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Antunes vai encenar ‘Nossa cidade’

17.3.2012  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Jairo Goldflus

No final da peça Nossa cidade, do norte-americano Thornton Wilder (1897-1975), um homem já morto compartilha com uma mulher – cujo coração também parou de bater e o fluxo inconsciente da dramaturgia a faz retornar ao aniversário de 12 anos – o aprendizado de que existir é “mover-se dentro de uma nuvem de ignorância”. O texto que Antunes Filho prevê montar este ano, no marco das três décadas do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, possui conteúdos e estruturas correlacionados à essencialidade que o criador defende para o trabalho de ator e a cena que o envolve. “O ator tem que ser também um intelectual”, diz. A obra inspira o diretor a criticar a ascendência da cultura de massa no país e, enquanto cidadão, a perceber com ceticismo o crescimento econômico para o qual sobra “orgia” e falta realidade.

Ele mesmo um iconoclasta diante da expressão em arte, da recepção crítica, do sistema de cultura do país, dos comportamentos da sociedade em geral, Antunes trabalha na livre adaptação daquela narrativa conduzida justo por um diretor de cena: espécie de semideus a pairar sobre as miudezas cotidianas dos moradores de uma pequena cidade pousada no pico de uma colina. Os três atos da obra de Wilder compreendem os primeiros anos do século XX e perpassam os estudos, a juventude, o casamento, o estalo da finitude e o revisionismo tardio do caráter, das atitudes e escolhas que pontuaram o tempo de homens e mulheres da classe média americana conservadora e protestante. Tocam a essas histórias a grandeza dissimulada das pequenas coisas, a dignidade do homem comum mostrada não por seus atos excepcionais, mas pela simplicidade do dia a dia. Quando a garota indaga aos mortos se alguma criatura pode compreender a vida enquanto vive, o diretor de cena responde: “Não. Os santos e os poetas, talvez, um pouco”.

Aos 82 anos, Antunes Filho alimenta a mesma obstinação pelo palco assimilada desde o final dos anos 1950, quando aprendiz dos diretores estrangeiros que alicerçaram o Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC. Nesta entrevista ao Valor, ele ainda prefere falar pouco a respeito de Nossa cidade, em fase de ensaios, e concentra-se no lendário espaço de formação de atores mantido desde 1982 pelo Serviço Social do Comércio, o Sesc-SP, no sétimo andar da unidade Consolação da capital paulista. Já passaram por lá Luís Melo, Giulia Gam, Marco Antônio Pâmio, Silvia Lourenço, Sabrina Greve, Juliana Galdino, Suzan Damasceno e outros.

O concorrido curso gratuito anual do CPT (a relação candidato/vaga para 2012 foi 35) oferece uma introdução ao método de ator sistematizado por Antunes e seus discípulos ao longo dos anos. O ator e diretor Emerson Danesi é o que mais colabora diretamente com ele, há 15 anos, e reconhece nas atividades pedagógicas também um laboratório para compor elencos dos espetáculos do Grupo de Teatro Macunaíma, núcleo cooperativo batizado assim após a recriação cênica de Antunes para a rapsódia Macunaíma, de Mário de Andrade, estreada em 1978. Recentemente, foram adaptados outros dois romancistas, Ariano Suassuna (A pedra do reino, 2006) e Lima Barreto (Policarpo Quaresma, 2010).

A formação humanista é bastante valorizada no CPT. As leituras passam por saberes da filosofia, psicologia e física quântica. Tanto que um dos ex-participantes acabou enveredando pelo estudo do Torá, o livro as escrituras religiosas judaicas. Assim como há moças e rapazes que viam o cinema sob a perspectiva dos blockbusters como Robocop e saíram venerando Bergman, Visconti, Sokurov. Antunes é amante da sétima arte e diretor de um filme só, Compasso de espera (1969), tendo rodado dezenas de teleteatro.

Outra demanda do CPT é a série Prêt-à-porter, que vem possibilitando aos egressos dos cursos, desde 1998, criar peças curtas nas quais são responsáveis por conceber desde os figurinos e objetos de cena até a dramaturgia, tudo sob supervisão de Antunes. Aconteceram dez edições até agora, cada uma condensando três trabalhos. Essas jornadas viraram o xodó de Antunes, homem teatral até nas falas e gestos, sem perder o fôlego. “Às vezes tenho que ser duro para ajudar, não para exercer poder. Posso errar, mas estou a toda. Não paro. Eu tenho que honrar o teatro.”

