Minha família foi muito bacana porque ela entendeu que tinha uma pessoa ali que queria ser artista – eu era um dos únicos na casa. Uma família católica, rígida por um lado, mas muito humana por outro. Mas entendeu, não exatamente apoiaram, mas deixaram, foram muito carinhosos nesse sentido, de modo que eu pude me movimentar bastante. Nunca tive crise com família, com igreja. Um dia eu deparo lá, na biblioteca, aos 13 anos, com a tradução de Em busca de um teatro pobre [livro do encenador e teórico polonês Jerzy Grotowski]. Eu tinha começado a ler alguma coisa do Heidegger, sobre arte, e tinha ficado impressionadíssimo…
Teatrojornal – Antes dos 13?
Francisco Carlos – Não, acho que aí já era com 13 anos. E nessa época li o livro do Grotowski. Fiquei profundamente…. É isso aqui, é lógico que ele está fazendo isso em outro lugar… Imaginava que um encenador como Grotowski devia estar num palacete e no ministério da Cultura da Polônia, fazendo tudo aquilo, e eu peguei e falei assim: “Tá aqui”. Não sei como, mas vou ter que inventar… Tem uma coisa que ele falou e me impressionou: “Os outros teatros não me interessavam e então resolvi inventar o meu próprio teatro”. Não sei o que vai ser, a coisa do maluco que as pessoas falam, o maluco que depois ninguém quer saber, mas eu vou pensar numa possibilidade de inventar um teatro… E aí foi.
Teatrojornal – Tu tens irmãos?
Francisco Carlos – Eu tinha dois, um irmão faleceu num acidente e tenho uma irmã que tem sobrinhos maravilhosos, que são meus xodós. Eles moram em Manaus. Hoje eu vivo em São Paulo. Fui obrigado, pelos atores, amigos e produtores a ir para São Paulo. Na verdade, eu sempre tive em São Paulo, desde o começo dos anos 1980, sempre ia e ficava meses aqui. Olhava tudo, Arrigo Barnabé, Lira Paulistana… Mas eu nunca assumi essa coisa de “vou fazer teatro em São Paulo”.
Sobre os canibais, trecho do ensaio homônimo de Montaigne
“Todos os nossos esforços não conseguem sequer reproduzir o ninho do menor passarinho, sua contextura, sua beleza e sua utilidade; tampouco a teia da miserável aranha. Todas as coisas, diz Platão, são produzidas pela natureza ou pela fortuna ou pela arte. As maiores e mais belas, por uma ou outra das duas primeiras; as menores e imperfeitas, pela última. Portanto, essas nações parecem assim bárbaras por terem sido bem pouco moldadas pelo espírito humano e ainda estarem muito próximas de sua ingenuidade original. As leis naturais ainda as comandam, muito pouco abastardadas pelas nossas; mas a pureza delas é tamanha que, por vezes, me dá desgosto que não tenham sido descobertas mais cedo, na época em que havia homens que, melhor que nós, teriam sabido julgar. Desagrada-me que Licurgo e Platão não as tenham conhecido, pois parece-me que o que vemos por experiência naquelas nações ultrapassa não somente todas as pinturas com que a poesia embelezou a Idade de Ouro, e todas as suas invenções para imaginar uma feliz condição humana, como também a concepção e o próprio desejo de filosofia. Eles não conseguiram imaginar uma ingenuidade tão pura e simples como a que vemos por experiência e nem conseguiram acreditar que nossa sociedade conseguisse manter-se com tão pouco artifício e solda humana. É uma nação, eu diria a Platão, em que não há nenhuma espécie de comércio, nenhum conhecimento das letras, nenhuma ciência dos números, nenhum termo para magistrado nem para superior político, nenhuma prática de subordinação, de riqueza, ou de pobreza, nem contratos nem sucessões, nem partilhas, nem ocupações além do ócio, nenhum respeito ao parentesco exceto o respeito mútuo, nem vestimentas, nem agricultura, nem metal, nem uso de vinho ou de trigo. As próprias palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, perdão são desconhecidas. Como ele consideraria distante dessa perfeição a república que imaginou!”
