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(artigo originalmente escrito para o catálogo do 2º Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, realizado de 5 a 15 de setembro de 2012)

 

Por Valmir Santos

 

No seminal estudo Mito y Archivo – Una teoría de la narrativa latinoamericana (1), o mexicano Roberto González Echevarría aproxima os primeiros escritos sobre a região (legado daqueles que testemunharam criminosos e conquistadores, séculos atrás) dos procedimentos de criação verificados no boom da ficção latino-americana a partir da década de 1960. Os romancistas como que rastreiam conflitos, mitos e traumas. Colaboram para gerar uma imagem literária do continente, em pleno período das conflagrações institucionais que maculam as democracias de turno. Os primeiros indícios saltam das páginas de Os passos perdidos, do cubano Alejo Carpentier, uma imersão arqueológica na Amazônia indígena, contrastando o modus vivendi daqueles povos e o dos ocidentais. Já em O jogo da amarelinha, do argentino Julio Cortázar, despontam os capítulos que podem ser rearranjados, textos que lançam mão de recortes de jornal como fonte. Em Cem anos de solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, a noção de arquivo funda o romance, enquanto em O general em seu labirinto, do mesmo autor, a figura central é o general venezuelano Simón Bolívar, que encabeçou as guerras de independência da América espanhola, um livro consubstanciado por um numeroso acervo de cartas.

E por aí vão os palimpsestos históricos, estéticos e estilísticos de um tempo em que os escritores eram impelidos pelas tensões sociais em âmbitos ditatoriais e revolucionários sem que os temas oprimissem a experimentação formal. Em entrevista recente a um jornal brasileiro (2), inspirada pela reedição da obra de 1990, o ensaísta Echevarría declara desconfiar que sua mente processa de modo mais poético que teórico, quando recorre à expressãochave de seu livro, pois gostaria de acreditar ser inspirado pela etimologia da palavra archivo, mistério, origem, que por sua vez está entranhada em architectura, construção que contém coisas.

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Um conjunto significativo de espetáculos deste 2º Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos expõe um eixo documental que, a um só tempo, corresponde e reinventa as estratégias dos romancistas aninhados sob a rubrica do realismo mágico, de tintas surrealistas. Estão em pauta o arquivo e a memória. O narcotráfico, o totalitarismo e a corrupção, por exemplo, são tópicos determinantes para um segmento da produção que instaura dialética e sopesa outras latitudes da linguagem, como a erosão da fábula e do estatuto do personagem. Criações tangenciais ao teatro documentário, aquele que “não aspira a reproduzir exatamente um fragmento do real, mas a submeter os acontecimentos históricos e atuais a uma explicação estrutural, recorrendo para isso à formalização radical”, como define o respectivo verbete em dicionário organizado pelo francês Jean-Pierre Sarrazac (3). E são múltiplas as gradações históricas, políticas e sociais nas abordagens do real.

Os núcleos mexicanos Grupo Teatro Línea de Sombra, El Milagro e Carretera 45 Teatro, o paraguaio Grupo Hara Teatro e o peruano Grupo Cultural Yuyachkani vão aos fatos bem como os analisam e os dissociam do real e os sintetizam dialeticamente como memória em cena. Aproximam-se de um “documental imaginário”, como alguns pesquisadores da fotografia contemporânea definem um registro que tanto documenta a realidade como também pode inventar livremente um mundo paralelo ficcional, injetando doses consideráveis de subjetividade (4).

 

A obra Sin título, técnica mixta, do Yuyachkani, é emblemática do dispositivo arquivo na conjunção tempo e espaço. Adentramos um galpão cênico, que sugere um museu e os “quadros” e “esculturas” redivivos remontam à historiografia peruana de 1879 a 2000. A instalação cênica já diz a que veio no marco de sua estreia, em 2004, no bojo da Comisión de la Verdad y Reconciliación (mecanismo que esmiúça violações aos direitos humanos e cujo congênere o Brasil vê acionado somente há cinco meses). O grupo revolve o passado do país e sua própria autobiografia, sua identidade artística, modulada pelo diálogo com a tradição, e a busca por caminhos desconhecidos; lá se vão mais de 40 anos de atividades. Artes plásticas, performance e teatro são entrelaçados num território de invenção e reinvenção permanentes.

Rememorar é também o lema do Hara Teatro em Cenizas, que integra o Proyecto Intercultural Tierra sin Mal. O espetáculo adota o ponto de vista da mulher para falar da sobrevivência e da resistência do povo paraguaio durante a Guerra da Tríplice Aliança ou Guerra Grande, mais conhecida por aqui como Guerra do Paraguai (1864-1870), quando Brasil, Argentina e Uruguai devastam uma nação desenvolvida, para os padrões do século XIX na América do Sul.

Contexto mais premente mobiliza o Grupo Teatro Línea de Sombra em Amarillo: a migração na fronteira do México com os Estados Unidos. O assunto é explosivo e a denúncia vem a reboque da inventividade poética transbordante na dramaturgia e na cena, que dá margem ao teatro físico, o vídeo e a dança, bem como a outras variantes.

A violência é olho por olho, dente por dente em Los asasinos, fruto da união dos agrupamentos El Milagro e Carretera 45 Teatro. Vítimas e algozes são demarcados pela vingança, pelo achaque, pelas dívidas, pelas disputas de território. Uma caverna, muquifo nos arrabaldes, serve como metáfora ao alijamento das mínimas regras de cidadania, uma espécie de tribunal paralelo. A intolerância e a barbárie no subterrâneo do tráfico e na superfície da sociedade mexicana estão nas bases do pensamento desses criadores.

Opção declarada pelo realismo e inclinação para o naturalismo, vertentes tratadas de soslaio no teatro de pesquisa, porque seriam tributárias de um teatro burguês ou afins, eis os parâmetros daquela que, surpreendentemente, é uma das mais jovens companhias desta programação, a colombiana La Maldita Vanidad. Sua trilogia Sobre algunos asuntos de família constitui um sopro de vitalidade pela coragem temática: a violência dissimulada ou explícita, intramuros, como espelhamento dos níveis institucionais daquela convulsiva sociedade e seu embate com o narcotráfico. Pela investigação de dramaturgia própria (a economia dos silêncios em diálogos curtos, incisivos, bem-humorados, irônicos, terrivelmente tristes). E pela adoção de espaços não teatrais (cômodos de uma casa, com a paradoxal intimidade do espectador cúmplice, oferecendo uma lente de aumento sobre o seu papel voyeur). Esse projeto é a prova de que o teatro realista não é sinônimo, necessariamente, da realidade objetiva, mimetizada. Suas “torções, transposições e transformações” (5) são o seu sangue na veia.

 

A imaginação está no poder nos flertes com a “realidade” e o “real” nas produções do Grupo Actoral 80, da Venezuela, e Compañía Els Joglars, da Espanha. Ambas encaram o nervo exposto das políticas públicas para a cultura, via de regra precárias e fatidicamente atingidas ao primeiro sinal de luz vermelha nos cofres do Estado. No caso de Acto cultural, dos venezuelanos, uma instituição de fomento à arte é colocada em xeque, quando seus diligentes montam uma ode a Colombo, expondo indiretamente que a exploração não é condição apenas de colonizadores. Já em El nacional, dos espanhóis, o veterano lanterninha de um decadente teatro de ópera articula reerguê-lo com Rigoletto, de Verdi. Para tanto, seu corpo “instável” é formado por indigentes, uma crítica velada à elitização dos subsídios na Europa, onde a crise financeira dos últimos meses só a faz escancarar ainda mais.

Quanto à representatividade brasileira neste MIRADA, ela segue direção oposta à do aporte histórico predominante nos coletivos internacionais. Das 17 criações, apenas duas localizam diretamente o tempo e o espaço da narrativa e se deixam impregnar pela respectiva época. Em Hysteria, o Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, aborda a presença da mulher na sociedade do século XIX cotejando boletins de ocorrência na cidade do Rio de Janeiro, laudos médicos de um hospício, jornais, anotações íntimas, retratos posados e tirados por mulheres, diários publicados e cartas esquecidas. No caso de Histórias de família, com o Grupo Amok Teatro, do Rio, a peça da sérvia Biljana Srbljanovic captura o ambiente da guerra que assola a região dos Balcãs nos anos de 1990 sob a ditadura de Slobodan Milosevic. A montagem encerra a trilogia do núcleo em torno de conflitos étnicos, religiosos e civis, em que as perspectivas humanistas são sempre soterradas.

