11.5.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 11 de maio de 1997. Caderno A – 4
Marco Antônio Braz e seu grupo voltam a Nelson Rodrigues sem a inventividade de “Perdoa-me…”
VALMIR SANTOS
São Paulo – O diretor Marco Antônio Braz começou a dizer a que veio no ano passado, com “Perdoa-me Por Me Traíres”. A peça, montada à margem do circuito, num corredor espremido do Indac, na Capital, aos poucos caiu no boca a boca e ganhou uma temporada de sucesso no Centro Cultural São Paulo. Braz, um dos novos nomes da atual geração, e seu grupo Círculo de Comediantes, também jovens recém-formados, atravessam agora um momento inusitado para quem vive de teatro. Estão em cartaz com três espetáculos:
“Viúva Porém Honesta”, “Arturo Ui – Essa Onda Vai Te Pegar!” e “Antonio Mora Recebe Fernando Pessoa”, este um monólogo.
Inevitável a comparação. “Perdoa-me…” primou pela leitura assumidamente aberta do humor explícito de Nelson Rodrigues, na maioria das vezes relegado ao porão da pornografia. Braz chamou atenção pelo domínio do espaço cênico, horizontalizando a cena e dispondo público na sua lateral. Nada de novo, mas bem feito. Houve um trabalho acurado na preparação dos atores, com uma atuação marcante de Flávia Pucci no papel do tio neurótico apaixonado pela sobrinha sedutora.
Na nova visita a Nelson Rodlrigues, a sensação é de que o Círculo de Comediantes se encontra exatamente num circuito fechado. Ocupando o palco do Teatro Sesc Anchieta, mantém perspectiva de corredor em boa parte do espetáculo, ainda que diante de uma platéia convenc:ional, italianamente falando.
Quando os coros se deslocam alegoricamente, de uma ponta a outra, como que cuspidos pelo gelo seco, o espectador sabe que já viu aquilo em algum lugar, especificamente em “Perdoa-me…”. Foram tantas as montagens neste “boom” de Nelson Rodrigues que mesmo sua “farsa irresponsável em três atos”, na fórmula que Braz e o Círculo repetem, termina entrando num vácuo desalentador.
O diretor se preocupa tanto em solucionar o entra-e-sai nas laterais e centro, em “viajar no túnel do tempo com suas luzinhas, que termina pôr desprezar a potencialidade do elenco. A decepção maior em “Viúva Porém Honesta” é um certo ranço amador-chique que disponta no grupo em certas passagens, a começar pela protagonista, Joana Curvo, a viúva Ivonete. A atriz faz uma colegial bastante superficial. A transição entre a estudante ninfeta e a mulher epicentro da história não seduz. Joana abusa dos trejeitos infantis. Ivonete, a viúva, é muito mais que isso.
Em outro extremo, porém, está o Dr. Lambreta (Claiton Freitas), exemplo de como fazer uso da caricatura sem descaracterizar o personagem; ao contráno, fazê-lo crescer aos olhos do espectador.
Com a montagem mediana, resta contemplar o festival de frases-feitas que Nelson Rodrigues dispara em sua peça raivosa, escrita logo depois da péssima recepção de público e crítica a, justamente, “Perdoa-me…”. “Todas as mulheres sentam, porque não minha filha”, começa o pai da moça, Dr. J.B. (Maurício Marques, esgarçante o tempo todo), poderoso dono de jornal.
E a verve nelsonrodrigueana – não raro machista e preconceituosa -, concentra-se principalmente no trato com a crítica teatral. Criou um personagem-alvo, Dorothy Dalton, gay que é levado à condição de crítico da nova geração, atropelado por um carrinho de sorvete chiquea Bon. Freud, ou “Segismundo”, é espicaçado na pele de um psicanalista. A falsa hipocrisia da família, com seu “pudor bestial”, também não escapa.
Viúva Porém Honesta – De Nelson Rodrigues. Direção: Marco Antônio Braz. Com Círculo de Comediantes. Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Consolação, tel. 256-2281). R$ 15,00. Até 29 de junho.
“Arturo Ui” perde com seu tom “hiper-realista”
São Paulo – A terceira montagem em cartaz de Braz e do Círculo de Comedian tes é “Arturo Ui – Essa Onda Vai Te Pegar!” É a que dá um passo adiante em relação a “Perdoa- me Por Me Traíres”, marco da emergente trajetória do diretor e grupo. Volta o “corredor” desta vez no histórico Teatro Oficina, de Zé Celso e seu Uzyna Uzona. É ali que Braz e grupo parecem encontrar o seu ideal estético.
“Arturo Ui” busca a consagração do espaço, a veemência do Uzyna Uzona em “Ham-Let” ou “Bacantes”, por exemplo. A angústia da influência de Zé Celso em Braz fica na intenção. O discurso e a prática são outros quinhentos.
O anti-capitalista Brecht faz em seu texto original, “A Resistível Ascenção de Arturo Ui”, mais uma dura crítica ao regime, centrando fogo no embrião autoritário que culminaria com Hitler na Alemanha nazista. Uma máfia do Bronx, bairro norte-americano, corrompe simples plantadores de couve-flor, bem como os comerciantes e o cartel que estão por trás dele.
