26.1.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 26 de janeiro de 1997. Caderno A – 4
Montagem da Cia. Teatroasotragos, direção de Fonseca, atualiza primeira peça de Brecht
VALMIR SANTOS
São Paulo – Quando escreveu a sua primeira peça, Bertolt Brecht (1898-1956) tinha 20 anos. Seminal, “Baal” traz o dramaturgo ainda distante do tom épico que marcaria boa parte da sua obra. No entanto, o texto já espelhava a sua voracidade transformadora. É um Brecht jovem, poeta vigoroso, comprando brida com o movimento expressionista alemão da época. O tom ideológico fica em segundo plano para florescer o indivíduo. Baal, cantando seus poemas, desafia a ordem das coisas; mama o seio da natureza animal humana para dissecá-la sem concessões.
A viagem pela “floresta negra” na montagem de ‘Baal’ – O Mito da Carne” é um constante embate entre libido e razão; dor e prazer; vida e morte. Enfim, a dualidade caleidoscópica na qual as certezas se diluem e tudo transita pelo plano do experimental , do novo, do jogo sem regras. O espetáculo da Cia. Teatroaostragos, em cartaz no Teatro Oficina, na Capital, atualiza Brecht com a energia correspondente ao espírito do dramaturgo.
Há algo de rebeldia, de James Dean em “Juventude Transviada”, de marginalidade na concepção. Não à toa, cita-se uma frase do filme “O Bandido da Luz Vermelha”, de Rogério Sganzerla (“O terceiro mundo vai explodir e quem tiver de sapato não sobra”!). A adaptação, assinada pelo diretor Marcelo Marcus Fonseca, ao lado de Zeno Wilde, contextualiza “Baal” para o final do milênio sem comprometimento da palavra brechtiana.
Com sua projeção anárquica do espaço cênico, idealizada pela arquiteta Lina Bo Bardi, o Oficina do dionisíaco José Celso Martinez Corrêa é a casa ideal para Fonseca e sua trupe de jovens atores, como ele, alçar vôo. A montagem estreou ano passado no Espaço Equilíbrio (um pecadilho?), em Pinheiros, e enfrentou problemas de toda ordem (natural, com uma tempestade que destruiu parcialmente cenários e figurinos, e humana, por assim dizer, com o roubo de equipamentos). Ressuscita agora na temporada do Oficina, com um elenco praticamente novo.
Fonseca também é o protagonista. Encarna Baal com um alheamento (não exatamente distanciamento), uma leveza desconcertante. O corpo esguio, o figurino de paletó com babados, uma boneca de pano pendurada como bolsa são detalhes de um desenho de ingenuidade que lembra um Pequeno Príncipe. Perfeito para o paradoxo que se enseja: a crueldade guiada pela paixão.
Baal ama o amigo Ekart (Élcio Nogueira, mogiano que vem amadurecendo e conquistando seu espaço no teatro paulistano), mas entre eles corre um rio de mulheres. Joana (Bel Kutner) e Sophie (Carolina Gonzalez) representam o universo feminino que o autor sabe poderoso, tanto que deu para uma das personagens o nome de sua mãe (Sophie). O desejo – e suas variantes – rege tudo. Baal se lincha para aqueles que têm como “gênio” poeta. É o caso de Mech (Ariel Borghi), o negociante inescrupuloso que propõe editar um livro.
O escritor, cheio de si, visionário que é, devora Joana e Sophie, ambas virgens. A primeira, namora Johannes, jovem que vê seus ideais caírem por terra depois da traição. A Segunda, fica grávida e se envolve com Ekart. A busca do outro através de uma “ética” muito pessoal acaba movendo os corações no tabuleiro de Brecht.
“A carne se desfaz, o espírito também”; “O que existe de mais bonito é o nada”; “O melhor lugar do mundo é mesmo a privada”; “O amor é um ato entre o céu e o chão” – são lampejos assim que brindam o espectador. “Fumando, bebendo, o desregrado Baal prefere a reza sem pureza, sem a “missa” de Ekart, que confessa: “Você corrompe a minha alma como corrompe a tudo que toca.”
“FAQUIR DA DOR”
Para a saga do “faquir da dor”, pétalas vermelhas e brancas; a tradicional queda d’água do Oficina, a iluminação igualmente visceral de David de Brito; a música ao vivo do trio David Prieto, Paulo Lowenthal e Johny. “Baal – O Mito da Carne” ocupa o “corredor” do teatro com dinâmica na movimentação do elenco, muitas vezes recorrendo ao coro grego. Os “números musicais” são bastante despojados, com vozes regulares – Fonseca se sai bem nas suas performances, com pinta de roqueiro.
O diretor, aos 25 anos, emana carisma no palco, demonstra conhecê-lo, e desponta como um dos criadores mais importantes no momento em São Paulo. Anuncia, para este ano, a montagem de “O Balcão”, de Jean Genet, com arrebatamento digno da histórica versão do argentino Victor Garcia, nos anos 70, quando o encenador levou o Teatro Ruth Escobar literalmente para o buraco.