A conversa a seguir acontece ao redor da pequena mesa atrás da qual Antunes costuma sentar como se num posto avançado de onde lança seu olhar periscópico sobre o trabalho de ator, aqui acompanhado por Danesi, que também faz as vezes de produtor executivo e inclusive dirigiu o musical Lamartine Babo (2009), com roteiro de Antunes.

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Do final dos anos 1990 para cá, o CPT deixou de ser um espaço indevassável. As peças das jornadas Prêt-à-porter, aqui exibidas, e a sua postura de delegar a direção e a dramaturgia aos discípulos contribuíram para isso?

Antunes Filho: Claro. Ele [aponta para o Emerson Danesi, que o acompanha] é a pessoa mais responsável pelo Prêt-à-porter do que eu. Ele é o pai, ele que leve adiante. Passei para ele, mas fico em cima, encho o saco [risos]. Aquela fase anterior era de depuração das técnicas e conteúdos desses anos todos. Era necessário o entendimento para fazer com que as engrenagens se combinassem, se encaixassem completamente. Corpo, voz, filosofia, espiritualidade, metafísica, tudo isso se encaixa. Hoje, quando falo de um tema ou de uma teoria conseguimos vincular facilmente com outras áreas. Antigamente, era parcial, não tínhamos o outro lado. Faltava a dialética. Agora, temos a tese, a antítese e a síntese. E mais algumas coisas [risos]. Somos mais afetados e interessados pelo mundo lá fora. A gente escuta.

Qual o perfil dos ingressantes?

Emerson Danesi: A seleção passou a incluir a análise de currículo. Antigamente, o curso era aberto a todo mundo, desde quem queria se desinibir até aqueles inscritos que conheciam a história do Antunes e se afinavam com a estética dos espetáculos dele. Para este ano, houve cerca de 700 inscritos e 310 foram chamados para entrevistas. São 20 vagas. A maioria vem de faculdades ou escolas de artes cênicas de São Paulo, da Unicamp, da ECA-USP, do Indac, do Célia Helena, da Escola Livre de Teatro de Santo André. Virou quase uma espécie de especialização.

Antunes Filho: É gozado. Só dá isso. E tem pessoas que também fazem curso no exterior e vêm aqui, pedem bolsa. Ficou maior a nossa responsabilidade diante das funções sociais e culturais de uma instituição do Sesc. A responsabilidade diante do outro, a alteridade diante de cada um que chega aqui. Sabemos que o método é uma coisa muito legal. Eles vêm procurar isso, uma nova maneira de realmente alçar voo no teatro. São quatro meses de duração, com aulas quatro dias por semana trabalhando corpo, voz, dramaturgia, além das sessões de filmes da nossa videoteca.

Emerson Danesi: O CPT equivale a uma introdução ao método de ator. Transmitimos tudo que temos possibilidade em quatro meses, tentando desenvolver esse aluno para, quem sabe, o Antunes aproveitá-lo numa próxima peça. A busca é essa.

 

Antunes Filho: A gente não quer resolver o cara como ator, nós queremos encaminhá-lo para ser ator. Dar a ele problemática sobre as artes. O que significa ser ator. Não é simplesmente o palco, mas trabalhar filosófica e moralmente o que significa ser ator. É por isso que o CPT é procurado, ele dá essa outra dimensão. Tudo que se fala aqui tem que se provar. Não se pode falar em nada teórico sem ter uma resposta prática, na hora. Não posso falar bulhufas se eu não fizer bulhufas.  Tenho que provar tudo com o meu corpo e com a minha voz. Nós estamos num combate acirrado contra a projeção, por exemplo.

Como define projeção?

Antunes Filho: É você falar gritado, como todo o teatro está falando atualmente [balbucia com esgares]. Na projeção, o gestual é fruto da ansiedade do ator, não do sentimento e da inteligência do ator.  Entendeu? É uma cruzada que tenho levado adiante. Quero mostrar que a projeção é uma patifaria, um mal cultural. O ator tem que saber que ele é um artista, não um funcionário do palco, eis a força do CPT. Eles nos procuram porque querem ser artistas. Maravilha! Depois têm a vida inteira para desenvolver. Eles começam a ter uma alegria em saber que podem viver a vida deles. Podem lidar com o seu interior e com o universo. O meu processo é libertário: liberta das amarras do mau profissionalismo, da má informação.