Montaigne, Michel de. Os ensaios: uma seleção; organização M.A. Screech; tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 146 e 147.
Crítica de Jaguar cibernético na revista Bravo!
Ficha técnica de Jaguar cibernético na temporada no Sesc Pompeia
Elenco:
Bernardo Fonseca Machado
Carol Gonzalez
Daniel Morozetti
Diogo Moura
Eros Valério
Hércules Morais
Júlio Machado
Kiko Pissolato
Luciana Canton
Mauro Schames
Paulo Gaeta
Ondina Clais
Roberto Borenstein
Rodrigo Audi
Tarina Quelho
Thiago Brito
Texto, encenação e direção geral – Francisco Carlos
Direção de arte – Clissia Morais
Cenografia – Miguel Aflalo
Orientação de língua tupi – Eduardo Navarro
Figurinos – Alex Kazuo e Clissia Morais
Camareira – Nazaré Brazil
Cenotécnica – Mateus Fiorentino
Assistente de cenotécnica – Neilton Alves
Desenho de som – Alfredo Bello
Operadora de áudio – DJ Evelyn Cristina
Muralista – Raul Zito
Iluminação – Karine Spuri
Assistente de iluminação – Gigante Cesar
Máscaras – José Toro
Chefe de adereços – Francisco Leão
Aderecistas – Fernando Diz, Nazaré Brazil.
Costureira – Cleide Mezacapa
Programação visual – Jo Fevereiro
Visagismo – Thiago Gomes
Assessoria de imprensa – Adriana Monteiro
Produção executiva – Rosário Dmitruk
Assistente de produção – Antônio Franco
Fichas técnicas das demais peças apresentadas no Fringe, em Curitiba
Namorados da catedral bêbada
Elenco:
Majeca Angelucci – Bárbara Bêbada
André Engrácia – Don Diogo
Ondina Clais – Sandra Spotlight
Eros Valério – Porcão
Germano Melo – Gato Bruxo
Bernardo Fonseca Machado – Eros Prostituto
José Trassi – Boy Marrom
Texto e direção – Francisco Carlos
Direção de Arte – Marcio Colaferro
Sonoplastia – Pepê da Mata Machado
Iluminação – Karine Spuri
Figurino – Joana Gatis
Produção – Maria Manoella e Majeca Angelucci
Românticos da idade mídia
Elenco:
Germano Melo – Reverendo
Fabiana Serroni – Adele Fatal
Daniel Morozetti – Lobo Podre
Júlia Hardy – Jane Jóia
Hércules Morais – Angelus
Mariah Teixeira – Miss Blair
Eros Valério – Coveiro
Felipe Montanari – Repórter, TV Monstro, Anjo do Apocalipse
Texto e direção – Francisco Carlos
Banana mecânica
Mafalda Pequenino – Chiquita Bacana
Paulo Gaeta – Medusa
Fabiana Serroni – Eva
Mauro Schames – Pierrot
José Trassi – Adônis
André Engrácia – Marinheiro
Felipe Montanari – Zé Pereira
Eloisa Leão – Cantora
Fernando Delábio – Corista, Bibliotecário
Texto e direção – Francisco Carlos
Direção de arte – Marcio Colaferro
Sonoplastia – DJ Evelyn Cristina
Iluminação – Karine Spuri
Figurino – Fernando Delábio
Preparação corporal – Ondina Clais
Direção musical – Girlei Miranda
Direção de cena – Elisete Jeremias
Produção – Antônio Franco
(2 de agosto de 2011)
Por Cynthia Becker, colaboração para o Teatrojornal
Obras que rondam o imaginário artístico, experiências que provocam impactos sem se importar se são teatro ou dança, mas sim em mostrar linguagens que nos fazem pensar em novas perspectivas dentro das artes. Acredito que a curadoria do Festival TransAmériques realmente teve como base levar o espectador a um passeio nos espaços que começam a ser desbravados pela cena mundial contemporânea. A quinta edição do FTA aconteceu em Montréal, na província canadense de Québec, entre 26 de maio e 11 de junho deste ano.
