3.8.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 03 de agosto de 1997. Caderno A – 4
Gênero que viveu seu apogeu nos anos 20 e 30 no Brasil ganha livro de Neyde Venziano
VALMIR SANTOS
São Paulo – Uma passagem pelos títulos dos espetáculos apresentados nas décadas de 20 e 30 – – sua época de ouro no Brasil -, dá o tom do que foi o Teatro de Revista entre nós: “Forrobodó, a Capital Federal”, “O Rei do Poleiro”, “Olelê!… Olalá!…”, “Tatu Subiu no Pau”, “Pirão de Areia”, “Bom Que Dói”’, “É da Pontinha”, “Dá no Couro”, “Angu de Caroço”, “Abafa a Banca”, “Em Ponto de Bala”, etc… Importado da França, ganhou urna roupagem que traduziu o espírit:o de um povo como poucas expressões artísticas o fizeram.
Muito do que se vê nos palcos contemporâneos remete ao escracho, ao humor espontâneo, à alegria dos poucos diálogos (esquetes) e de muitos números musicais que representaram o Teatro de Revista. Foi a “concreta tradução teatral” do País, defende a pesquisadora Neyde Veneziano em “Não Adianta Chorar – – Teatro de Revista Brasileiro… Oba!”, livro recém-lançado pela editora Unicamp.
Conhecida pela, sua atuação acadêmica e sobretudo pela direção teatral (“Almanaque Brasil” foi um musical que emplacou em suas mãos), Neyde Veneziano especializou-se no assunto. Seu acalentado estudo vai além do embasamento histórico. Como escreve na sua introdução, a autora quer transcender os estereótipos da vedete, da banana, da tropicália. Tudo bem, são dados concretos. Mas por trás das baianas, das músicas e dos balangandãs existe também o conceito cultural.
“Que venha também a consciência de um teatro que contribui para a nossa formação cultural, que fixou nossos tipos, nossos costumes, nosso modo genuíno de falar “à brasileira”, reivindica Veneziano. As 203 páginas ganham um tratamento que passa longe do meramente acadêmico (exceção feita à não tradução de trechos em francês ou italiano para o português, afunilando o acesso à uma compreensão efetiva). Claro, a autora não fez um texto “metarevista”, com o humor de antanho – e nem seria o caso. O livro é, sim, uma reforço histórico, uma acentuação de um gênero que geralmente é revisitado equivocadamente com pecha de arte inferior. Ledo engano.
Numa época em que não existia o rádio, tampouco a televisão, era na platéia do teatro que o público ia conferir a retrospectiva dos acontecimentos do ano. Daí a re-vista… Imaginem as famosas retrospectivas globais de fim de ano levadas ao palco em números musicais ou esquetes (textos breves, diálogos curtos). As revistas de ano eram uma deliciosa sátira ao País, principalmente aos políticos.
Nem burleta, nem cabaret, nem vaudeville, nem café-concerto, nem music-hall, nem opereta, enfim, Neyde Veneziano toma o cuidado de distinguir as manifestações geralmente associadas à revista. A autora, então, a define assim: “Espetáculo ligeiro, misto de prosa e verso, música e dança, faz, por meio de inúmeros quadros, uma resenha, passando em revista fatos sempre inspirados na atualidade, utilizando jocosas caricaturas, com o objetivo de oferecer ao público uma alegre diversão”.
O livro estabelece ligações com a origem primitiva do teatro popular de cinco, seis séculos atrás – sua veia cômica, bufona, paródica –, para o plataforma ao qual se lançou a revista. Enquanto gênero, segundo o livro, a revista nasceu no século 18, nas ruas da França. Nas barracas das feiras, improvisavam-se históricas ou situações carnavalescas nas quais os protagonistas criavam com um olhar “ao avesso” em relação ao mundo.
Uma revista à brasileira ga nna corpo entre as décadas de 20 e 30. A Semana de Arte Moderna, em 1922, a revista se moderniza com um melhor tratamento cênico, com detalhes da iluminação ao desnudamento das pernas das moças no palco. Carlos Bettencourt, Cardoso de Menezes, Marques Porto e Luiz Peixoto estão entre os melhores revistógrafos da história do Brasil. O Rio de Janeiro, então capital federal, reinou absoluto abrigando a maioria dos espetáculós. Quanto aos intérpretes, destacaram-se Henriqueta Brieba, Alfredo Silva, Áracy Cortes, Pepa Ruiz e Edith Falcão.