Como vê a formação de ator, as escolas propriamente ditas?

Antunes Filho: Não caio mais nessa provocação. Eles são eles, nós somos nós. Cada um tem sua maneira de ser, o seu caráter, a sua pedagogia. Nós temos a nossa. Respeitamos.

Na capital paulista, quem está por trás de alguns desses estabelecimentos são justamente pessoas que tiveram parte da sua formação pedagógica vinculada ao Grupo Macunaíma, ao CPT. Como Lígia Cortez na Escola Superior de Artes Cênicas Célia Helena, o Ulysses Cruz no Globe-SP, o Maucir Campanholi no Indac…

Antunes Filho: De uma maneira ou de outra, todas as pessoas que trabalharam comigo, mesmo quando brigaram e voltaram depois de um tempo, e nos desculpamos, elas reconhecem que demos uma coisa a mais além de teatro. Nós demos uma luzinha espiritual para eles não serem bucha de canhão. Eles são gente, e gente tem que respeitar. É isso que eu quero. Às vezes não são os outros que não respeitam o ator, mas o próprio ator que não se respeita. Ele se deixa levar pelo fácil, perdendo a melhor coisa que ele tem – a sua espiritualidade. Mesmo os antigos participantes do CPT, quando o método estava incipiente, eles sentiram que existe uma coisa que nós demos força espiritual para cada um se desenvolver e ser livre, independente. A melhor coisa do mundo é ser criador. Mas para um criador precisa ser autêntico consigo. Tem que desenvolver outras coisas, e não somente o mundo comercial que aí está.

Como se dá o trânsito de um aprendiz do CPT para os espetáculos do Grupo Macunaíma? A rotatividade de atores é um problema para o núcleo?

Antunes Filho: Sempre fica alguém para passar a experiência aos demais. Houve o Cacá Carvalho, o Luís Melo, a Juliana Galdino… Sempre tem que ter uma espécie de peixe-guia [hoje, possivelmente a cargo do ator Lee Thalor]. Quanto ao curso, a gente provoca os participantes a criar para o Prêt-à-porter. A prova se dá na cena, vemos os melhores. Nem todo mundo tem talento igual. Talento é gradativo, dá muito trabalho. Imagina que uma cena curta pode levar até oito meses para ficar pronta. Nos textos feitos por eles, quando selecionados, não tem diálogo burro. O diálogo tem que ser uma síntese poética. Nesse campo da dramaturgia, estamos experimentando novas maneiras de criar e refletindo sobre a narrativa épica em Brecht, o pós-dramático contemporâneo e outras variantes.  Fazer espetáculo é a coisa mais fácil, o difícil é preparar os atores para a cena e para a escrita teatral.

É comum o CPT/Grupo Macunaíma iniciar processos criativos e abandoná-los após meses de ensaios. O descarte é inerente à pesquisa, ao risco?

Antunes Filho: Faz parte. Eu fiz um espetáculo sobre o Irã e o Iraque. Era lindo, mas os atores eram muito jovens. O projeto não grudava. Só podia ser feito por um elenco de pessoas com mais de 40 anos. Era um espetáculo feito de quietudes, usava a língua russa. O ator tinha que ficar parado e convencer, como num depoimento. O personagem está perto de uma estação ferroviária, esperando o trem, a mala do lado. O ator tem que levitar, mudo. Um moleque não consegue fazer isso. Faltou esse húmus, o princípio do yin corrosivo. Enfim, para fazer esse tipo de espetáculo é preciso muito silêncio. Jovens geralmente não têm isso, a densidade do silêncio. Os mais velhos são mais pacientes para sentar num parque e olhar para o nada, observar uma minhoca durante horas. As cenas se passavam em praças, becos, aeroportos do Iraque, em meio a bombas. Um tema forte e bonito, mas não havia densidade. Fiquei triste e precisei abandonar.

Um encenador precisa ser corajoso para saber recuar?

Antunes Filho: Eu posso me enganar se eu quiser, mas não me interessa fazer isso. Eu não faço espetáculo para mim. Eu faço para todos, interessa-me comunhão. Não vou me masturbar… Cada vez mais eu entendo o vazio e o silêncio. Gostava de cinema japonês quando era moleque. A morte está contida dentro do silêncio, do vazio, dos espaços, das esferas. É lindo isso, essa perplexidade. Mas estamos acostumados a isso? Vivemos numa brutalidade total, numa cavalaria, num tropel. Mas eu acho que está havendo um retorno. A internet já está começando a encher o saco, notebook, essas bobagens todas. Na Europa e nos EUA as pessoas já estão voltando para a sua aldeia. Volta ao teatro do homem, e não ao teatro da orgia do modernismo ou do pós-modernismo. Do contrário, o mundo fica sem graça, você perde o sabor das coisas.