Como representante do Núcleo de Dramaturgia Sesi-Paraná, tive o privilégio em fazer parte de um programa que tem como raridade oferecer bolsas a “jovens criadores” de diversos países, dentro do Programme de Jeunes Créateurs, com o intuito de promover um intercâmbio artístico, ofertado pelo FTA com parceria de uma instituição do Québec responsável por projetos internacionais (LOGIQ).
Participaram representantes de diversos países, como Alemanha, Bélgica, França, Israel, Brasil, Itália, Canadá e Chile, entre eles diretores, dramaturgos, cenógrafos, bailarinos, críticos e, sobretudo, pessoas dispostas a trocar pensamentos, refletir e expor o que está sendo produzindo atualmente no teatro e na dança através de simpósios, palestras, mesas redondas com artistas locais e internacionais.
Devo confessar que foi uma experiência única para mim, principalmente pela surpresa em saber que mesmo havendo diferenças culturais, a arte permanece em seu lugar de transgredir referências comuns: Foi possível ouvir um eco do que se idealiza artisticamente aqui no Brasil, mesmo não tendo uma posição geográfica favorável e até mesmo econômica para viabilizar concepções que exigem grandes produções.
Nesta edição, foi possível presenciar espetáculos de diversas formas e formatos como Trust, da mítica companhia Schaubühne, de Berlin, em sua composição de teatro e dança na qual o híbrido é tão impecável ao ponto de se tentar nominar a unidade dessas duas linguagens. O grupo de dança belga les ballet C de la B relata com o espetáculo Gardênia a história de um cabaré de transexuais, surpreendendo com opções musicais bem ecléticas, indo de Caetano a Aznavour. Da brasilidade que já se conhece fora do país, a companhia de dança dirigida por Lia Rodrigues marcou presença com Pororoca. Já a companhia nipônica Chelfitsch transpôs para o palco atitudes absurdas da sociedade atual no espetáculo Hot pepper, air conditioner and the farewell speech por meio de falas e movimentos repetitivos, explorando a cena de um jeito neurótico, porém preciso e inteligente.
A programação do FTA também não demonstrou receio em suas coproduções artísticas, como no caso de Neutral hero, do autor e diretor norte-americano Richard Maxwell, um espetáculo musical que desmitifica a saga do herói, e até mesmo contraria as grandes montagens do gênero nos EUA , talvez pela saturação do próprio contexto em que o grupo nova-iorquino esteja inserido. A encenação chegou ao ponto de me fazer lembrar os grupos de jovens de igreja quando ensaiam para a missa de domingo, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, remete à completude dentro da banalidade.
Sai atônita do espetáculo Moi qui me parle à moi-même dans le futur, da companhia Infrarouge. A criação de Marie Brassard me provou que o teatro é a arte que possibilita a manipulação do tempo e do espaço, e a palavra é a melhor ferramenta para nos introduzir a tal percepção. Seguindo essa mesma linha quântica, Mille anonymes, do diretor quebequense Daniel Dennis, ousou em sua concepção, mas não deixou tempo para o público digerir tantas ideias, causando impressões hesitantes, porém necessárias quando se trata de inovação.
Como muitos festivais de teatro o FTA também possui o seu off, isto é, uma mostra de teatro realmente alternativa. Não tendo ligação com a programação oficial, o OFFTA se afirma com o intuito de promover um espaço de experimentação, interdisciplinaridade e principalmente de correr riscos. O objetivo dessa mostra paralela é proporcionar aos novos artistas uma visibilidade maior perante o público e as mídias nacional e internacional. Aliás, a organização já começou a receber projetos para edição de 2012.
Montréal sabe aproveitar seus ares primaveris, que junto com a sua população acolhedora compõem muito bem uma paisagem artística. Além de a cidade já ser conhecida pelos seus festivais de música, certamente é a maior representante da América do Norte em termos de vitrine de teatro e dança, e já começa a demarcar seu território ao lado de grandes festivais como os de Avignon e Edimburgo. A próxima edição do FTA será de 24 de maio a 9 de junho de 2012.
