9.8.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 09 de agosto de 1998. Caderno A – 4
Evento chega ao fim amanhã com missão cumprida de injetar novo “olhar” e “sentir”
São Paulo – Há algo de insondável num tema como “a presença do sagrado nas artes”, vertido pelo 7º Festival Internacional de Artes Cênicas, o Fiac, que chega amanhã ao seu derradeiro dia. O painel apresentado pelas atrações da Ásia tem tudo para consolidar de vez, e com relativo atraso, a “ponte” entre o oriente e o ocidente a partir de uma perspectiva brasileira.
Se depender da reação do público que lotou todas as apresentações; provocou algumas sessões extras, aplaudiu durante longos minutos; e subiu ao palco extasiado para “apaupar” a energia emanada dos artistas – caso dos simpáticos sul-coreanos do grupo Samulnori Hanulrim -, enfim, se depender do espectador, a assimilação já é uma realidade.
Até pouco tempo atrás, era comum atribuir às diferenças culturais, sobretudo à língua, a incompreensão e distanciamento diante de espetáculos “do outro lado do mundo”. Aos poucos, porém, as barreiras foram caindo e se revelaram menos técnica do que perceptiva.
Os poros da percepção, como quer William Barroughs, dilataram-se nos últimos anos. Gradativamente, o público tupiniquim tomou contato com a arte de dizer muito com o mínimo, quer verbal ou corporalmente falando.
Desde o primeiro Fiac, em 1981, com a presença do americano Robert Wilson, influenciado pelo teatro oriental e contaminando a carreira de ninguém menos do que Antunes Filho – o festival já acenava com sua veia instrospectiva.
Mais recentemente, na retomada do evento, a partir de 1994, a idealizadora Ruth Escobar passou a mirar com mais carinho para as manifestações artísticas que remontam há milênios. É claro que em 1986, oito anos antes, já estava entre nós o mestre japonês Kazuo Ohno e sua personagem La Argentina. Sem contar o pioneirismo de Takao Kusuno, hoje com sua Cia. Olho do Tamanduá, na busca de um butô de cores brasileiras.
De volta ao Fiac, tivemos os Derviches Rodopiantes da Turquia, a dançarina indiana Chandralekha e a companhia chinesa do diretor Zhang Yuan. Até desaguar, agora, numa edição totalmente dedicada ao teatro, à dança e à música praticada no continente asiático.
A abertura, conforme acompanhou O Diário, foi marcada pela memorável “Ópera de Pequim” encenada pela companhia da cidade chinesa de Dalian. Na última apresentação, os atores Zhang Dajun, encabeçando o número “O Rei dos Macacos”, e Li Ping, com “A Princesa Cem-Flores” demonstraram todo o virtuosismo que registraram em seus corpos e vozes ao longo de muitos anos de treinamento.
Os monges do Monastério de Shetchen, no Tibete, apresentaram suas “Danças Sagradas”, de forte conteúdo religioso. Naquele país incrustado em solo chinês, inclusive perseguido politicamente, os festivais de dança remontam à introdução do budismo, no século 18. O monastério de Shetchen foi fundado em 1735. O espetáculo-ritual é uma experiência indescritível, em que silêncio, sons e cores inventam um novo espaço-tempo diante dos olhos de quem contemnpla.
Quando o mestre sul-coreano Kim Duk Soo afirmou que a percussão do seu grupo tinha a ver com o candomblé destas plagas, a desconfiança não fez de rogada. Mas, na noite de estréia, o que se deixou embalar pelos tambores do grupo Samulnori Hanulrim. Sem contar a magia do canto p’ansori, com a primeira-atriz da Coréia do Sul, Mi Jung Chung, no que pode ser considerada uma versão operística arraigada na tradição daquele país.
A japonesa Carlotta Ikeda, que voltou ao Brasil pela segunda vez também transportou o público para outra dimensão no seu belo solo “Waiting”. Como vem fazendo nos últimos anos, a dançarina investe na (re)descoberta constante de novos caminhos para o butô – ela que foi discípula de Hijikata, um dos pais da “dança das trevas”, ao lado de Ohno. Mas o que Ikeda celebra no palco, na tenra relação do seu corpo com o espaço, na sua sensualidade à flor da pele, enfim, sua arte de gestos e movimentos é demasiadamente entranhada no espírito de presença da intérprete.
São algumas das atrações conferidas por este crítico, entre as muitas que passaram pelos palcos paulistanos nos últimos dias. Teve ainda o Chorus Repertory Theatre of Imphal (Índia), Trupe Nacional da Tailândia, Grupo de Percussão do Templo de Kerala (Índia), U-Theatre (Taiwan), Conjunto Panti Pusaka Budaya (Bali), Músicos e Poetas Manghaniyars e Langas do Rajastão (Índia), Monâjât Yultchieva (Uzbequistão) e, por fim, um workshop com a norte-americana Nina Wise, em sua segunda incursão pelos palcos do Fiac.
Entre as benesses do “pacote” asiático, está a convicção de que a velocidade dos tempos, em que “globalizar” é sinônimo de chegar em primeiro, a qualquer custo, conforme rege o mercado, felizmente não contaminou a todos. Há espaço para um olhar diferenciado, uma oxigenação da massa cinzenta ora poluída pelo excesso de informações – inúteis em sua maioria.