 

Isso não quer dizer que os demais espetáculos ou intervenções nacionais não examinam temas políticos nos planos do indivíduo e da comunidade, como a diferença de classe, a fome e os embates geracionais. Mas esse panorama pode ser sintomático do quão as artes cênicas brasileiras resistem em problematizar a realidade histórica do país com o mesmo ímpeto criativo e desbravador que investem na pesquisa estética. Há exceções (6), mas parte dessa tendência tem a ver com o delay do reconhecimento e do amadurecimento da sociedade quanto às dores da ditadura militar (1964-1985). A Comissão da Verdade brasileira foi instalada em maio de 2012, ou seja, 27 anos após o fim do regime de exceção. Daí decorre um passado ainda mais desbotado, porque subtraído, inclusive, da narrativa sobre o que aconteceu em todos os quadrantes, como se fosse possível ignorar as sequelas que aí estão.

 

Um encontro de artes cênicas com a magnitude deste Festival permite ler as entrelinhas do presente, suas latências. Instiga notar como criadores de diferentes pontos no mapa-múndi sincronizam na urgência do olhar atento aos percursos históricos de sua gente, localizando, em cada partícula do drama, a devida pulsão universal. Contra o apagamento, aflora o desejo de pertencimento. E nesse arco das singularidades, nunca é demais lembrar que o movimento em direção à cultura do outro – e cada obra encerra um universo em si – constitui ato político por excelência, quando todos os envolvidos assim toleram.

Site do Mirada

 

[1] ECHEVARRÍA, Roberto González. Mito y archivo – Una teoría de la narrativa latinoamericana. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1990.

[2] GUIMARÃES, Lúcia. Um olhar sobre as raízes da narrativa latino-americana. In: O Estado de S.Paulo, Caderno Sabático, 28.nov.2011, p. S4).

[3] SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 182.

[4] Exposição Documental imaginário – fotografia contemporânea brasileira, de 24.jul. a 16.set.2012,  Oi Futuro, Rio de Janeiro, sob curadoria de Eder Chiodetto.

[5] SARRAZAC (org.), 2012, p. 157.

[6] Citamos núcleos que ancoraram o tema da ditadura militar em criações recentes: a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz com O amargo santo da purificação (2009), em Porto Alegre, no Sul do país; a Companhia do Latão com Ópera dos vivos (2010) e o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos com Orfeu mestiço – uma hip-hópera brasileira (2011), ambos em São Paulo, no Sudeste; e o Grupo Alfenim com Milagre brasileiro (2010), em João Pessoa, no Nordeste.

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(Artigo publicado originalmente na A[l]berto – Revista da SP Escola de Teatro, n. 2, 2012, pp. 61-65)

 

Toda ela endereçada ao futuro, e é assim desde que foi plasmada no final do século XIX, a obra de Anton Tchekhov ecoa no presente com a mesma perspectiva de sempre: falar aos que virão. No caso particular do primeiro encontro criativo do Grupo Galpão com o escritor russo, traduzido em dois espetáculos ao longo de 2011, é inevitável retroagir à linha dos trinta anos do núcleo, completados em 2012, e refletir como os atores basilares e os diretores convidados foram afetados por essas palavras impregnadas de humanismo filosófico desde o espasmo consciente até o abismo do delírio.

 

Inicialmente, versamos sobre Tio Vânia (aos que vierem depois de nós), a montagem de Yara de Novaes (1966), artista nascida no mesmo berço mineiro do Galpão, Belo Horizonte, e baseada profissionalmente em São Paulo. Em seguida, sondamos Eclipse, encenação de Jurij Alschitz (1947), de origem russa, atualmente radicado em Berlim.

 

O elenco fixo foi dividido. Seis atuaram no primeiro trabalho, tendo se somado a eles uma atriz convidada, enquanto cinco protagonizaram o segundo. Ou seja, dos treze intérpretes constituintes do conjunto, dois não participaram dos projetos[1]. Friccionar as respectivas experiências é o desejo deste artigo.

 

Após a primeira noite de Tio Vânia[2], em Curitiba, anotamos que o encontro do Galpão com Tchekhov pedia aos atores movimentos de interiorização e exteriorização complementares para correlacionar os continentes expressivos sugeridos pela dramaturgia e pelo grupo que a visitava[3]. A intersubjetividade está para a peça assim como o teatro popular está para a linguagem do circo, da rua e da música, entre outros campos. No palco italiano, os atores ora confluem para uma terceira via ora retomam a pista mais segura, reconhecida pela memória corporal das últimas décadas.

 

Emblematicamente cofundadores do Galpão (1982), Antonio Edson, no papel-título, e Eduardo Moreira, como o médico Ástrov, sintetizavam em suas presenças o desvio de estilo para penetrar a atmosfera crepuscular do drama. A adaptação do texto assinada pelo próprio coletivo valoriza as brechas de comicidade que Edson concilia perfeitamente com ar peripatético e gestualidade afins. Porém, em sua estatura de pouco mais de metro e meio, a máscara natural de comediante, ele tem dificuldade em corresponder à outra face desse tio Vânia cuja alma também desponta dilacerada em muitas passagens.

 

Moreira, por sua vez, esculpe com mais naturalidade a contenção física e inquietação espiritual do jovem conhecido da família que introduz o pensamento científico e prognostica os malefícios do homem para com o planeta. O que não o impede de ser arrebatado quando se vê enamorado da mulher do professor em visita, sujeito ególatra que vem da cidade e põe de ponta-cabeça o cotidiano daquela casa de campo ameaçando vendê-la. De maneira menos evidente, essa gangorra de registros entre Edson e Moreira perpassa os demais atores em suas buscas.

 

Transparecia flagrante, na estreia, uma interpretação tateante em paradoxo com a ênfase conceitual do espaço cênico coassumida pela diretora Yara de Novaes e pelo cenógrafo Márcio Medina. A encenação soa mais comedida na filiação estética do trabalho de ator no Galpão e intervém com veemência na combinação dos recursos visuais e sonoros. Medina concebe uma fragmentação genial dos cômodos da casa em colunas-vitrines autônomas que contêm a configuração e os objetos de uma biblioteca, uma cozinha, uma sala de estar, um corredor, etc. Todas deslizantes e deslocadas pelos atores no tablado vazio.

 

O outono da vida dos personagens que ali convivem surge representado por um galho seco na abertura do espetáculo, uma perspectiva oriental. Soma-se o diálogo dramático da luz de Pedro Pederneiras (Grupo Corpo). e a ambientação sonora, incidental e com ecos, desenhada por Dr. Morris. São todos signos sofisticados que rompem com as convenções do silêncio e da inação nas peças do autor, imprimindo outras camadas ao texto de 1897.

 

Sete meses depois, quando da temporada paulistana[4], o desempenho do elenco se revela melhor equalizado com o hábitat sonoro-cenográfico, sobretudo com o tio Vânia de Antonio Edson mais introvertido e equilibrado na alteridade do humor pertinente em dramaturgo comumente sublinhado pelo tom grave nas montagens brasileiras.

 

As proposições investigativas do ator e do espaço mostraram-se mais surpreendentes ainda em Eclipse[5]. A encenação evita resíduos identificáveis daquele Galpão memorável de Romeu e Julieta (1982), para citar a obra-prima dirigida por Gabriel Villela e levada às praças e parques. Essa quebra de expectativa diante da identidade reconhecível é, de largada, um corajoso trunfo do grupo de atores.

 

Como é de praxe na sua trajetória convidar diretores a cada nova produção, revezando com integrantes que também assumem a função de quando em quando, dessa vez o núcleo teve em Jurij Alschitz um interlocutor incondicional. Sua determinação autoral engloba direção, dramaturgia, cenografia, figurino e treinamento dos cinco cocriadores. Como estrangeiro de fato e de efeito, ele imprimiu um processo criativo que desbastou as técnicas dominadas e prospectou noções de jogo e de energia desestabilizadoras para dialogar com dezenas de contos de Tchekhov, alguns deles sinalizados mais explicitamente na encenação.

 

Um exemplo de descolamento é a utilização diminuta da música. O elenco de Eclipse não toca instrumentos e praticamente não canta – a única incursão de um acordeão serve à ilustração dos teclados para a máquina de datilografar. Não há uma história linear a ser narrada. Fragmentos de curtos enredos ficcionais misturam-se a lampejos meditativos sobre os destinos da humanidade, da arte, do teatro, do grupo e da própria peça – o metateatro como elogio do caos. A desordem no conteúdo avança rente à forma. O diretor russo brande as ideias de outro compatriota para recriar Tchekhov sem os clichês de recepção que costumam cercar os clássicos. Cenário e figurino apoiam-se na abstração geométrica de Kazimir Malevich (1878-1935), catalisador do neorrealismo pictórico no qual as cores puras, como o preto e o vermelho, são aplicadas sobre fundo branco em desenhos como o círculo, o quarado e o triângulo – sem finalidades práticas, a priori, abrindo-se ao flanco poético da visualidade plástica que fala ou desdobra por si.