O site do Festival TransAmériques.
A mostra off do FTA e as inscrições para 2012.
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Cynthia Becker começou atuando como atriz no grupo do Cefet–PR. Integrou o grupo de teatro da Universidade Federal do Paraná. Ainda em Curitiba, decidiu cursar artes cênicas na Faculdade de Artes do Paraná, a FAP. Participou de projetos da Fundação Cultural de Curitiba integrando literatura e teatro. Após um período de residência entre França e Escócia, ingressou no Núcleo de Dramaturgia do Sesi-SP em parceria com o British Council e sob coordenação de Marici Salomão. Atualmente, integra o Núcleo de Dramaturgia do Sesi-PR, coordenado por Marcos Damaceno e orientado por Roberto Alvim. Através do mesmo projeto leciona oficinas de dramaturgia nas cidades de Ponta Grossa e União da Vitória.
17.6.2011 | por Valmir Santos
(artigo originalmente escrito para a edição número dez da Cavalo Louco – Revista de Teatro da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz).
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“A forma de uma cidade muda mais depressa, infelizmente, que o coração de um mortal”
Bauldelaire
Por Valmir Santos
A memória de um cidadão funde-se com a do lugar onde ele vive. Forçado ao exílio nos Estados Unidos após o golpe militar de 1973, Ariel Dorfman carregou o Chile consigo através de uma obra literária de conteúdo incisivo sobre a realidade do país violentado pelo regime totalitário durante 17 anos. Quando a democracia foi restabelecida, em 1990, o escritor voltou a Santiago, mas acabou permanecendo em território americano. No final daquela década, ele cunhou a palavra “resistência” para batizar uma trilogia dramatúrgica editada em língua inglesa. A peça Viúvas (Viudas, em espanhol) foi cotejada naquele livro[1]. Trata-se de uma adaptação do romance homônimo do autor, de 1981, e feita a quatro mãos com o colega americano Tony Kushner, exatamente dez anos depois. Ou seja, 1991: o mesmo ano em que Kushner viu estrear em São Francisco, nos Estados Unidos, a primeira parte do seu drama Angels in America, definida por ele como “uma ficção gay sobre temas nacionais” (Millennium Approaches e Perestroika). Kushner de quem o Brasil conhece neste ano a montagem inédita de Casa Cabul, de 2001, pelas mãos do diretor José Henrique de Paula, do Núcleo Experimental de Teatro, de São Paulo. O texto é vaticinador dos estigmas sobre a cultura e a religião muçulmanas com ênfase no Afeganistão. Um olhar retrospectivo nota que a aproximação desses autores, Dorfman e Kushner, de formação familiar judia, tem a ver com o tônus político que caracterizam seus escritos.
Quanto a Viúvas, a história das mulheres que reivindicam seus homens “desaparecidos”, cujos cadáveres são devolvidos pelas águas de um rio, é flagrante o recorte autobiográfico na figura do Narrador a entremear os diálogos sobre o desterro imposto aos direitos humanos. Ao intervir pela última vez na peça, essa voz épica reconhece nesse “conto de fadas perverso”, porque ora inventado ora embebido pelos fatos históricos, “uma forma de retornar à vida, minhas palavras viajando onde meu corpo estava proibido, meus olhos vendo o que a gente lá do meu país não se atrevia a murmurar e o que a gente por aqui [nos EUA] não está interessada em ver”[2].
