18.3.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Terça-feira, 18 de março de 1997. Capa
Grupo Ponto de Partida se destaca em Curitiba pela coerência dos seus 16 anos de trabalho
VALMIR SANTOS
Curitiba – A história do Ponto de Partida, da cidade mineira Barbacena, ilustra a importância da estabilidade de um grupo para se fazer teatro neste País. “Sou viciada em grupo”, confessa a diretora Regina Bertola, 41 anos, uma das fundadoras. “Um trabalho permanente facilita a pesquisa, a continuidade, o rumo, o repertório, além disso os melhores momentos do teatro brasileiro foram sempre aqueles em que atuavam bons grupos”.
No último fim de semana, o Ponto de Partida encenou no Festival de Teatro de Curitiba a sua nova montagem, “Viva o Povo Brasileiro”, inspirada na obra de mesmo nome do escritor João Ubaldo Ribeiro (leia crítica abaixo).
Lá se vão 16 anos de coerência de um processo que expandiu a partir da própria relação com a comunidade. Barbacena, como acontece com boa parte das cidades do interior, carecia de atividades culturais. Não acontecia nada.
Foi então que jovens da cidade se reuniram para deslanchar o movimento cultural que tem hoje no teatro do Ponto de Partida o seu principal símbolo popular de resistência.
Levou-se para Barbacena “eventos de qualidade”, no dizer de Regina, nos campos da música, literatura e teatro. Foi este último o “veículo” escolhido para embrião. Bia Lessa deu oficina sobre expressão gestual; Sérgio Brito introduziu a preparação vocal e Cacá de Carvalho injetou a disciplina na técnica.
“Ao invés de irmos para onde estão as vitrines, trouxemos elas para o interior”, conta a diretora.
Entender a função social do artista é outro viés presente na formação. “O grande investimento nosso foi gente”, destaca o diretor de produção Ivanée Bertola, também um dos fundadores. Outro destaque da trajetória do grupo é a sobrevivência básica através da bilheteria. O Clube dos Amigos do Ponto de Partida (CAPP) soma atualmente mais de 2 mil sócios.
Se no início pedia-se uma colaboração aqui e ali, de porta em porta, agora o apoio financeiro do clube vem na aquisição de bônus ou de brindes como uma escultura do oratório em um CD independente com canções dos principais espetáculos – “Estação XV”, lançado no ano passado, ocasião dos 15 anos da trupe.
Aos poucos, a iniciativa privada também abriu as portas. “Grandes Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, penúltima montagem, foi patrocinada pelo Governo Cultural do Banco do Brasil. “Viva o Povo Brasileiro” tem a Federação das Indústrias (Fiemg) e o Sesi por trás.
Com uma linguagem cênica definida, rigorosa, que faz tudo para fugir do regionalismo, o Ponto de Partida acumula 100 apresentações no exterior (da África a Paris). O elenco de 12 atores (ex-psicóloga, ex-assistente social, ex-estudantes etc) dedica-se exclusivamente ao teatro.
*O jornalista Valmir Santos viaja a convite do Festival de Teatro de Curitiba.
Definir a alma brasileira é empreitada difícil. São tantos meandros, veredas, que chegar a um determinado comum talvez seja impossível. O escritor João Ubaldo Ribeiro faz uma leitura alegórica em seu “Viva o Povo Brasileiro”, livro que o Ponto de Partida escolheu para montar e aprofundar sua identificação com uma linguagem que leva em conta a brasilidade inerente.
O espetáculo encontrou na MPB a sua melhor tradução. É na essência, um musical. Chico Buarque, Caetano Veloso, Ivan Lins, marchinhas e enredos de carnaval, enfim, a música faz o texto. No “puleiro das almas”, o enfoque vai para a Alminha Brasileira, praticamente o tempo todo em cena, como a procurar um norte, um alento.
Desde os primeiros habitantes, os índios, passando pela condição do “herói improvisado”, macunaímico por excelência, até o velho e gasto jeitinho, o espelho está lá.
Como a colcha de retalhos é vasta, não falta o futebol e a novela, objetos de culto e alienação; amor e ódio. Tem ainda o sincretismo religioso. Antropologia de palco.
Regina Bertola recorre a uma movimentação contínua dos 12 atores, ocupando planos variados do palco, com destaque para o espaço aéreo. Eles se dependuram em tubos de aço e cordas que compõem o cenário. Quando “escalam” as cordas, o quadro lembra uma partitura.
Há menos de quatro meses de estréia, “Viva o Povo Brasileiro” peca ainda pelo excesso. O gigantismo do tema, que resultou acertadamente na expansão do espaço cênico, afeta inversamente o roteiro. Quedas no ritmo e finais insinuados que nunca vêm, merecem atenção.
Mas o encanto está preservado na harmonia epifânica do elenco, nas belas vozes do Cláudia Valle e João Mello e na leveza de ser de Alminha interpretada por Lourdes Araújo. No violão e na direção musical de Gilvan de Oliveira. Na iluminação de Jorginho de Carvalho e César Ramires. Na preparação vocal e pesquisa de timbre de Babaya. No belo exercício de aperfeiçoar a perfeição do Ponto de Partida.
Na abertura da 6ª edição do Festival de Teatro de Curitiba, na quinta-feira passada, o Galpão mostrou seu novo trabalho, “Um Molière Imaginário”. Mais uma vez, prevalece aqui o espírito da festa, do encontro. O ator Eduardo Moreira troca o palco pela direção e adora uma estética paripasso com a de Villela.
O detalhismo do cenário, emoldurado por um fio de pequenas lâmpadas; o colorido dos figurinos e adereços; o ritual do canto e da música tocada ao vivo, com o elenco carregando seus instrumentos; enfim, o espectador identifica de imediato a coerência e a identidade do Galpão.
“Um Molière Imaginário”, contudo, perde muito do impacto no palco italiano, no edifício convencional. O teatro de rua pede um cara-a-cara com o público, uma proximidade com a roda. Na fria e distante Ópera de Arame, com toda a dificuldade acústica que se sabe, a interação perde muito.
Descontado isso, sobra o talento dos atores e o respectivo esforço em atingir a platéia. O recurso do microfone – um filtro que retém um pouco da magia, diga-se de passagem – atenuou o problema de audição na gigante estrutura de ferro erguido próxima a uma pedreira em Curitiba.
O recurso visual, a movimentação e principalmente a música – trata-se de um espetáculo musical, na essência – sustentam a história que “ressuscita” Molière da sua morte súbita no palco, na vida real, e o traz para o universo imaginário, com suas alegorias e evoluções de raízes populares. O autor francês do século 17, pai da farsa, é reverenciado sem pompa e muita circunstância brasileira. E tudo fluiria muito melhor na rua.