 

É nesse território autônomo, um espaço não convencional e perpendicular – na parede erguida à esquerda jorra um feixe de luz branca por uma porta –, é nesse lugar de incertezas alinhadas que os cinco atores precipitam em ações performativas que podem ter relação com a própria sequência ou servir à do colega. Há uma beleza comovente nesse quinteto transfigurado pela destreza da linguagem sem peia. Simone Ordones, por exemplo, está irreconhecível nas novas chaves e códigos que garimpou para o rosto e o corpo de suas figuras futuristas, despidas de vestígios sociais e políticos, mas ainda assim demasiado humanas nos seus estranhamentos.

 

Por trás da ilogicidade aparente, da hermenêutica provocadora de Alschitz, há um rigor atávico capturado pelo modo de os atores enunciarem, caminharem, contracenarem ou interagirem com o público sem condescender. O espetáculo demonstra que há outras formas nada óbvias para questionar felicidade, Deus, pecado, talento, herança, ruptura e os ofícios de fato e de viver. Inclusive exercer autocrítica com um sentimento de integridade artística que é inequívoca ao Grupo Galpão.

 

A Viagem a Tchekhov, como batizado o projeto de fôlego, trouxe inquietações colaterais aos artistas, aos espectadores, aos pesquisadores e à crítica quanto à dimensão do popular, em chave contrária, no teatro desse núcleo referencial. Uma vez que a rua e o palco foram esquadrinhados com tanto esmero nas últimas três décadas, os sistemas trazidos à tona, sob as égides de Novaes e de Alschitz, permitem vislumbrar outras dimensões do fazer e do saber artísticos do anfitrião que tinha consciência da empreitada[6] que é perder o eixo e, portanto, não deve ignorar o risco no horizonte e o benefício do contraditório na arte. O Galpão já deu prova disso em sua incursão pelo romance O visconde partido ao meio, de Ítalo Calvino, recriado pela direção do ator Cacá Carvalho em Partido (1999), até hoje a montagem mais “impopular”, possivelmente o “fracasso de público” mais produtivo para o crescimento de seus  atores na cruzada pela década seguinte e por outras que virão[7].



[1] Beto Franco e Rodolfo Vaz não participaram dos espetáculos.

[2] Tio Vânia (aos que vierem depois de nós) estreou em 8 de abril de 2011, no teatro Bom Jesus, dentro da programação do Festival de Curitiba. Elenco: Antonio Edson, Arildo de Barros, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Paulo André e Teuda Bara.

[3] Argumentos extraídos de análise publicada originalmente pelo autor do artigo no blog do Teatrojornal- leituras de cena, em 11 de abril de 2011.

[4] O espetáculo Tio Vânia (aos que vierem depois de nós) foi apresentado de 3 a 20 de novembro de 2011 no Sesc Vila Mariana, São Paulo.

[5] Eclipse estreou em 3 de dezembro de 2011, no Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte. Elenco: Chico Pelúcio, Inês Peixoto, Julio Maciel, Lydia del Picchia e Simone Ordones.

[6] “(…) assumimos o risco do mergulho em uma linguagem que não nos era familiar. O risco de buscar um espetáculo que diga algo para nós, inseridos no presente, mas com olhos no futuro. Um risco que dê sentido ao nosso trabalho”, lê-se no programa de Eclipse.

[7] “Como toda a experimentação de valor, a ficha demorou algum tempo para cair e, vendo a montagem com os dias de hoje, acho que o Partido nos ajudou a ser mais simples nas coisas, a querer interpretar menos e ser mais. (…) Cacá nos ajudou a desconfiar das emoções e desconstruir certa idealização romântica do mundo do teatro”. Eduardo Moreira, Grupo Galpão: uma história de encontros, Belo Horizonte:, DUO Editorial, 2010, p. 105).

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(Artigo publicado originalmente na revista online Sala Preta, do Departamento de Pós-Graduação em Artes Cênicas da ECA-USP, v. 1, ed. 12, 2012, seção Dossiê Espetáculo)

 

No limiar da sua segunda década de história, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos elabora na cena a passagem dos tempos próprio e ancestral. Em Orfeu mestiço: uma hip-hópera brasileira, parte dos atores remanescentes da origem do grupo, no ano de 2000, inscreve no corpo, na palavra, na voz, na escuta e na percepção de mundo a maturidade colhida no percurso. O traço mais distintivo nesse novo trabalho é a capacidade de deslocamento da urgência da cultura urbana do asfalto, burilada como linguagem, para o chão das tradições populares, principalmente das bordas rurais, desbravando outras pulsações e saberes do Brasil também índio, negro, caboclo, camponês.

 

O caminho não é exatamente novo, se considerada a afirmação da ascendência africana, portanto afro-brasileira, na base dos espetáculos e intervenções anteriores. Releituras de romance, poesia ou dramaturgia clássica, além de dramaturgia vertida essencialmente do seio do grupo, essas variantes do repertório sempre assimilaram, em alguma medida, aspectos culturais e sagrados. Agora, o coletivo avança, temática e formalmente, na extensão do território imaterial, alcançando contornos de uma nação quilombola, maracatu, irmanada. A fala-canto e o gesto-sonoro dos centros e periferias metropolitanas saíram do eixo primordial da cena para coexistir com outros vetores da formação brasileira, tornando os processos assumidamente mais complexos e anacrônicos, no sentido do tempo disposto e lido em fragmentos.

 

Para um projeto gestado na cidade de São Paulo, coração do capitalismo financeiro no país, é notável a abertura desses artistas para conversar com a tradição de outras paragens sem folclorizá-la, implicando, naturalmente, o que ela possui de desordem, como observa Antônio Risério:

Folclore é uma invenção das elites dirigentes, que foram etnia dominante na colonização do Brasil. Não existe folclore, existe cultura. Quando falamos em tradição, é melhor situar o problema num quadro mais amplo. O que interessa é a apropriação de realidades distantes, seja no tempo ou no espaço, verificando o modo como essa apropriação se dá em função de um presente social e com que objetivo ela se processa. (Risério, 1998, p. 250)

 

A dramaturgia e a direção assumem as quebras narrativas, a superposição de vozes, de imagens, o naco de fábula, a gravidade da pauta histórica revisitada – a ditadura cívico-militar –, enfim, estilhaçam a expectativa do gênero musical, quando se trata de Núcleo Bartolomeu, e permitem divisar outras partituras poéticas para além da cena. A autorrepresentação convicta em Acordei que sonhava, de 2003, e em Frátria amada Brasil: pequeno compêndio de lendas urbanas, de 2006, dessa vez soa apascentada, sem prejuízo da contundência, ao contrário.

 

O dilaceramento também é depreendido nas miudezas. A dor do outro fica patente na mediação do idealista e depois juiz Orfeu, em sua sede de justiça amortecida e depois reavivada; da brava professora Eurídice que não se deixa subjugar ao menor obstáculo, vide a determinação em erradicar o analfabetismo ou combater o regime opressor. Eles, Orfeu e Eurídice, a despeito da aura mítica presumida, se revelam personagens plausíveis e palpáveis no imaginário do povo brasileiro, esse oceano. O argumento tece, nos planos da realidade, da memória e do imaginário, a trajetória de um homem colocada no retrovisor ao receber a notícia da exumação do corpo da mulher desaparecida, precipitando sombras e infernos que não foram apagados.

 

Identidade, nação… A essa altura, “antropologizar”[1] o teatro, e vice-versa, pode ser uma livre associação atentadora. Porém, a escola de Eugenio Barba não constitui premissa nos procedimentos do grupo paulista adepto da estrutura épica desde que veio ao mundo. Ainda assim, Orfeu mestiço abre uma fresta considerável nessa perspectiva, provavelmente consciente. A interdisciplinaridade faz com que o sincretismo ritual tateado em experiências como Manifesto de passagem: 12 passos em direção à luz, de 2007, uma evocação à heteronomia de Fernando Pessoa, floresça aqui organicamente, dando lastro ao sujeito histórico e assegurando-lhe alguma unidade de subjetivação nas franjas do distanciamento. Há uma interioridade espiritual, um tom hierático no modo como os personagens e as figuras da peça resistem e insistem em tomar as rédeas diante dos contratempos vindos de fora, advindos da realidade invariavelmente em estado bruto.