Em Viúvas – performance sobre a ausência, trabalho em andamento que veio à luz em janeiro de 2011, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz nos deu a ver os rastos das ditaduras latino-americanas por meio da história dramatizada por Dorfman e Kushner. Ao ocupar a Ilha das Pedras Brancas, no Rio Guaíba, o grupo particularizou o que há de universal na obra. Se na peça a geografia circunscreve uma comunidade imaginária, Camacho, encravada num vale – “Não, não acho necessário contar-lhes como se chama o meu país”, diz o Narrador, alter ego de Dorfman –, na experiência teatral o núcleo artístico apropria-se da mesma ficção para deflagrar o seu lócus banhado pelas memórias do cárcere político. Um pedaço de terra flutuante que não foi apagado pela natureza e sobre o qual a encenação em processo conseguiu atrair os olhos e a sola dos pés dos moradores do “continente” a bordo do terceiro milênio.
Não dá para entrar de chofre nos princípios estéticos e de linguagem implicados. Não dá para não pensar, antes, nas escolhas. Elas ancoram a corajosa atitude dos artistas diante de sua época, de seu país, de sua cidade e, sobretudo, de seu público. A performance tornou-se um fenômeno boca a boca na capital gaúcha porque convidou o cidadão a correlacionar fatos históricos. A percorrer cerca de dois quilômetros num barco, em plena hora do crepúsculo. A desembarcar na ilha de desenho disforme, com cerca de 100 metros de extensão, margeada por rochas de sugestiva alcunha: matacão. A testemunhar ações corais do elenco em deslocamentos a pé pelo que sobrou do presídio militar, um edifício boa parte dele em ruínas.
Vêm à tona os fantasmas do totalitarismo entre aquelas paredes de tijolos e cimentos, gritos de liberdade parados no ar. “Há histórias que pedem a gritos para ser contadas e, se não há palavras ainda para elas, criam-se pele para esperar o momento. O vento as leva, e a fumaça, e o rio, as palavras de cada história encontrarão o caminho até o lugar mais solitário e afastado, sempre que haja alguém que queira escutar”, diz a neta da protagonista ao final, embalando um bebê. Uma nesga de esperança, uma possibilidade tênue em meio à narrativa dura, como tinha de ser, envolvida em organicidade poética, visual, espacial e de atuação que o coletivo de 33 anos domina tão bem em áreas ao ar livre.
Foi a primeira vez que este autor conheceu de perto um experimento que desaguará meses depois na montagem propriamente dita, na perspectiva do Teatro de Vivência[3]. A linha de pesquisa da Tribo de Atuadores para as criações apresentadas em espaços fechados propõe percursos sensoriais presumidos como interlocução menos passiva do lado de cá da assistência, mão dupla entre atores e público. Aos que virão depois de nós – Kassandra in process, de 2002, e A missão (lembrança de uma revolução), de 2006, montagens anteriores sob igual paradigma, arquitetavam como que espaços cênicos tridimensionais. O espectador era surpreendido a cada atalho súbito no trânsito de uma cena à outra, especialmente nos conflitos que demandavam lutas coreografadas.
A gênese Viúvas – performance sobre a ausência, por sua vez, demarca horizontes ainda não traçados pelo grupo na costumeira prospecção de campo. Assim como a territorialidade diminuta da ilha serve de convergência a procedimentos que podem ser decorridos tanto do Teatro de Vivência como do Teatro de Rua (outra linha de pesquisa constitutiva da alma deste coletivo, o DNA desbravador para o que der e vier), a referida territorialidade impeliu seus integrantes a estratégias até então desconhecidas em termos de sínteses, de objetividades tangenciadas às condições-limites do local capinado, varrido e rastreado meticulosamente pelos braços sonhadores de atores, técnicos, ajudantes gerais e tudo mais que traduza mão de obra no fazer teatral: arregaçar as mangas e voar longe, deslizando feito voadeiras.
O ÓI Nóis contratou embarcação para transportar a si e aos outros, locou gerador para levar energia elétrica às trevas, construiu plataforma para desembarque do público, palmilhou os chãos de terra, a vegetações, as paredes caiadas, as estruturas remanescentes, as rochas de superfícies lisas, como se lixadas pela intempérie secular, enfim, o Ói Nóis transmudou a paisagem e dotou-a de instalações cenográficas, desenhadas por luz e muriçocas que ampliaram as metáforas do texto.