Pouca gente sabe, mas a cantora Carmem Miranda tentou pegar carona no movimento teatral popular daquela época, mas chegou tarde. Numa das suas raras apresentações no Brasil, em 1930, com “Vai Dar que Falar”’, de Porto e Peixoto, ela foi vaiada porque era “excessivamente realista” em cena. Depois de evoluir das resenhas anuais para uma posição assumidamente carnavalesca, não dava para ignorar a perspectiva popular.
São informações esclarecedoras como essas que a pesquisadora Neyde Veneziano expõe em “Não Adianta Chorar…”. Se exegese, sem saudosismo barato, contextualizando o leitor em relação à situação política em voga – aliás, a revista constituia caldeirão propício –, o livro resulta num documento valioso para o Teatro Brasileiro. A breve iconografia e a relação dos principais espetáculos complementam esta que pode ser considerada uma incursão afetiva de Veneziano sobre tema apaixonante. Afinal, foi um tempo em que se ria com alusões políticas e sociais de fazer censor corar.
Não Adianta Chorar – Teatro de Revista Brasileiro…Oba! – De Neide Veneziano. Editora Unicamp (Cidade Universitária, Caixa Postal 6074, Campinas-SP, CEP 13083-970, tel. 19 788-2170). R$ 22,00.
20.7.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 20 de julho de 1997. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – A peça começa simbolicamente com a ‘‘crise do espetáculo”. Em cena aberta, Marco Nanini disponta da platéia encarnando o seu Sr. Jordain, o “burguês ridículo” do título. Dai para frente, o que se tem é uma sincera homenagem ao teatro, à comédia especificamente, representada pela verve de Molière. É o ator Molière, mais do que o dramaturgo francês do século 17, que dá o ar da graça em “O Burguês Ridículo”.
Guel Arraes e João Falcão, vindos de humorísticos da televisão, experimentam a arte da direção e, de quebra, respondem pela adaptação. Tomam como ponto de partida “Burguês Fidalgo” e acrescentam trechos de outras peças de Molière, como “As Sabichonas” e “As Preciosas Ridículas”. Tal cruzamento resulta em um texto que preserva muito da comédia francesa da qual Molière é estrela-mor.
Claro, um texto originário de Molière não pode trair a crítica de fundo social e político. Não é à toa que o autor é levado aos palcos brasileiros com tanta frequência. Ri-se da hipocrisia familiar; ri-se da jogatina política; ri-se da escassez ética. Ri-se, em Molière, com um gostinho amargo de realidade. Como se três séculos não houvessem passado.
Na direção, Arraes e Falcão depositam tudo no ator. Para tanto, têm um elenco afinado com a proposta cênica. Nanini encabeça com sua notável presença de palco, já conhecida de montagens anteriores. Aliás é uma surpresa agradável identificar a coerência do trabalho deste ator. Cita-se a irresistível montagem de “O Mistério de Irma Vap” ou a recente “Kean”. Nanini está sempre metido no teatro dentro do teatro. É uma condição que só a maturidade propicia aos grandes atores.
“O Burguês Ridículo” tem ainda a figura impagável de Ary França como Dorante. O sangüessuga fiel do Sr. Jordain é um dos melhores papéis da carreira deste comediante. Seja no drama “Édipo Rei”, sob o vôo dionisíaco de Renato Borghi, seja na divertida “O Doente Imaginário”, com Cacá Rosset, França domina plenamente as nuanças de cada personagem. Nele, o público sempre vai encontrar o esforço criativo, o empenho pela verdade interpretativa.
Outro destaque é a empregada Nicole de Betty Gofman. A atriz coloca corpo e voz a favor da caricatural. Mas não o faz gratuitamente. Ao contrário, vai no limite de ser ridícula na acepção pejorativa do termo. O trabalho de Betty e a relação entusiasmada do público com sua personagem confere um status merecido para ela que também se entrega com risco e competência.