 

São as atrizes protagonistas, mesmo quando em papéis masculinos (longe de reduzir à questão de gênero), as âncoras desses estados cosmogônicos que perpassam os elementos documentais e realistas dos quais essa história também é provida. Daniela Evelise (como Eurídice), Roberta Estrela D’Alva (como mestre de cerimônia, MC, e Griot) e Luaa Gabanini (como Maria Alice, Mãe do Dops) conspiram para desviar dos códigos fortíssimos da palavra e da música na cultura hip-hop: uma poesia outra, uma instância paralela e mais profunda entre a forma e o instante de criação. E esse horizonte é artaudiano:

 

Os processos mentais colocam em jogo forças elementares que estão na origem do cosmos. De um combate primordial, que o poeta vive em si mesmo, emergem as formas, que serão, por sua vez, devoradas por esse mesmo fogo. As palavras são expressões temporárias e evanescentes de um processo que lhe é subjacente. O ato artístico repete, num certo nível, o ato mítico da criação. Daí a proximidade entre a arte e o rito. (Quilici, 2004, p. 102).

 

As cosmogonias pedem ritualizações e a celebração órfica na escrita e na direção de Claudia Schapira potencializam esse lugar. Para tanta agonia que acomete o cidadão e o país em sua linha histórica, nos séculos de memória escrava ou nas analogias da contemporaneidade, há um eu-lírico, um nós-lírico que ajudam a suplantar com arte.

 

Observando o panorama retrospectivo do núcleo a partir da plataforma de 2012, o atual resultado parece mais representativo do que as produções citadas, quando imbuídas da discussão da identidade no país. Em Orfeu mestiço, a edição do vasto material levantado em cerca de três anos de pesquisa valoriza o discurso por meio da cena. A consciência crítica não está restrita à persuasão do rap. O silêncio é tão rumoroso quanto. Um blues sincopado pinta no ar a melancolia existencial do jovem Orfeu em seu labirinto, no que a interpretação acústica de Cristiano Meirelles, investida de sutilezas, dialoga com o seu duplo na vida adulta, por Eugênio Lima, DJ com contornos de pensador mesmo quando postado atrás dos toca-discos.

 

A disposição dominantemente coral e musical da cena de Orfeu mestiço guarda parentesco com a historiografia teatral brasileira em criações que retrataram grandes painéis históricos, políticos e sociais, justo no período da ditadura. Basta lembrar de Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, dobradinhas de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri; de Morte e vida Severina, o poema épico de João Cabral de Melo Neto musicado por Chico Buarque; ou ainda a Feira Brasileira de Opinião, que reunia textos de dramaturgos de proa, prenunciava manifestos diante do estado de coisas e, claro, foi censurada. Décio de Almeida Prado assim resumiu as peças ali previstas e depois publicadas em livro:

 

Falam de índios que são expulsos das matas pela civilização, de loterias esportivas e seus improváveis ganhadores, de perseguidos políticos que se despedem das amadas ao som de feiras livres e não de cotovias shakespearianas, de linchamentos realizados sem ao menos uma autêntica convicção sanguinária, de pobres camponeses explorados na cidade grande, de falsos moralistas, de publicitários que escondem no trabalho as suas frustrações morais e intelectuais, de um imenso túnel escuro que estaríamos atravessando… (Prado, 1978, p. 14)

 

No subtexto ideológico do Núcleo Bartolomeu, o braço erguido e o punho cerrado alinham-se à causa

da revolução, em seu sentido pleno, pelos que tombaram lutando contra regimes de exceção no passado, em defesa dos direitos humanos, políticos e sociais. A causa é ressignificada diante dos paroxismos da democracia no século XXI, suas fissuras violentas, por vezes, mais cruéis do que nos anos de chumbo – o engajamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e os resquícios do coronelismo estão entre os exemplos de atualização. Os versos do prólogo já evidenciam o desejo artístico de incitar “A quem nos assiste,/ a se juntar à nossa insistência-teatro/ por dizer o indizível/ Por dar forma ao indefinível/ Levantando o estandarte (trágico se não fosse cômico) da encenação”.

 

É nas raias da inventividade cênica que o coletivo mergulha para renovar fôlego. A polissemia de lei nas expressões sonoras e vocais vê acrescentada uma poderosa camada de projeções em vídeo por entre os filós que vão e vêm no cenário de Daniela Thomas. A iconografia de Tatiana Lohmann e ZoomB Laboratório Audiovisual amplia o efeito sampleador do que é memória e ato interativo com o espectador. Esses tules transparentes tiram o véu da história, fornecem documentos ou subsidiam a ficção.

 

Nessa liturgia, os músicos-ogãs do conjunto Treme Terra apoiam os ritos com sua energia juvenil cúmplice nos desfazimentos dos quadros não-lineares. Caminham, cantam e seguem a canção (Geraldo Vandré é citado diretamente) sob a órbita da contadora Estrela D’Alva, que faz as vezes de corifeu ou griot, como se postada simbolicamente à frente de um congá. As atuações de Estrela D’Alva e Gabanini são oferendas à parte na ventura desse espetáculo. Como cofundadoras do grupo, as atrizes permitem verificar a evolução de seus registros, a apropriação de nuances outrora ofuscadas pela incisão do gesto ou da voz na figura do MC.

 

Ambas pulsam esse domínio técnico e poético no momento em que se desdobram na respiração de Eurídice diante dos fantasmas pós-decretação do AI-5, equalizando a quimera e a tragédia conforme uma Antígona, uma Ifigênia ou uma Medeia tomadas por palavras-sintomas, premonitórias, sacrificais, atávicas. Essa composição sintetiza a ascensão de Luaa Gabanini como a mãe italiana anarquista que delata o envolvimento da filha com a guerrilha, por temer sua vida, contradição instintiva da qual não se arrepende ou se justifica. Roberta Estrela D’Alva também abre as portas para consolidar o perfil multifacetado de seu mestre de cerimônias de extrações indígenas, negras, no limite do transe e das habilidades performativas que a atriz domina com peculiaridade. Sua fé é de artesã, como ilustra Marcelo Moura Mello para lembrar o apuro dos quilombolas ao sagrar as rodas:

 

Como a mão do oleiro na argila, o narrador imprime sua marca na narrativa, seja por sua gestualidade, que sustenta o fluxo do que é dito, seja pelos ensinamentos morais que as experiências tecidas por sua narração contêm. (Moura, 2012, p. 74).

 

Na invocação e culto aos antepassados indígenas, a atriz Daniela Evelise complementa a travessia da peça em honra aos espíritos dos mortos. Sua Eurídice absorve a sabedoria ancestral na práxis cidadã, em que pese o trágico desaparecimento sob tortura. Ao final, a atriz entoa um canto que já não pertence tão somente à mitologia, mas à mística. Um canto da etnia yny karajá em saudação ao massacre dos sem-terra em Eldorado dos Carajás, no Pará. Nesse desfecho, em questão de minutos, desenha-se a gênese sangrenta do Descobrimento do Brasil perpetuada na aldeia, no campo e no asfalto. Além da denúncia, o espetáculo se permite acessar o poder da diversidade cultural deste solo que “a cada passo do tempo está sendo lapidado”, e a duras penas, como o teatro pode sentir, cantar, falar e pensar.

 

PS: O título do artigo é uma ciitação ao livro A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos (HELENA, Lucia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977).

 

Bibliografia

 

Mello, Marcelo Moura.  Reminiscências dos quilombos: terreiros da memória em uma comunidade negra rural. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2012.

 

Prado, Décio de Almeida (prefácio). Feira brasileira de opinião: a feira censurada. Vários autores. São Paulo: Global Editora, 1978.

 

Quilici, Cassiano Sydow. Antonin Artaud: teatro e ritual. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2004.

 

Schechner, Richard. In: Pavis, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.

 

revistas

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Por Valmir Santos* 

 

A 66º edição do Festival de Avignon, prevista para julho de 2012, tem como identidade visual a silhueta de um homem com braço direito erguido, dedo em riste, vociferando com um megafone na mão esquerda. A jornada francesa sintoniza com o espírito do movimento global “ocupe” em praças, parques e calçadões. Concerne também ao pioneirismo de seu fundador, Jean Vilar (1912-1971). Em meados dos anos 1940, o ator e diretor deslocou o foco tradicional dos edifícios teatrais parisienses para uma cidade de contornos medievais, cercada por muralhas, ao sul do país, onde o principal espaço para as artes cênicas era, e ainda é, ao ar livre: o pátio do Palácio dos Papas, construção gótica usada como residência pontifícia no século XIV.