Duas imagens dessa quintessência. Primeira: a chegada do público à ilha, quando avistamos a avó Sofia apequenada sobre a solidez impávida do rochedo, a mensurar sua solidão e sua indignação de mulher e de pedra irremovível na luta por reaver o pai, o marido e os dois filhos, todos executados pelos soldados do exército que impõem o regime de exceção; o murmúrio das águas do Guaíba é trilha impressionante, equalizada pelos nossos ouvidos já nos cerca de vinte minutos de trajeto. Segunda imagem: as atrizes ocupando a ponta de estacas fincadas no solo, com movimentos e cantos sincrônicos enquanto em outros suportes semelhantes jazem apenas cadeiras vazias – um signo que a dramaturgia de Dorfman e Kushner salienta no Narrador, que sempre aparece ao lado da peça de mobília, vazia, evidentemente, ou em algumas passagens de Sofia, aquela que não perdoa, o elo de ancestralidade que não negocia a Verdade, cuja cadeira vazia, de pernas para o ar, carrega nas costas, postada, vez ou outra, à beira do rio para escutar seus sussurros.
Um aspecto que divisamos em Kassandra e no último espetáculo de rua, O amargo santo da purificação, de 2008, “um visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella”, no dizer do subtítulo, é a evolução natural do trabalho dos intérpretes na base nuclear da Tribo, aquele integrante que há anos desenvolve uma atividade contínua de pesquisa, criação, formação e produção. Não que as pessoas que tenham ingressado recentemente estejam aquém. Estas, geralmente adentram o coletivo com muita convicção do ofício, capaz de discorrer com clareza sobre as variantes de determinada montagem em pauta, independente da idade. O que se denota com o tempo, porém, é o crescimento do atuador, sua forte presença diante do interlocutor, seja o par com quem contracena seja o espectador rente ao toque, ao olhar.
Viúvas – performance sobre a ausência corrobora a concisão, o close nos poros da percepção. Desse laboratório de planos em detalhe ou panorâmicos saímos mobilizados pela ressignificação do lugar e de suas memórias por meio da teatralidade. Pela consistência narrativa nele alcançada. Pelo diálogo expandido firmado com o texto sobre as viúvas chilenas, um retrato do que foi o autoritarismo e sua sombra que se espraia no mundo de hoje, vide mães e esposas que perdem maridos e filhos para a violência urbana, o estado não declarado de guerra civil que determina exílio social. No contexto político, a simbiose é emblemática, ainda, quando o Brasil tem uma ex-guerrilheira na Presidência da República e políticos ditos de esquerda ou socialistas respondem pelo mesmo cargo na América do Sul.
Não surpreende a capacidade de o ÓI Nóis garimpar a beleza da arte e das ideias a partir do precário. Contrapõe semeaduras dialéticas da arte e da cultura ao discurso medíocre do Capitão da peça que brande o fertilizante como milagre para apagar o passado recente e seus mortos, o Capitão para quem o exército cumpre ali o papel de servidor do povo. A profunda e singular atmosfera experimentada no novo espetáculo em gestação nos faz prenunciar em andamento um projeto radical em termos da linguagem que o grupo nutre no seu Teatro de Vivência. Radical na acepção do que provém da raiz, feito o milho que, na peça, sustenta as camponesas e as crianças abandonadas à sorte na terceira margem do rio.
(junho de 2011)
[1] DORFMAN, Ariel. The resistance trilogy. Nick Hern Books Limited: Londres, 1998.
[2] Idem. Viudas. Cidade do México: Siglo XXI Editores, 1981, p. 173. Todas as citações, esta e as que seguem, foram traduzidas pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz.
[3] Lembrando que em agosto de 2008 a Mostra Ói Nóis Aqui Traveiz: Jogos de Aprendizagem já apresentava a encenação Viúvas: um exercício cênico sobre a ausência, uma livre adaptação da obra de de Ariel Dorfman e Tony Kushner com participantes da Oficina para Formação de Atores da Escola de Teatro Popular da Terreira da Tribo.