É um grande espetáculo, com atuações marcantes. Uma noite com os comediantes do rei, com a cenografia majestosa e não-empolada de Fernando Mello da Costa, mais os figurinos clássicos e leves de Emília Duncan, enfim, uma noite com essa trupe resume-se a um encontro com um teatro levado a sério em suas mínimas exigências.
O Burguês Ridículo – Adaptação da obra de Molière. Direção e tradução: Guel Arraes. Tradução: José Almino. Com Bruno Garcia, Dora Pellegrino, Oberdan Junior, Virgínia Cavendish e outros. Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística/Sala Esther Mesquita (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel. 258-3616). R$ 25,00.
“As Sereias” mergulha no “telebesteirol”
Mas a atualização aponta para um ratamento interpretativo mais direcionado
São Paulo – Muito do espírito besteirol se perdeu nos últimos tempos. Não se tem mais aquela ingênua irreverência, o susto do improviso, a língua ferina. A despretensão lavada do seminal grupo Asdrúbal Trouxe o Trambone, na carona da abertura política do País, deu o tom do humor nos palcos brasileiros no início dos anos 80. Agora, resta o consolo televisivo de alguns resquícios em “Casseta & Planeta”, por exemplo.
O esforço é grande no teatro, mas parece que tanto a platéia quanto os atores estão sendo tolhidos pela imaginação catódica. Ou seja, o que se vê resvala muito na novela das sete. O que não chega a comprometer o entretenimento, diga-se de passagem. Atende à espectativa do público, ávido por uma deixa, por uma gag que lhe faça cócegas.
Quando ainda não sofria o bombardeio midiático ao qual se submete atualmente, Miguel Falabella chegou a dividir a cena com Guilherme Karam em “As Sereias da Zona Sul”. Era um texto que ele escreveu a quatro mãos com Vicente Pereira, o autor de “Solidão, a Comédia”. Adaptada agora, dez anos depois, para as duas ótimas atrizes Rosi Campos e Zezeh Barbosa, a peça é sintomática da comédia destes anos 90.
Sim, há um pouco do Asdrúbal (Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães). e de Dercy Gonçalves nas interpretações. Mas a atualização aponta para um tratamento interpretativo mais direcionado.
Escolada em humor radical, Rosi Campos é uma “sereia” que não ousa avançar, se atirar ao mar do riso que captura pela essência. Nem no átimo de uma falha, quando a sonoplastia não sintoniza com um gesto seu exagerado. Mesmo o pequeno escorregão não a lança para a formidável contribuição dos erros em se tratanto do exercício de divertir.
Na adaptação do texto que agora dirige, Falabella investe no contraponto entre Rosi e Zezeh Barbosa. Esta é dona de uma atuação histriônica, popular – lembra uma Dercy, um Grande Othelo. Zezeh provoca empatia imediata. Ela se destacou no musical “O Mambembe”, uma incursão pouco convincente de Gabriel Villela pelo gênero. Falabella assistiu à montagem e a escalou para a sua novela “Salsa e Merengue”.
Dificilmente “As Sereias…” funcionaria com outra dupla. Rosi e Zezeh são perfeitas para as quatro esquetes. A melhor, disparada, é aquela na qual interpretam duas socialites em uma sauna. Descascam impropérios contra a ralé, até que as personagens são “castigadas” no desfecho hiláno.
Hildinha ou Ivete, entre outras, as mulheres de Rosi e Zezeh se esmeram na mesquinhez. Elas passam rímel no terceiro olho, resumem suas vidas numa edição de bolso e soltam pérolas como: “Sou uma mulher que só pensa quando está maqueada”. No outro extremo, a peça visita a angústia existencial de uma poeta, que se sai com a espantosa frase-síntese do mundo contemporâneo: “A única porta secreta é a que nos separa de nós próprios”.
A dobradinha Falabella-Vicente Pereira resultou em diálogos ligeiros, como convém à comédia. Falabella trouxe o texto para o presente e contextualizou os papéis femininos, respeitando o entretenimento. O crítico não assistiu à versão masculina de “As Sereias…”, mas suspeita que ambas corresponderam à qualidade cênica de sua época. Hoje, esse que pode ser chamado de “telebesteirol” é mais um dos frutos deste final de século acelerado. Felizmente, a compactação ainda não estancou de vez a arte do ator que Rosi e Zezeh sabem fazer valer em cena. Apesar de tudo.