Como vai a prospecção para a peça do Thornton Wilder?

Antunes Filho: Estou trabalhando numa adaptação mais ou menos livre, uma coisa meio Derrida, meio desconstrução, um diálogo com a própria peça, o autor.

Nossa cidade tem elementos que instigam bastante em relação ao trabalho que virá. A figura do diretor de cena, esse olhar a partir da província para o mundo, os elementos do jogo sugestivamente naturalista do texto, se a gente pensar no que tem sido apresentado nos Prêt-à-Porter. Pode pincelar mais?

Antunes Filho: Estou em processo ainda. Eu sei que é um diálogo com Thornton Wilder. Eu sei que ele era um cara legal, ele tem uma tendência crítica muito suave, mas ele tem. Afinal de contas, ele está falando também dos EUA, o país mais rico do mundo. Agora, talvez não. Mas mesmo com a crise econômica, os EUA seguem mandando.

Como o sr. percebe o crescimento econômico do Brasil nos últimos anos?

Antunes Filho: Na hora em que o Brasil levar uma fubecada, aí vamos acordar definitivamente. Porque você viver da terra, do petróleo, da agropecuária, é uma coisa. Agora, não estou vendo o Brasil industrialmente em progresso. Eu não estou vendo as estradas rodoviárias, todas são mal construídas. Dá uma chuva e acabam de arrebentar. Nosso superávit, o PIB, vem de onde? Vem da terra e do petróleo? É isso que estamos fazendo. O que estamos fabricando? Nós vendemos a matéria prima para eles e compramos depois o produto feito? É de uma imbecilidade total. Nós estamos ferrados, bicho. Essa festa vai acabar uma hora.

Desde o final de 2011 especula-se nos bastidores de Brasília a substituição da ministra da Cultura, Ana de Hollanda. Um dos cotados seria o diretor regional do Sesc-SP, Danilo Santos de Miranda, que institucionalizou o CPT…

Antunes Filho: Eu não quero que ele vá…

Mas ele já declarou refletir sobre essa possibilidade.

Antunes Filho: Eu duvido que ele vá. Ouvi falar que Marta Suplicy também está cotada. Sabe por que eu acho que ele não vai aceitar? Os altos escalões são muito ciumentos e vão criar muita encrenca. Ele vai perder tempo e se desgastar com bobagens pessoais. Tem muita intriga palaciana, um é contra o outro e o outro é contra o um. No Sesc não, ele está desimpedido. Por que vou cortar as asas dele se ali ele pode ser mais útil para a cidade, para o estado, para o país?

Você acha que o problema da política cultural no Brasil é de gestão?

Antunes Filho: Você vê o estado de corrupção que o país vive. O protecionismo que existe neste país. Você acha que a pessoa realmente vai poder agir? Você viu a recente movimentação em torno dos aeroportos comandados pela Infraero? Sete ministros caíram em um ano. É muito difícil trabalhar assim. E o empecilho é o próprio homem. A corrupção não é brasileira, mas internacional atualmente. Eu prefiro ver o Danilo tranquilo e sossegado, ele com seu violino, do que espumando ao telefone. É um grande homem. Seria maravilhoso ele ir para lá, mas não vai dar certo agora. O Brasil está num momento muito perigoso. A turma está numa euforia louca e numa inadimplência louca. Vivemos numa das quatro cidades mais caras do mundo. Um apartamento aqui pode ser trocado por dois em Nova Iorque. Tem lugar em São Paulo que está cobrando R$ 8,00 o cafezinho. A realidade não foi contada, a ficha não caiu ainda. Uma hora ela vem. As grandes universidades brasileiras só aparecem depois da ducentésima posição no ranking das melhores no mundo. Ora, como você quer fazer um grande país com uma universidade precária como a que nós temos? São elas que formam a consciência do país. Por isso eu tenho a impressão que essa orgia não é eterna.

>> Leia a edição desse texto para reportagem publicada no jornal Valor Econômico em 13 de fevereiro de 2012.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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