Baal – O mito da Carne – De Bertolt Brecht. Adaptação: Marcelo Marcus Fonseca e Zeno Wilde. Direção: Marcelo Marcus Fonseca. Com o grupo Teatroaostragos (Laudo Olavo Dalri, Plínio Marcos Rodrigues, Paula di Paula, Caco Mattos, Eduardo Santana, Juliana Monjardim, Nancy Rosa, Nicolas Trevijano, Rita Alves, Evandro Rhodem, Karine Carvalho e outros). Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Oficina (rua Jaceguai, Bela Vista, tel. 604-0678). R$ 20,00.
“Bar, Doce Bar” vai ao fundo do copo no divã
São Paulo – Afinal, o que querem os homens? A pergunta é a melhor tradução da comédia musical “Bar, Doce Bar”, mais um texto de Luís Alberto de Abreu, em outra dobradinha com o diretor Ednaldo Freire – eles respondem pelo projeto de comédia popular da Fraterna Cia. de Artes e Malas Artes (“O Anel de Magalão”, “O Parturião” e “Burundangas”). Agora, o elenco é do grupo Zambelê, que há 15 anos prioriza musicais.
Responsável por trabalhos marcantes nos últimos anos (é de sua autoria “Bela Ciao”, “A Guerra Santa” e adaptação de “O Livro de Jó”, além das comédias populares com a Fraternal), Abreu vem demonstrando uma habilidade bastante eclética no trato com a dramaturgia. Em “Bar, Doce Bar”, ele visita o universo masculino, ‘o clube do bolinha” que adota o boteco como divã.
É ali, na mesa de bar, tomando umas cervejas e outras, de quando em vez um rabo-de-galo sem hemorróidas”, que um grupo de seis “machos” expõe a face que dificilmente revela na intimidade do verdadeiro lar, quer para a família. “É no bar, de homem para homem, que finalmente os homens conseguem se mostrar, revelando suas expectativas frente à mulher e ao mundo”, argumenta o diretor Freire.
Abreu se apropria de todos os chavões possíveis para tratá-los de forma poética, com um viés psicológico que, em muitas passagens, faz da comédia musical um drama. A peça percorre a amizade do grupo desde a adolescência até a “idade do lobo”.
A turma da escola, que cultua as pernas da professora; o pileque na comemoração da formatura; a despedida de solteiro do primeiro a colocar uma aliança; as inevitáveis crises conjugais; os encontros esparsos da vida adulta regrada pelo trabalho que consome tudo; enfim, os seis representam, por assim dizer, um pacto de fidelidade ao longo da vida. “Os homens são animais gregários por natureza”, filósofa um do bando, a certa altura.
Para demonstrar essa evolução, “Bar, Doce Bar” conta com um elenco preciso. Os seis rapazes do grupo Zambelê dominam a técnica do canto e da interpretação (assumidamente naturalista, sem virtuosismos). A ocupação do palco, colaborada pela coreografia de Augusto Pompeo, é bem-feita. A música, executada ao vivo por três instrumentistas, dialoga coerentemente com as atuações.
Há um sétimo personagem em cena, o garçon Alfredo (Clóvis Gonçalves), o “ombro” que conhece seus fregueses-de-carteirinha como ninguém e surge também como narrador-introdutor das situações do espetáculo. “Minha função aqui é servir e saber”, assume.
“Bar, Doce Bar” não tem a presunção de “Os Cafajestes”, por exemplo, musical escrachado da companhia baiana Los Catedráticos. Naquele, predomina o ideal fálico, machista, numa verdadeira sátira ao típico brasileiro. Já na história de Luís Alberto de Abreu, há espaço para a mulher.
Mesmo sem um papel sequer, é em torno dela que predominam as conversas. “O homem é emocionalmente dependente da mulher, mas não minha geração e da do Abreu, que está hoje na faixa dos 40 anos”, acredita o diretor.
“O bar é a trincheira dos homens”, conclui o garçon-narrador, ele mesmo também expondo a sua solidão; cúmplice dos fregueses. Em certos momentos, a montagem perde o ritmo; talvez pela reiteração de enfoques. Mas são breves instantes, não suficientes para emperrar o texto, a direção e a entrega dos atores Aldo Avilez, Fausto Maule, Fernando Petelinkar, Flávio Quental, Tico d’Godoy Jonathas Joba e Clóvis Gonçalves.
Com o novo espetáculo, o grupo Zambelê amadurece seu processo de pesquisa musical – sobretudo a comédia -, como o público já teve oportunidade de acompanhar em “Sexo, Chocolate e Zambelê” (1992) e no infantil “Chimbirins e Chimbirons” (1994). E o gênero musical está cada vez mais afinado, com fôlego para entreter sem padecer da síndrome de inferioridade.
Bar Doce Bar – De Luís Alberto de Abreu, mesmo autor de “Bela Ciao”, “A Guerra Santa” e adaptação de “O Livro de Jó”. Direção: Ednaldo Freire. Com grupo paulistano Zambelê. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Música composta por Marcos Arthur. Músicos: Giancarlo Gerbelli (teclado), João Adriano (violão), Fernando El Barracón (percussão) e Cássio Neves (baixo). Iluminação: Newton Saiki. Coreografia: Augusto Pompeo. Cenário, figurino, adereços: Luís Augusto dos Santos. Teatro Ruth Escobar (rua dos Ingleses, 209, tel. 289-2358). R$ 20,00. 95 minutos. Até 4 de maio.