As Sereias da Zona Sul – De Miguel Falabella e Vicente Pereira. Direção: Falabella. Com Rosi Campos e Zezeh Barbosa. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Hilton (rua Ipiranga, 265, Centro, tel. 259-5508). R$ 20,00 e R$ 25,00 (sábado). 80 minutos. Estacionamento gratuito na rua Epitácio Pessoa, 75.
13.7.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 13 de julho de 1997. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Maria Adelaide Amaral é a veia feminista da dramaturgia brasileira. Há 20 anos, a autora reflete em seus textos sobre a condição da mulher no mundo: a família, o amor, o preconceito social… São muitos os ângulos. Em “Inseparáveis”, ela volta à carga com um dos espetábulos mais contundentes da carreira.
As personagens Maria Regi-na e Ana estão na faixa dos 40 anos e como que passam a limpo a vida. O reencontro acontece depois de anos sem se verem. Ao rememorar os primeiros momentos daquela amizade, com certa nostalgia, elas acabam também encontrando o chão da realidade em que vivem.
Maria Regina está decidida a romper um casamento de 25 anos. Ana, já divorciada, vem de uma frustração amorosa com homem mais novo. É dessa gangorra paradoxal entre um passarinho nas mãos e muitos voando que se dá os conflitos e as intersecções. A autora de “Inseparáveis” proporciona ao público um mergulho na alma das personagens tão comuns em seus anseios de felicidade, em suas misérias amorosas, em seus apegos à esperança.
“Eu nunca me apaixonei por ninguém, nem pelo meu marido”, garante Maria Regina. Nos últimos anos, o único prazer para ela, na hora do ato sexual, éespremer os cravos nas costas do marido insensível. “Você não imagina o quanto este País é implacável com as mulheres como a gente”, dispara Ana. Se uma moça de 25 anos é considerada “velha” para certas carreiras, o que dirá uma mulher de seus 40 anos. Maturidade e vivência são descartadas por uma regra perversa de mercado.
Mas Maria Adelaide Amaral não se furta ao humor. Por mais que a temática seja dura — mas necessária -, a escritora respinga um senso cômico em suas personagens. Para arrematar, introduz um homem na história. Guto, o marido abandonado por Maria Regina, acumula os chavões machistas, as chantagens de cama, o blablablá comum de quem não é capaz de perceber a infelicidade da companheira.
Casamento, solidão, orgasmo fingido, menopausa – um texto com tal abordagem existencial requer atrizes de peso. Irene Ravache (Maria Regina) e Jussara Freire (Ana) sustentam cerca de duas horas de espetáculo com uma harmonia espantosa. As duas expõem suas personagens com conhecimento de causa. As nuanças das falas, o repertório gestual, a emoção em estado bruto – enfim, trata-se de um casamento orgânico e introspectivo com Maria Regina e Ana.
O contraponto Guto também é encarnado com talento por Eduardo Conde. Sua imagem de canastrão é perfeita. Suas súplicas para ter a mulher de volta são impagáveis. Diz que vai “morrer de tristeza’’; recomenda tratamento contra “frigidez”. Quando se convence de que Maria Regina não voltará atrás, então tira a máscara do ridículo e avisa que vai arranjar uma garota novinha para desfilar por aí.
A direção de José Possi Neto aposta exatamente no potencial de Irene Ravache e Jussara Freire. É um texto que gira em torno da amizade e isso fica muito patente em cena. A cenografia de Felippe Crescenti transcende a sala-de-estar, figurinha carimbada nas montagens das peças da autora.
“Inseparáveis” mostra que a virada na vida independe da idade. Sob a premissa da felicidade, da paz consigo, toda e qualquer movimentação que se faça é sagrada. No texto e na interpretação, paira um sentido de -humanidade que se fixa na mulher pelo enfoque, mas no fundo não tem sexo.