 

Foi a partir da iniciativa de Villar que a opção não convencional passou a disputar holofotes com o palco italiano, influenciando a percepção dos criadores e do público para todo o sempre. Evocar Avignon aqui tem a ver com a capacidade de um festival fundir-se à cidade e, mais sublime ainda, afetar a linguagem das artes cênicas que é, ou deveria ser, em suma, sua razão de existir.

 

Sentimos falta desse ímpeto proativo no panorama atual dos principais festivais no Brasil, sejam eles nacionais ou internacionais. A década dos anos 2000, para ficar num recorte que nos é próximo, foi prodiga no aporte de recursos das leis de incentivo (públicos) combinado às verbas municipais, estaduais e federais. O período viu aflorar iniciativas afins nas agendas culturais de Brasília, São José do Rio Preto, Salvador e Recife, alinhadas ao time desbravador que já vinha com algum alento desde o final dos anos de 1980, início dos 1990: Londrina, Curitiba, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro.

 

A despeito da falta de políticas públicas mais assertivas quanto ao papel dos festivais brasileiros – a maioria dos organizadores gasta todos os neurônios para viabilizar economicamente suas programações até os 90 minutos do segundo tempo –, essas coordenações e respectivas curadorias ainda se revelam tímidas quanto ao papel de agitador cultural que poderiam assumir para si de maneira mais convicta, incisiva e continuada, à la Jean Villar.

 

Ou à la Nitis Jacon, a psiquiatra que inscreveu um modo singular de militância (arte + resistência) nos 44 anos do Festival Internacional de Londrina, o Filo, dos quais ela assinou a direção artística por mais de 30 anos, praticando e ensejando projetos de políticas públicas de cultura. Da fase amadora universitária à institucionalização, da mostra latino-americana à fase internacional mais abrangente, o encontro que transcorre na cidade do norte paranaense atravessou a ditadura militar e reafirmou, com a abertura democrática, a “evolução de uma consciência cada vez mais arguta da responsabilidade histórica da ação cultural”, como afirma a crítica Mariangela Alves de Lima1. Pode-se indagar que não é da alçada dos certames deflagrar  tais predicados tangíveis aos governos. Mas a influência de um festival cênico sobre moradores e visitantes, sua propulsão ao ato coletivo, à vida comum, o credencia à apropriação desse ativo. Independe se realizado por organismos públicos, entidades sem fins lucrativos ou privadas.

 

Programar um festival tem muito a ver com ciência e arte, ou seja, com reflexão e intuição pela equipe liderada por articulador (ou mais de um) que se espera sensível e informado. Segundo Sidnei Cruz, que por duas décadas coordenou o projeto Palco Giratório, do Departamento Nacional do Sesc, elaborar atividades cênicas implica um exercício sistemático entre a regularização e a inovação.  Esse conjunto de possibilidades depende do que o lugar oferece, das condições socioculturais, dos contextos político-econômicos, das demandas e potencialidades da sociedade civil. “É importante perceber que a ação política de fato a ser agenciada é aquela que mergulha na negociação complexa da articulação social de diferenças culturais, influenciando as redes de valores e significados que constituem o patrimônio consciente e inconsciente do corpo de uma sociedade”2.

 

Nitis Jacon não perdia tempo com platitudes no texto do programa de mediação com o público. A cada ano ela escrevia um editorial em que levantava questões, expressava seu ponto de vista sem peia. Vide o trecho do documento vindo à luz naquela memorável edição de maio de 1992, a 24ª, a cinco meses do impeachment de Collor:

 

“Se o indivíduo, no melhor dos regimes políticos, se conformar à segurança instituída, a uma vida sem buscas, sem desejos, sem dúvidas e sem perguntas, estará condenado ao tédio e à mediocrização de sua existência. É preciso oferecer-lhe a dúvida, a inquietação, o mistério do ainda desconhecido, a desconfiança da concepção paranoide da verdade incontestada. Estimular sua humanidade, sua expectativa, seu espanto, seu confronto com a diferença e o oposto. (…) O Festival Internacional de Londrina se propõe aos artistas e à população como alternativa à mediocrização política e intelectual e como referência de perseverança e lucidez quando escasseiam motivos para a esperança”3.

 

Apesar de a idealizadora seguir como presidente de honra do Filo, as edições recentes deixam a desejar em relação à contundência estética e política de outrora.

 

Considerando-se a linha de tempo da década passada, não identificamos uma atuação orgânica entre os festivais citados quanto ao estabelecimento de conexões e rupturas nos campos artístico, político e social. Via de regra, as coordenações gerais, direções artísticas e curadorias ficam reféns da programação em si, raramente colocada em transversal ou capaz de adquirir capilaridade não protocolar junto à comunidade. Os esforços são empreendidos para trazer alguma companhia bem cotada no circuito europeu ou pinçar algum ícone redivivo ou recente. Esses procedimentos são legítimos, evidente, mas não esgotam os desafios.

 

A escolha das criações brasileiras, igualmente, segue o faro dos programadores em visita a festivais ou temporadas. Costuma ser influenciada pela régua da recepção crítica em outras paragens. Apesar desse movimento, a tônica ainda é a da pouca margem para o desconhecido. Soa acomodado também o discurso da diversidade de formas, conteúdos e geografias, como se, com isso, isentasse os responsáveis pela empreitada de dizer a que veio quanto aos anseios e à memória do evento. A sua incisão crítica e autocrítica. A ambição sobre a prática e o pensamento do fazer teatral. O vínculo com o território a que pertence. A instigação dos criadores locais.

 

Outro exemplo de um festival longevo é o Porto Alegre em Cena, que há 18 edições tem o mérito de firmar uma porta permanentemente aberta aos países sul-americanos (ponte que Salvador, Uberlândia, São Paulo e Santos ergueram para si em mostras voltadas à região ibero-americana). Em toda edição, o público gaúcho depara com montagens da Argentina e do Uruguai, obrigatórias na percepção do diretor artístico e curador Luciano Alabarse, além de representantes de outras nações cotejados anualmente. Uma vez assimilada a difusão, como a prática de um festival pode interagir de maneira mais radical no fenômeno das trocas culturais e sociais? Houve ocasiões em que o festival construiu uma circulação de peças em mão dupla com Buenos Aires e Montevidéu. Perguntas: como lidar daqui para frente com esse legado?; qual a missão plausível na “maioridade”?

 

Vislumbramos que essa potencialidade pede mais ambição, por exemplo, no investimento em coproduções. O Núcleo de Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil já realizou dois projetos nesse sentido, com um espetáculo percorrendo as respectivas praças. Essa estratégia resultou saturada, entre outras razões, porque condicionava à circulação automática pelos respectivos calendários. Somos partidários da coprodução caseira, na qual um festival invista com dignidade e planejamento em artistas do seu pedaço, às vezes em simbiose com convidados de fora, e essa obra carregue o nome da respectiva cidade que a promoveu.

 

A rigor, programação não é problema nos festivais. As seleções são susceptíveis à valsa do que vem à baila. Mesmo as iniciativas que estão nos primeiros anos de paleta internacional defendem bem suas escolhas. Caso do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, na 12ª edição, e do Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, o Fiac de Salvador, que vai para a quinta jornada. A sensação de processos uniformes nestes e nos demais pares, no entanto, deriva das demandas em captar recursos patrocinados e da prioridade máxima delegada à composição da tabela de peças, coreografias e intervenções em detrimento de surpreender com ações ousadas que possam entrelaçar, também, coragem política, sociabilidades e linguagens da cultura.

 

No verbete “festival”, Patrice Pavis afirma que, às vezes, nos esquecemos de que o adjetivo também encerra o sentido de festa, referendando datas ou consagrações religiosas desde a Antiguidade, como Osíris no Egito e Dionísio na Grécia:

 

“Estas cerimônias anuais marcavam um momento privilegiado de regozijo e de encontros. Deste acontecimento tradicional, o festival conservou uma certa solenidade na celebração, um caráter excepcional e pontual que a multiplicação e a banalização dos modernos festivais muitas vezes esvaziam de sentido. (…) Este moderno ressurgimento do festival sagrado atesta uma profunda necessidade de um momento e de um lugar onde um público de ‘celebrantes’ se encontre periodicamente para tomar a pulsação da vida teatral, satisfazer às vezes a falta de ir ao teatro no inverno, e, mais profundamente, ter a sensação de pertencer a uma comunidade intelectual e espiritual encontrando uma forma moderna de culto e de ritual”4.

 

Pois de festa o Brasil entende. Cabe aos festivais consolidados abrir-se à incitação e exercer o protagonismo desde o seu quintal para o mundo.