Tal relação inescrupulosa, uma máquina de moer seres humanos em troca do lucro, serviu de parâmetro para adaptação de Valderez Cardoso Gomes. Por assimilação, portanto, a montagem toca em CPI, nhenhenhén, PM de Diadema e por aí vai. Arturo Ui, o personagem principal, é um gangster nato, um Herodes ou Stálin dos tempos que correm. Movido por ambição desmessurada, domina de grandes comerciantes, como Totó Fidélis, “70 anos de honestidade”, até pobres quitandeiros, reproduzidos aqui como sem-terra.
A atualização-estilização inclui, ainda, a música-tema de Batman, um rap de Thaíde e DJ Hum ou uma abertura de antigo programa de um antigo programa de desenho infantil (“… do que caubói que dá cem tiros de uma vez”).
Estilização talvez não seja bem a palavra, mas o espetáculo, ao final, dá sensação de que denuncia a violência por denunciar. Retrata a realidade com muita intenção de fidelidade, a ponto de exibir trechos da ação de PMs em Diadema. Esse oportunismo instantâneo, de associação imediata com os acontecimentos, têm efeito contrário, tiram impacto.
O que vemos é reproduzido com tamanha riqueza de detalhes que uma arma na cabeça de uma sem-terra, indefesa, não vai além do óbvio; não acrescenta. Predomina essa “hiper-realidade” que apaga o épico brechtiano, mesmo nesta fábula, a favor de uma tradução urbana, aqui-agora à décima potência.
Ainda assim, em “Arturo Ui” vislumbra-se um diretor mais coerente, intérpretes mais entregues. Guilherme Kwasinski, por exemplo, no papel-título, parece buscar inspiração sobretudo na linguagem dos quadrinhos. Chega a ela de forma sutil, sem a fragmentação estanque e com a elegância de um Noel Rosa, por mais que a equação seja absurda.
A cena em que um ator, dentro da peça, ensina gestos e posturas “corretas” ao gangstermor, para melhor se posicionar em público e dominar as massas, acaba se revertendo numa homenagem ao teatro, evocando Shakespeare e seus fundamentais Júlio César e Titus Andronicus.
Na metalinguagem, o vídeo é avassalador. Uma das passagens é de uma brutalidade atroz: Num desses documentários mundo-cão, um homem tem seu braço arrancado à força, puxado por uma corda. O preço, aí, é alto para o teatro: a imagem prende mais atenção do que a personagem ensangüentada que cruza o palco.
Entre o horror e a sabujice política, o submundo do crime e os refestelados da alta sociedade, o Brecht de Braz, Círculo de Comediantes e adaptador demonstra potencial para encantar e espantar muito mais do que os meros 90 minutos em que se esforça para entreter e entreter – dado o acento musical.
E a “fábrica” Braz não pára. Em julho, o diretor estréia no Rio de Janeiro um novo Nelson Rodrigues, “Beijo no Asfalto”, com a excelente Flávia Pucci no elenco.
Arturo UI – Escola Onda Vai Te Pegar! – Adaptação de Valderez Cardoso Gomes para o texto de Bertolt Brecht. Direção: Marco Antônio Braz. Com Círculo de Comediantes. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 606-2818). R$ 10,00. Até 10 de junho.
Montagem sobre Pessoa é como uma piada mal contada
São Paulo – Fernando Pessoa (1888-1935) é um fenômeno. Os versos do poeta português e seus heterônimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos, os principais) continuam, nos dias de hoje, atraindo multidões. Encabeça, por exemplo, a lista dos livros de bolso mais vendidos recentemente, provando veio popular escondido nas entrelinhas do nacionalismo místico e do sebastianismo que povoam sua obra.
Para espantar ainda mais o desassossego, o diretor Marco Antônio Braz e o ator Maurício Marques escreveram um monólogo que “brinca”, como eles dizem, com o poeta.
De fato, “Antonio Mora Recebe Fernando Pessoa”, o texto, é direcionado para a comédia. Médium português quer “incorporar” o poeta, mas só consegue trazer à tona os seus heterônirnos. A história, em si, é engraçada mas a montagem carece de apelo. Como uma piada mal contada.Também no elenco de “Viúva Porém Honesta”, com o mesmo grupo Círculo de Comediantes, Márcio Marques não está à vontade em cena. Talvez seguindo concepção de Braz, cria uma dependência demasiaia da resposta do público. Antes espera do que oferece.
Essa relação ficou evidente na sessão para menos de dez pessoas. Com a platéia vazia, Marques se vê encurralado com seus personagens. A cabana do médiun (personificado pelo heterônimo Antonio Mora, o “filósofo” dentre os pessoanos), que deveria ser a “caixa mágica hermética”, não reflete nenhum encantamento. Ao contrário, serve simbolicamente de esconderijo.
Com uma interpretação contida – tipos que às vezes lembram espasmo do fantasma de Collor ou desses pastores televangélicos -, enfim, Marques não sustenta o vôo para fazer o público decolar.
Falta-lhe, quem sabe, um encontro efetivo com os papéis que vão se sucedendo no palco espaçoso.
Curiosamente, na cena final, em que se desloca da intenção cômica para aflorar o drama, na interpretação/declamação de um poema de Pessoa, uma ode à fé crista, Marques atinge essa relação de completude. Emociona, sim, mas já cruelmente tarde.
Antonio Mora Recebe Fernando Pessoa – De Marco Antônio Braz e Maurício Marques. Direção: Braz. Com Marques. Quinta a sábado, 18h30. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Consolação, tel. 256-2281). R$ 10,00. Até 28 de junho.