Inseparáveis – De quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Faap (rua Alagoas, 903, Pacaembu, tel. 824-0104). R$ 20,00 e R$ 30,00 (sábados). 90 minutos. Até setembro.
“Filhas de Janete Clair” faz autocrítica
Homenageando a telenovela, a comédia traz dois atores no papel de comadres hilárias
São Paulo – Telenovela, essa paixão nacional, ganha uma bela homenagem em “As Filhas de Janete Clair”. Trata-se de um projeto antigo do ator Armando Filho, noveleiro confesso que já contabilizou ter assistido a 271 tramas na televisão. Ele convidou Jandira de Souza para desenvolver a pesquisa e finalizar o texto. Em cena, estão o próprio Armando e Fausto Franco nos lpapéis de Corina e Delaide.
As personagens simplesmente acompanham novelas desde a primeira produção brasileira, “2-5499 Ocupado”, exibida pela extinta TV Excelsior, em 1963. Daquela história protagonizada por Tarcísio Meira e Glória Menezes, 34 anos atrás, até os avançados anos 90, a peça conta a trajetória da amizade entre Corina e Delaide.
Elas fizeram das novelas das seis, das sete e das oito a história paralela de suas vidas. Muito se fala do poder encantatório dos folhetins eletrônicos e da iminente solidão que se esconde por trás do fenômeno. A montagem materializa essa constatação no palco, onde o público ri e se emociona com as peripécias daquelas cinqüentonas hilárias.
Os perfis são emblemáticos. Corina não tira Carlão da cabeça desde que assistiu à cena final de “Pecado Capital” (1976). O corpo estendido em plena obra do rnetrô carioca, coberto por jornais, e ainda por cima enlutado pela canção de Paulinho da Viola (“Dinheiro na mão é vendaval/É vendaval/Nas mãos de um sonhador…”) foi transposto da ficção para a realidade da personagem. Desde então, Corina não teve outro homem, amargando uma angústia infinita. Mesmo com o surgimento de outros heróis, de outros galãs, continua infeliz.
Delaide aparenta maior tato com a vida. Assimila modas e trejeitos que de tempos em tempos as novelas soltam. Experimentou o casamento, mas o marido morreu. Viúva, foi à luta, mas só teve decepções.
“As Filhas de Janete Clair” é uma homenagem, sim, como se disse. Mas enseja também uma autocrítica. Não fosse a novela, a que Corina e Delaide poderiam se apegar? Quantas pessoas, Brasil afora, não se alimentam dos mesmos sonhos e padecem dos mesmos sofrimentos? Sonhos e sentimentos alheios, mas tão próximos, tamanha a identificação com os personagens.
De volta à montagem, o que se tem é uma verdadeira antologia televisiva no palco. Corina e Delaide se encontram para assistirem juntas ao último capítulo de “Vale Tudo”. Como todo o Brasil, elas também querem sa ber quem matou Odete Roit-man, a céebre personagem de Beatriz Segall. É nessa noite que se desenrola a história da peça.
Elas têm brincadeiras próprias, voltadas para as novelas. A cada palavra-chave, simulam personagens globais, remetendo a cenas que acompanharam em outras épocas. São citados tipos como Nono Corrêa, Dona Xepa, Perpétua e Viúva Porcina. As falas, as imagens de artistas projetadas em slides e as cenas em que brincam de intérpretes, com direito a figurinos e caracterizações, enfim, tudo soma cerca de150 referências a novelas.
O bombardeio de informações se instala sem enfado. A história flui de forma que mesmo os não-noveleiros acompanhem seu ritmo. Não se descarta a ficção em nenhum momento. A “realidade” das novelas é ínserida sem prejuízo da magia teatral.
As atuações de Armando Filho e Fausto Franco são responsáveis em grande parte por isso. Em especial Armando. Sua Corina é lapidada no tom de voz, no tratamento delicado da emoção. Fausto, como o próprio papel pede, é mais expansivo, exagerado. Ambos têm sua graça e conquistam a empatia do público logo no início, quando surgem metidos em vestidos floridos.