 



 

* Valmir Santos é jornalista e pesquisador de teatro. Consultor desta curadoria do FIT-BH, debutou na função de curador em 2011, no 14º Festival Recife do Teatro Nacional. Artigo publicado originalmente na FIT Revista 2004 (Belo Horizonte: 11º FIT-BH, 2012, pp. 98-101).


1 LIMA, Mariangela Alves de. Apresentação. In: JACON, Nitis. Memória e recordação: Festival Internacional de Londrina – 40 anos. Londrina: edição da autora, 2010, p. 10.


2 CRUZ, Sidnei. Palco Giratório: uma difusão caleidoscópica das artes cênicas. Fortaleza: Sesc-CE, 2009, p. 23.


3 JACON, Nitis. Memória e recordação: Festival Internacional de Londrina – 40 anos. Londrina: edição da autora, 2010, p. 200.


4 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 166.

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(Artigo originalmente publicado em aParte XXI – Revista do Teatro da Universidade de São Paulo, (2° sem. 2010, pp. 151-161). A publicação do TUSP loi lançada em 1968, teve duas edições quando o órgão era dirigido pelo cenógrafo Flávio Império, uma terceira abortada, e é retomada sob coordenação editorial de Celso Frateschi, Ferdinando Martins e Deise Abreu Pacheco,  mais projeto gráfico de Fábio Larsson e desenhos de Simone Mina).


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Por Valmir Santos

 

No prólogo do espetáculo Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer, de 2009, a Companhia São Jorge de Variedades bate à porta do Theatro São Pedro, à luz do dia, e lança ao espectador ou transeunte algumas poucas certezas antepostas às dúvidas hamletianas conforme reza o dualismo ocidental. A performance na calçada coloca a representação em xeque. “Minhas palavras já não me dizem mais nada. Os meus pensamentos sugam o sangue das imagens. O meu drama não se realiza mais”, diagnostica a figura vestida de preto que carrega uma mala e faz às vezes de cicerone do público pela paisagem da Barra Funda. O bairro da zona oeste é um dos redutos tradicionais da imigração italiana que ali residiu e trabalhou em fábricas e indústrias a partir da segunda década do século XIX, como evidencia parte dos galpões desativados.

 

Embicado numa esquina, o Theatro São Pedro chama a atenção pela fachada em linhas arquitetônicas neoclássicas com elementos art nouveau (cf. Serroni, 2002). Inaugurado em 1917, este mesmo edifício que abrigou o processo de criação e a estreia antológica de Macunaíma, em 1978. A adaptação e direção de Antunes Filho para a rapsódia de Mário de Andrade inscreveu o Grupo Pau Brasil na historiografia teatral (depois Grupo de Teatro Macunaíma) e circunscreveu definitivamente a pesquisa cênica ou dramatúrgica no território brasileiro, o pendor à experiência em contraste com produções digeríveis nas escalas de elenco, na acepção de texto e na definição de conteúdo.

 

Aproximar os espaços de dentro (Grupo Macunaíma) e de fora (Companhia São Jorge) em diferentes épocas do Theatro São Pedro é a maneira que encontramos para ler a década zero zero do século XXI. Num arco de 31 anos verificamos, de um lado, os subsídios da então Comissão Estadual de Teatro, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, que permitiam a Antunes Filho ministrar curso para atores, alguns iniciantes, e mergulhar na aventura do herói sem caráter; e de outro lado, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, vinculado à Secretaria Municipal de Cultura, que selecionou a Companhia São Jorge em pelo menos cinco editais desde a promulgação da lei em 2002.

 

Passado e presente constituem exemplos bem acabados de como a arte e a cultura podem e devem ser transformadas por políticas públicas – modelo sacramentado em países europeus – e incidir sobre os modos de produzir, criar e recepcionar o teatro. Por isso é revelador saber que antes de Antunes Filho vincular-se ao Serviço Social do Comércio, em 1982, parceria profícua até hoje, ele teve a oportunidade de ocupar um espaço público e desenvolver um curso permanente. Driblando, inclusive, as estruturas administrativas distintas de dois governos estaduais sob ditadura militar: Paulo Egídio Martins (1975-1979) e Paulo Salim Maluf (1979-1982). As atividades pedagógicas e experimentais aconteceram durante cerca de quatro anos nas dependências do São Pedro, a partir de 1978. O curso foi logo batizado de Centro Teatral de Pesquisa, um embrião do que viria a ser o Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, um departamento do Sesc SP instalado na unidade Consolação (cf. Milaré, 2010).

 

Os argumentos que Antunes põe no papel para convencer a Comissão Estadual de Teatro e sua presidente, Amália Zeitel, a apoiar seu projeto algo visionário e fora do padrão coaduna as premissas da Lei de Fomento e o espírito do teatro de grupo. O diretor ambiciona “um centro catalisador para desenvolver pesquisas e experimentações, sem se ater aos padrões estabelecidos pela maioria das escolas de teatro brasileiras”, como se lê no artigo e manifesto Método de trabalho, publicado no programa do espetáculo Nelson Rodrigues, o eterno retorno, de 1981, e assinado pelo Grupo de Teatro Macunaíma:

 

A formação dos elementos do grupo se daria levando em conta dois fatores fundamentais: os estudos teóricos e sua subsequente transferência para o palco sob a forma de exercícios, convergindo ambos para um objetivo comum, qual seja a persistência em desestruturar todo o trabalho concretizado em função das novas possibilidades que ele próprio despertaria. Aí residia uma das atribuições básicas segundo a qual o grupo se moveria e se transformaria num dos eixos fundamentais da sua filosofia: colocar-se em situação a cada instante da criação, fazendo tabula rasa do conhecimento anterior e jogando-se para os estágios futuros sem nenhuma espécie de pré-concepção. (Milaré, 2010, p. 59)

 

O artigo primeiro da Lei 13.279, de 8 de janeiro de 2002, afirma que o objetivo do Programa Municipal de Fomento ao Teatro é “apoiar a manutenção e criação de projetos de trabalho continuado de pesquisa e produção teatral visando o desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo”. A pesquisa é entendida como as práticas dramatúrgicas ou cênicas, segundo convém à filosofia de trabalho no CPT. Mal passara o terceiro ano de vigência da lei que instaurou novos parâmetros, Antunes critica as comissões de seleção formadas a cada edital: “O compadre vai falar mal de compadre?”, ele questiona em entrevista publicada no jornal Folha de S.Paulo e desencadeadora de mal-estar no meio artístico (Santos, 2004).

 

Um olhar retrospectivo ajuda a interpretar a reação idiossincrática de Antunes ao não absorver aquela passagem histórica decorrida do movimento artístico-cultural Arte contra a Barbárie, “um marco nas políticas públicas de cultura da cidade e até mesmo do país” (Costa & Carvalho, 2008, p. 149). O episódio denota o quão é diversa e complexa a fruição estética. Os anos 2000 mostram ser mais rara a gravitação em torno de um criador, um grupo, escola, movimento ou sistema de interpretação, de dramaturgia ou de encenação. Uma tendência na contramão dos anos 1980 e início dos 1990, quando o princípio da hierarquia é dominante e, portanto, “o encenador passa a construir um discurso autônomo em relação ao texto dramático, usando uma série de elementos que compõem no palco uma escritura cênica” (Fernandes, 2010, p. 3). A aura ensimesmada do criador é deslocada, aos poucos, para uma atitude relacional. Abre-se ao coletivo redimensionado na autoria partilhada com todas as funções da equipe, com os pares, com o lugar e com o espectador, esse coautor cada vez mais instigado na cena brasileira.

 

A rigor, a Lei de Fomento tem mais simbiose com o pensamento criativo disseminado pelo CPT do que talvez possa supor o seu idealizador. A série Prêt-à-porter, lançada em 1998 e amadurecida ao longo da década que entrou, opta por procedimentos que reveem o próprio papel de Antunes Filho como diretor, escudando-o na função de coordenador. Para além do jogo semântico, o discurso é delegar tudo aos atores. No caso, a duetos que se anunciam emancipados na proposição da gênese a ser narrada/interpretada e nas consolidações da dramaturgia, da interpretação, dos figurinos e do espaço cênico sob luz invariável e branca. Um choque de percepção para a crítica e o público acostumados à forte assinatura espetacular na dança do espaço vazio com os movimentos corais e, de quando em quando, os arroubos na conjugação da cenografia com o desenho de luz.