O 7º Fiac foi como uma aula para o “olhar”, o “sentir” e o “estar presente” no espectador brasileiro, que também padece do mal ocidental feito envelopinhos de bala…
É torcer para que o teatro brasileiro, em particular o paulista, abrace o sopro zen desta edição do festival, a propósito de um final de milênio virado de ponta-cabeça – e assustador.
Danças Tradicionais de Manipur – Com o grupo indiano Chorus Repertory Theatre of Imphal. Hoje, 20, e amanhã, 21h. Sesc Vila Mariana (rua Pelotas, 141, tel. 5080-3000). R$ 20,00 e R$ 10,00. Conjunto de Percussão do Templo de Kerala – Com trupe indiana. Hoje, 18h. Sesc Pompéia (rua Clélia, 93, Lapa, tel. 3871-7777). R$ 20 e R$ 10. Amanhã, 21h, dobradinha com as baianas da Didá Banda Feminina. Parque da Independência (Praça do Monumento, s/n, Ipiranga). Grátis. Retirar convites com antecedência do Sesc Ipiranga (rua Bom Pastor, 822, tel. 3340-2000). O Som do Oceano – Com grupo U-Theatre, de Taiwan. Hoje, 20h. Parque da Independência.
“Olhar para dentro dói muito”, diz Ruth
São Paulo – A seguir, o depoimento da atriz, produtora e idealizadora do Festival Internacional de Artes Cênicas, Ruth Escobar. Ela garante que esta é sua última edição à frente do evento. Quer delegá-lo à iniciativa privada ou pública. O tema da presença do sagrado nas artes é sintomático do momento pessoal de Escobar, conforme relata:
Ruth Escobar – “Estou muito emocionada com o sucesso de público do 7º Fiac. Era o sonho da minha vida, não esperava.”
Ruth – “O tempo não existe. A gente pensa que ele existe, mas não existe. Então eu fiquei tão influenciada que quis trazer essa coisa para o Brasil, para que meus colegas vissem.”
Ruth – “As pessoas dizem que aqui no Brasil o teatro é antes e depois de Victor García, com suas montagens ‘Cemitério de Automóveis’, ‘O Balcão’, encenadas no meu teatro. E hoje eu percebo… Tenho um vídeo do ‘Balcão’ de meia hora, e percebo toda a influência não só no simbólico das roupas, mas nas músicas. Há música do Paquistão. Na época eu vi que era uma música estranha, que te remetia a um estágio sagrado, transcendente – e a música no ‘Balcão’ tinha enorme importância.”
Ruth – “Ariane Mnouchkine é quem mais foi influenciada pelas tradições. Espetáculos dela que vi há 12, 15 anos, já trazia isso. E o Peter Brook que trouxe as técnicas da escola do pensador místico Gurdjieff, do filme ‘Encontro com Homens Notáveis’. Brook propõe uma forma de ser e estar no mundo que faz os seus atores entrarem nesse espaço de tempo e nessa coisa da presença, com uma simplicidade absoluta, sem grandes mágicas… E você fica fascinado com a presença dos atores em cena. E isso é coisa dos orientais.”
Ruth – “Quando trouxe os Dervixes Rodopiantes da Turquia pela primeira vez, em 1996, pensei: ‘Vou trazendo aos pouquinhos’. Eu vi as pessoas pirarem. Depois trouxe a Carlotta Ikeda, que agora voltou, e foi enorme sucesso. Daí eu trouxe a Chandralekha e um espetáculo da China, moderno, belíssimo…”
Ruth – “O Brasil passa por uma transição que remete a uma certa religiosidade que é perigosa, que vai da auto-ajuda às igrejas evangélicas. Mas você percebe hoje, em vários lugares, a quantidade de budistas, de pessoas que trabalham com meditação com respiração, com entendimento do desapego, da rigidez do ego. Quanto mais você se apega, pior você fica”
Ruth – “Estou doente há uma semana, num estresse, não consigo dormir de noite porque fico no ‘bombeiro’… Faço contatos com Ministério do Trabalho, Itamaraty, mas é uma coisa muito difícil para outra pessoa fazer um festival do tamanho e da proporção que eu faço.”
Ruth – “Quero escrever um livro sobre minha jornada, do que estou vivendo nesses 10 anos, do que estou revendo em mim, como estou tentando me trabalhar. Do sofrimento que é você se ver e se reconhecer. Esse olhar para dentro é uma coisa que dói muito. Para mim, especialmente. Quando olho para a trajetória da minha vida, vejo que a vaidade estava por trás, a soberba, a quase vingança da minha história com meu pai, aquela coisa toda com os militares – havia o lado da guerreira, mas havia o lado que era uma forma de dizer ‘papai vai à p.q.p.’… Porque os militares para mim representavam meu pai. Tudo isso eu não tinha consciência. Hoje, com esse trabalho profundo que faço, há 9 anos, é como se estivesse descascando uma cebola e entendesse, bem lentamente, como é que eu criei este personagem… Bem lá no fundo, ele cobre uma criança que se sente deficiente, desvalorizada, que não teve o que precisava ter enquanto amor… Enfim,
essa é a história da humanidade, a história de todo mundo.”