Na direção, Eduardo Silva (atuando em “Os Reis do Improviso”), tomou cuidado em não caracterizá-los como travestis. O que se vê são duas mulheres em cena, com seus cacoetes, suas crisesinhas. Há também alguns números musicais, sob direção de Gustavo Kurlatm acentuando a leveza do espetáculo. A trilha sonora, assinada por Aline Meier, é um capítulo à parte, trazendo temas de novelas. Lembra-se de “Rock’n Roll, Lulaby”, interpretada por B.J. Thomas em “Selva de Pedra”? Está lá…
A cenografia de Marisa Rebollo tipifica milhares de lares dos brasileiros. O sofá a poucos centímetros da televisão, a cozinha, os quadros de artistas nas paredes. O projeto de “As Filhas de Janete Clair” tem o mérito de tratar com inventividade um assunto tão enraizado no imaginário nacional. Não é à toa que na estréia, no final de semana passado, o espetáculo teve sessões extras, por causa da empatia do público. Uma montagem simples e com a força que só o teatro pode emanar.
As Filhas de Janete Clair – De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Brasileiro de ComédiaAssobradado (rua Major Diogo, 315, Bela Vista, tel. 604-5523 e 606-4408). R$ 10,00. 75 minutos. Até 31 de agosto.
1.6.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 01 de junho de 1997. Capa
Paulo Autran está em “Para Sempre “, com sessão única amanhã no Teatro Municipal de Mogi
VALMIR SANTOS
Uma das grandes expectativas quando da estréia de “Para Sempre”, no Festival de Teatro de Curitiba, em março, era quanto ao tema homossexual. Seria uma gay play, nos moldes de “O Melhor do Homem”, dirigida por Ulysses Cruz e atualmente em cartaz no Rio? A diretora Vivien Buckup define melhor o texto de Maria Adelaide Amaral. “E uma relação homossexual, sim, mas a questão é a dimensão humana, as dificuldades, o como as pessoas se afastam”, afirma. A montagem tem única sessão amanhã, no Teatro Municipal de Mogi, e marca o reencontro do público mogiano com um dos maiores atores do País – Paulo Autran apresentou o monólogo “Quadrante” em 1993, na reinauguração do Municipal.
O texto de Adelaide Amaral foi escrito especialmente para Autran. Mas quando ele leu, pensou um pouco antes de montá-lo. Até que aceitou. “Amor é amor, seja hetero ou não”, dispara Autran. Aos 75 anos, ele esbanja maturidade para encarnar um papel polémico. Está pouco preocupado com sua imagem, corroborada sobretudo pela televisão. Veículo, aliás, por qual nutre um desprezo sem meio-tons.
Em “Para Sempre”, Max (Autran) é um professor de Teoria Literária, que está unido há 18 anos com Tony (Celso Frateschi). A peça se passa quando eles enfrentam conflitos mais latentes, que colocam em jogo o futuro da relação. “Max não é uma bicha, com estereótipos; é um homem que tem sensibilidade e pensa muito”, explica o ator.
Na opinião de Autran, o viés da peça é justamente este: mostrar o homossexual com uma perspectiva humana, sem as tintas de aventura e promiscuidade difundidas principalmente pelo cinema. “Como se os casais heterossexuais também não fossem tão promíscuos quanto”, alfineta.
Além da direção, função na qual debutou em “Aguadeira” e ganhou corpo em “Cenas de Um Casamento”, Vivien Buckup desenvolveu um trabalho especial de expressão corporal. O Tony de Frateschi, por exemplo, surge sem afetação, apesar dos gestos delicados. Mas, no fundo, não deixa de expor sua virilidade, tomando a decisão de romper a relação.
Karin Rodrigues, companheira de outras montagens ao lado de Autran, interpreta Eva, o vértice do triângulo. Ela é amiga do casal e divide com eles suas torturas amorosas. Tem tanto carinho por Max, que acabe ficando com ele ao final (leia crítica abaixo).
Ao lado do elenco estelar, estão profissionais renomados da cena teatral brasileira. Gringo Cardia assina a cenografia; Fábio Namatame os figurinos; e Maneco Quinderé a iluminação.
Para Sempre – De Maria Adelaide Amaral. Direção: Vivien Buckup. Com Paulo Autran, Celso Frateschi e Karin Rodrigues. Única sessão amanhã, 21h. Teatro Municipal de Mogi (rua Dr. Corrêa, 515, tel. 460-1747). R$ 50,00. Disk ingresso: 470-9477.