 

Nessa mesma perspectiva, afastar-se do palco convencional do Teatro Anchieta, no térreo, e levar o espectador para a sala de ensaio no sétimo andar do Sesc Consolação é um gesto sincrônico à produção da cidade que passou a pisar outras territorialidades. O templo outrora indevassável do CPT abre suas portas sempre em horário alternativo, diga-se, convertido em teatro de câmara para setenta pessoas alinhadas em três fileiras enquanto dois atores contracenam como que rentes ao público e à parede cenográfica. É no ventre desse vão horizontal que se dá a depuração em busca do essencial em partituras rigorosas na ação física, na eleição das palavras, no extrato poético da cena naturalista à maneira oriental.

 

Aliás, atribuímos ao lastro do ciclo paralelo Prêt-à-porter o fator decisivo para a montagem que sintetiza a década antuniana em termos de oxigenação de linguagem. Foi Carmen, de 2005 e remontado anos depois, resulta uma celebração a Kazuo Ohno via Carmen Miranda. Costura o teatro e a dança com uma síntese arriscada de mitos e arquétipos que demandam repertório gestual e espacialidade alentadores.

 

Esses momentos lapidares são mais prováveis quando o artista tem condições estruturais para tanto. Faz 28 anos que Antunes pesquisa com o esteio do Sesc. Antes de incorporar o CPT, a entidade, ainda impactada pela repercussão nacional e internacional de Macunaíma, constituiu uma comissão para avaliar o panorama da produção local. Um documento elaborado em 14 de março de 1982 aborda as dificuldades por falta de recursos financeiros e “Faz notar que os escassos patrocínios normalmente procedem de órgãos governamentais e se destinam à montagem de espetáculos, beneficiando um número reduzido das peças produzidas e colocadas em cartaz” (Milaré, 2010, p. 79). Tempos em que o Ministério da Cultura sequer existia: sua certidão de nascimento data de 1985.

 

Receber o aval do Sesc – leiam-se os trabalhadores que têm impostos recolhidos através do empresariado dos setores de comércio e serviços – significa a garantia de continuidade. Apesar da reconhecida atenção dispensada às artes cênicas, proporcionando ingressos acessíveis e programação qualificada em sua rede de 32 unidades no interior e na capital, realizando espetáculos (um dos contratantes mais frequentes da Cooperativa Paulista de Teatro) e festivais, o papel da entidade não suplanta a necessidade de ação nas esferas de governos municipal, estadual e federal. Por isso a relevância da Lei de Fomento em sublinhar “o desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo”. Seu ponto de vista é, antes de tudo, público – um dever para com o cidadão.

 

Transcorridos oito anos e 17 editais lançados, são evidentes as mudanças paradigmáticas advindas do programa. O número de núcleos cooperados cresceu três vezes e meio. Eles eram 299 em 2001, ano anterior à vigência da Lei de Fomento, e hoje somam 1.076 [1] – ressaltando que associações não ligadas à Cooperativa Paulista de Teatro também são contempladas. O aumento substancial indica que cabe no horizonte, além do esforço corrente de levantar uma produção, a possibilidade de manutenção do espaço combinada à capacidade ideal de viver plenamente do ofício, investir tempo e cabeça na pesquisa, assim como o CPT/Sesc dispõe – condição que a maioria dos trabalhadores do teatro no país está longe de usufruir.

 

Ampliou-se o raio de reverberação da arte do teatro, apesar da predominância de atividades na região central de São Paulo. Levantamento concluído após o resultado da 11ª edição, no segundo semestre de 2007, mostra a seguinte distribuição entre os 143 projetos contemplados até então: 35,66% deles acontecem no centro, 24,47% na zona oeste, 16,08% na leste, 13,28% na sul e 10,48% na norte. A Secretaria Municipal de Cultura estima que esta divisão sofra pouca variação de lá para cá. Um dos critérios de seleção do programa confere peso à contrapartida social ou benefício à população de acordo com o plano de trabalho do grupo. Apresentações, oficinas, seminários, exposições, saraus, cortejos e outras variantes são realizados em áreas carentes de equipamentos culturais e atraem uma gente que “não tinha condições de ir ao teatro e que também está se formando no diálogo com essa produção” (Labaki apud Nascimento, 2007, p. 60). Adolescentes e crianças, sobretudo, viram espectadores cativos dos artistas locais, quando não se tornam um deles, amadores.

 

Os profissionais lutaram para converter consciência artística em protagonismo político, como lê Paulo Arantes (cf. Néspoli, 2007, pp. D8-D9). Houve pelo menos três anos de mobilização em assembleias, elaborando textos sugestivos ao pré-projeto de lei, convencendo vereadores nas galerias da Câmara Municipal, um engajamento que vingou a causa e segue vigilante toda vez que um secretário ou prefeito de turno ameaça tungar o fundo público e perdido dos mais bem aplicados na cultura em São Paulo. O Teatro da Vertigem, assim como centenas de coletivos do país, sonha com a implantação desse mecanismo em nível nacional. “Esse programa é e deve ser exemplo de modelo de uma política cultural de Estado que alcance todo o Brasil” (Fernandes e Audio, 2006, p. 152).

 

Tais indicadores da multiplicação dos grupos e da sensibilização do público não redundam, necessariamente, o cumprimento auspicioso de um hipotético artigo primeiro dessa arte cuja natureza deveria ser regida “pelas leis da teatralidade” (Grotowski, 2007, p. 45). A ciranda de projetos é correlacionada à ansiedade plasmada em cena. Pensamento e ação soam desconexos. Montagens são processadas a toque de caixa, comprimidas no calendário. Talvez o calor da hora de 2010 ainda não permita aferir essas questões. Está por ser esquadrinhada a resultante do universo da linguagem, seus avanços reconhecíveis em dramaturgia, atuação, encenação, ocupação de espaços não convencionais e demais veredas, cabendo distinguir retrocessos e estagnações.

 

Rememoramos um trabalho emblemático da vitalidade do teatro de grupo no período, por ressignificar em cena o moderno e o arcaico, imbricar o velho e o novo, e não só como recorte histórico da Guerra de Canudos, mas como hibridização de linguagens da ventura do Oficina Uzyna Uzona em cinco partes de Os sertões (2002-2006). Quando as peças são registradas em DVD, é José Celso Martinez Corrêa, Conselheiro, quem atenta aos seus pares e ao seu tempo:

 

O teatro brasileiro não está mais decadente, vive um gênesis da Criatividade e Poder. Vide Os Satyros dando vida à Praça Roosevelt. O Vertigem reavivando o Tietê. Os Parlapatões, as Artes do Cinema, a Medicina, a Saúde, se misturando na catarsis do Teatro retornado Bárbaro Dionisios. O Exú do Prazer do Canto do Bode. Apolonizado pela convergência digital no Ditirambo da Dança contada cantada. Há nações entrelaçando-se, dissolvendo-se e renascendo, não no multiculturalismo de campo de concentração das culturas, mas em sua Orgya. Desse cadinho nasce também uma nova Política. Um poder de presença que vence pela criatividade absoluta da vida em todos os “x” encontrados dos problemas. (Corrêa, 2006, p. 13)

 

Citamos ainda o plano das ideias e das reflexões nas plataformas do ensino e do saber incidentes no arejamento estético, como as contribuições da Escola Livre de Teatro de Santo André, da Escola de Artes Dramáticas e do Departamento de Artes Cênicas da USP, do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp (o Lume nasce Laboratório Unicamp de Movimento e Expressão, em 1985, três anos após o CPT, hoje Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais propulsor da cena de coletivos em Barão Geraldo, Campinas) e da recém-criada SP Escola de Teatro, todas elas iniciativas públicas pontuadas porque prospectam a linguagem como “instrumento perfeito para produzir significados e, também, para destruí-los” (Paz, 2008, p. 11).

 

Nossa crítica centra-se, no entanto, na corrida febril pela produtividade e os contratempos ao eixo criativo. Cada agrupamento põe-se em campo aguerrido para ver seu projeto aprovado nos editais do município (Lei de Fomento) ou nas instâncias estadual (ProaC) e federal (prêmios da Funarte casados à Petrobras) sob o imperativo dos verbos “produzir” e “circular”, que veem conflitando com “pesquisar”. A preocupação legítima com a sobrevivência – e a razão de ser do programa é estimular a continuidade – distendeu ainda o potencial politizador da articulação vitoriosa dos grupos. Vêm à tona suscetibilidades, por causa de determinados núcleos mais selecionados que outros, para citar um dos calos. Já  se vão oito anos  e cada resultado da Lei de Fomento suscita acirramentos. A disputa por subsídios como que ergue trincheiras. Além do espectro político-administrativo, que ronda desde que está em vigor, à mercê da máquina pública, há o risco dos próprios artistas minarem suas forças pela rixa, pela desqualificação do outro, ainda que perceptíveis uma ou outra sinalização contra esse tipo de desgaste.