Desfecho tira plenitude de “Para Sempre”
Casal homossexual se separa após 18 anos e um deles fica com outra mulher no final da história
Vindo de uma interpretação marcante em “Rei Lear”, um Shakespeare tão aguardado em sua carreira, era de esperar um Paulo Autran tão intenso quanto, sobretudo em se tratando de um texto assinado pela premiada Mana Adelaide Amaral. Nem uma coisa, nem outra. Há um senão em “Para Sempre” que resulta em uma decepção para o espectador atento. A autora junta duas pessoas do mesmo sexo, por 18 anos, e a separação culmina com uma delas nos braços de alguém do sexo oposto.
Max, o professor universitário pomposo e cheio de si, atravessa uma crise com seu companheiro, Tony, um bancário. A peça gira em torno das dificuldades de ambos em levar a relação adiante. Ficam cada vez mais paten tes as diferenças sociais, culturais. Tudo vai num crescendo coerente, cavucando as vicissitudes hu manas, como Adelaide Amaral sabe fazer tão bem – vide obras anteriores, como “Tão Longe, Tão Perto”, “Bodas de Papel” e“Intensa Magia”.
Mas um senão, enfim, desmonta todo o clima e a densidade que se construíu até ali, no desfecho. Depois de longos 18 anos, uma vida, Max simplesmente abandona Tony e começa uma nova relação, agora heterossexual, com a sua melhor amiga, Eva. E tudo – parece – acaba bem.
A mulher da peça é vivida por Karin Rodrigues, que emana a elegância e a correção da personagem, tão conflituosa quanto o casal homossexual. Ao mesmo tempo que acompanha in loco as desavenças entre Max e Tony, Eva encontra no casal, sobretudo em Max, é claro, um interlocutor para a sua eterna desilusão amorosa.
Paulo Autran vive bons momentos, como na cena em que fica prostrado diante do ser amado, em um jorro emocional, rasgado, expondo o desespero da perda amorosa. É preciso insistir: como pode, diante de dor arrebatadora, ainda assim sair-se com uma opção desconcertante para a história?
Celso Frateschi encontra o meio-termo do seu Tony, dispensando a afetação e assumindo, em alguns momentos, uma postura mais viril e ameaçadora em relação ao seu companheiro. Há pouco tempo, Frateschi interpretou um monólogo marcante, “Do Amor de Dante por Beatriz”, no qual remetia ao sentimento de perda da mulher, a também atriz Edith Siqueira, morta no ano passado.
A direção de Vivien Buckup é tranqüila. Ela deixa os atores bastante à vontade. Fosse outro o final de “Para Sempre”, o drama se tornaria mais pleno no que ele pretende impactar. Maria Adelaide Amaral se equivocou. Max, apesar da couraça, demonstra interiormente um desespero amoroso que não podia ser desprezado tão simplesmente, como o foi.
1.6.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 01 de junho de 1997. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
São Paulo – São tantas as perplexidades, as alegorias, as indagações em “Opus Profundum” que o crítico achou por bem adiar a abordagem da peça quando da apresentação no Festival de Teatro de Curitiba, em março. Na temporada paulistana, o embate finalmente se deu.
Dionísio Neto é um ensinador provocante. No texto, no palco ou atrás dele dispensa a aura do diretor – figura que roubou a cena durante os anos 80, começo dos 90, e agora vai sendo distituído do trono aos pouco. Invariavelmente vestindo a camiseta estampada com o jogo da banda Smashing Pumpkins, Neto valoriza a interpretação no que ela tem de essencial – a palavra e o corpo, não necessariamente nesta ordem.
Aos 25 anos, umbilicado com o mundo das ruas, da urbanidade, da metrópole em que é célula, ele desssacraliza a ação por expor um realismo vacilante, “meta” isso ou aquilo em que as camadas da personalidade do autor se interpõe com o universo do personagem. A variação da cena em si para uma abertura, em luz geral, por exemplo, não distingue o Dionísio Neto do palco ou aquele fora dele. A compensação de um lado a outro, a retroalimentação, são características possíveis de um teatro que se propõe novo, emergente.