 

Fica a sensação de saturação, pelo volume de espetáculos, pelas temporadas curtas que já alcançam sessões únicas semanais, mesmo nas salas e galpões do Sesc, que até  pouco conseguia imprimir um ritmo diferenciado ao circuito e agora reflete a agenda apertada entre suas próprias unidades. Um circuito cada vez mais veloz e inflado pulveriza a aderência nas retinas, na memória natural do que se constrói, assim se espera, pelo valor intrínseco da maturação. Seria tudo isso um sintoma da contaminação cotidiana pelos índices de consumo atribuídos à expansão da economia brasileira? A desvirtuação atenta. “O mercado e nossos companheiros que ainda acreditam nele são perfeitamente capazes de desviar essas leis para seus próprios objetivos, mas o risco maior é o aprofundamento da crise do capital, que pode em minuto fazer evaporar o próprio fundo público que disputamos” (Costa & Carvalho, 2008, p. 142).

 

Para concluir esta análise – que ganhou contornos francamente panorâmicos -, um pouco de digressão. Nos louros que colhe pela criação da Escola de Arte Dramática, a EAD, ao final dos anos 1940, anexada à USP em 1969, Alfredo Mesquita costumava contar o idílio de Carlos Lacerda para com o teatro bandeirante nos anos 1960. O político bajulava a presumida felicidade dos paulistas: “em todos os lugares aonde vou, das reuniões mundanas às políticas, dos escritórios aos bares, à sua livraria (…) fala-se, comenta-se teatro, todos se interessam por teatro!”. (Lima, 1985, p. 13). Ao que Paschoal Carlos Magno, pespegando desde o Rio de Janeiro, não concordava: “Precisamos acabar com aquela chatice do teatro em São Paulo”. (idem, p. 9)

 

Ao finalizar as aulas num curso de introdução à arte dramática em São Paulo, em 1968, o ensaísta Anatol Rosenfeld lançou um prognóstico curto e direto: “O teatro brasileiro está em desenvolvimento, com força de ricas perspectivas futuras. Somos otimistas: há bons atores, seu número está aumentando, já existem bons diretores e autores também” (Martins, 2009, p. 390). Estas palavras foram mensuradas, então, pela régua das obras de Plínio Marcos, Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Roberto Freire, Ariano Suassuna, Hilda Hilst, Dias Gomes, Jorge Andrade e pelos musicais pós-ditadura montados pelos grupos Arena, Oficina e Opinião.

 

Tão longe e tão perto, essas vozes podem ecoar algo do que vivenciamos e vamos atravessar na década que vem aí. É inequívoca a euforia dos musicais replicados da Broadway e do East End, ou recriados à la Brasil. Há uma legião de espectadores amantes deste entretenimento financeira e artisticamente sofisticado, sucessos made in Estados Unidos e Inglaterra, que atraem turistas de outros Estados a São Paulo. Em consequência, mais atores, dançarinos e músicos estão tecnicamente preparados para jogar com essas habilidades corais e solistas.

 

Nestes anos 2000, a Rede Globo de Televisão assumiu que “o teatro passa por aqui”, quem sabe tentando conciliar-se com a vida dupla de parte dos elencos, metida a subir aos palcos, uma vez impossibilitada de ficar em cartaz de quinta a domingo – com honrosas exceções -, devido às gravações no Rio ou em São Paulo, ou vice-versa. O apoio vem emoldurado em vinhetas na telinha ou em página inteira, às quartas-feiras, publicada nos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo, sempre sem pestanejar a campanha institucional da emissora empenhada no celeiro.

 

De fato, um marciano que passasse pela capital paulista efervescida pelo teatro de grupo, superproduções musicais, militância do teatro de rua no centro e nas bordas da cidade, comédias stand-up, ímpetos desdobrados de Antunes e Zé Celso, recôncavo de trabalhos de proa vindos de outras praças do país, do exterior e inclusive do interior de São Paulo, interseção de criadores e professores na seara da universidade, publicações afins em editoras especializadas ou não, arrojo no teatro para crianças, edital para residência entre grupos e encontros reflexivos patrocinados pelo instituto cultural de um banco – o Itaú -, enfim, esse turbilhão põe a arte do teatro em uma roda viva que embaralha razões para tanta produtividade em detrimento da excelência incondicional. Se “cabe à arte atual restabelecer um vínculo com a experiência” (Naves, 2007, p. 28), nossa perplexidade é constatar que a experiência tornou-se relativa. Poucos lhe dedicam coragem e tempo efetivos.

 



[1] Fonte: Coordenação do Núcleo de Fomento ao Teatro, DEC-SMC, Marisabel Lessi de Mello.

 

APÊNDICE

 

Os oito anos da Lei de Fomento

(dados atualizados até a 17ª edição, agosto de 2010)

 

Grupos contemplados: 252

Projetos inscritos: 1.649

Soma de recursos: R$ 61.956.507,95

 

Distribuição por regiões da cidade

(proporcionalidade geográfica de 143 projetos contemplados até a 11ª edição, em 2007)

 

51 realizados no centro, ou 35,66 dos selecionados

35 na zona oeste, 24,47%

23 na zona leste, 16,08%

19 na zona sul, 13,28%

15 na zona norte, 10,48%

 

Fonte: Coordenação do Núcleo de Fomento ao Teatro, DEC-SMC, Marisabel Lessi de Mello.

 

 

BIBLIOGRAFIA

CORRÊA, José Celso Martinez. “Terra azul orgasmo ó”, Programa Os Sertões – A Terra, São Paulo, Oficina Uzyna Uzona, 2006.

COSTA, Iná Camargo & CARVALHO, Dorberto. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da Lei de Fomento ao Teatro. São Paulo, Cooperativa Paulista de Teatro, 2008.

FERNANDES, Sílvia & AUDIO, Roberto (org.). BR-3. São Paulo, Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo, Perspectiva, 2010.

GROTOWSKI, Jerzy, FLASZEN, Ludwik & BARBA, Eugenio. O teatro laboratório de Jerzy Grotowski: 1959-1969. São Paulo, Perspectiva, Sesc SP, 2007.

LIMA, Mariangela Alves de (org.). Imagens do teatro paulista. São Paulo. Imprensa Oficial do Estado, Centro Cultural São Paulo, 1985.

MARTINS, Neusa. A arte do teatro: aulas de Anatol Rosenfeld (1968). São Paulo, Publifolha, 2009.

MILARÉ, Sebastião. Hierofania: o teatro segundo Antunes Filho. São Paulo, Perspectiva, Sesc SP, 2010.

NASCIMENTO, Reginaldo (org.). Cadernos do Kaus: o teatro na América Latina. São Paulo, Scortecci, 2007.

NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

NÉSPOLI, Beth. Paulo Arantes: um pensador na cena paulistana. In: O Estado de S.Paulo, Caderno 2, 15 de julho de 2007.

PAZ, Octavio. Marcelo Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo, Perspectiva, 2008.

SANTOS, Valmir. Antunes Filho critica “teatro de compadres”, 2004. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2912200406.htm, consultado em 26/09/2010.

SERRONI, J.C. Teatros: uma memória do espaço cênico no Brasil. São Paulo, Senac, 2002.

 

revistas

 simoneminaapartevaleeste

 

estudo Uma reflexão sobre a década teatral paulistana sob o impacto da Lei de Fomento

 

A convite da aParte XXI – Revista do Teatro da Universidade de São Paulo – uma publicação histórica nascida em 1968, quando o órgão era dirigido pelo cenógrafo Flávio Império, e retomada agora pelo TUSP –, analiso o primeiro decênio paulistano do século sob a perspectiva dos oito anos da Lei de Fomento. Relaciono a política pública transformadora com as noções de continuidade e pesquisa embrionárias em Antunes Filho pré-Macunaíma (1978), daí a formalização do CPT apoiada pelo Sesc-SP. E anoto a paradoxal corrida frenética dos grupos aos projetos em prejuízo da experiência vide o cúmulo da sessão única semanal.

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revistas

Um recorte da temporada de 2009 sob a perspectiva de integrante da comissão do Prêmio da Cooperativa Paulista de Teatro naquele ano. De como o espectro de Heiner Müller ronda a cena de Frank Castorf, Companhia Teatro de Narradores e Companhia São Jorge de Variedades.

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revistas

artigo  A convite da revista aParte XXI, publicação histórica dos anos 1960 retomada pelo TUSP, analiso o decênio paulistano sob a perspectiva dos oito anos da Lei de Fomento. Vide a paradoxal corrida dos grupos aos projetos, em prejuízo da pesquisa e da experiência, e o cúmulo da sessão única semanal.
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