Tendo Gerald Thomas e Antunes Filho como principais referencias, o jovem encenador, ao invés de sucumbir à angústia da influência, faz dela alvo. Sandra Babeto, como Carnavale, personagem mergulhada em parafuso com o ofício da atriz, ganha o palco com o insípedo e hetero de uma Bete Coelho. Não atinge a densidade da primeira-musa de Thomas – e nem seria o caso -, mas Sandra joga com desequilíbrio, com o não-gesto, o não-movimento. A fala é quase um resultado da ação.
Renata Jesion, a primeira-musa de Neto, por assim dizer, é talvez a melhor síntese do que o encenador concebe como nova interpretação. Stanislavsky, Grotowsky e outros métodos não são identificáveis, pelo menos na superfície, na criação, na personificação de Pasquale pela atriz.
Nem a escancaração dionística, nem a sombra da técnica. Renata consegue ser tão intensa e poética que mesmo o bumbum para fora, no gesto obsceno e transgressivo, não retira o encantamento. É o rito sem ornamento, o transe sem reza que ela consegue potencializar, despida de qualquer artifício, tão ela e tão Pasquale – é a melhor tradução, a melhor âncora do que brota da cabeça de Dionínio Neto.
Este, em cena, faz mais juz ao prenome. Seu Natale é visceral, se atira de peito aberto, sem escudo. Como o texto, o tom autobiográfico salta da boca do autor, passa pelo pensamento do autor e surge cristalizado na ousadia do diretor.
Uma mudança sesnsível de Curitiba para São Paulo foi o recolhimento que Dionísio Neto se auto-impôs – ao menos é o que se nota. A visibilidade que ganhou com pecha de vanguarda resultou em uma espécie de reversão do espaço.
Na pré-estréia de “Opus Profundum”, por exemplo, ele dava tanto a cara a tapa, se expunha de tal forma na boca de cena, que isso acabou soando como uma atitude gratuitamente agressiva. Parte do público que se retirou do teatro não fez necessariamente pela falsa hipocrisia, pela lascívia do beijo, mas supostamente também pela ostencividade.
Essas atenuantes foram percebidas na temporada do Sesc Pompéia. Se em Curitiba ou Unidade Móvel ficou em segundo plano, desta vez esteve paripasso.
O equilíbrio do caos sobre a música estridente, de microfone aberto; as interpertações desafiadoras; as imagens do vídeo como testemunhas oculares, in locu; a verborragia passional e desesperada por um alento; tudo isso tornou-se mais homogêneo no espetáculo instigante já pelo desprezo da linearidade.
Houve brecha até para atualizações. A brutalidade de policiais militares em Diadema é referendada por uma coreografia “do pelotão” do Unidade Móvel – silenciosa como luto. E o poço da existência é aprofundado ainda mais, com a criança que veio do morro para a cidade grande, está afins de vender um disquete encontrado na rua e quer vendê-lo em busca de trocados.
E Dionísio Neto atira para todos os lados: “Daqui a pouco estão encenando Olavo Bilac!”, assusta-se Carnavale, atriz e modelo frustrada em si. “Troca o texto; este texto é o fim”, continua, exercendo a autocrítica do autor. “O povo só lê o caderno da TV”, conclui. Quando a personagem diz “Morrerei jovem para conservar o cadáver”, sinaliza a obsessão do encenador pelo novo.
Mas “tudo pode ser mentira, balcla”, repara em seguida Pasquale, o fotógrafo que ganha a fama em cima de modelos que se julgam o máximo e torram grana com books.
Carnavale é o vértice da trama. Um fã enamorado perdido na solidão da metrópole; um Werther ou Tristão dos anos 90, respectivamente atrás da sua Charlote ou Isolda. Com a vantagem de que a tragédia não se abate e Carnavale faz seus os lábios da mulher desejada, num beijo de língua e lascívia que se estende por longos segundos, minutos na tela do cenário, ao final da peça, com o público suspenso em silêncio, incomodado, cúmplice engolido ele também pela cena. Dionísio Neto antropofágico até a medula.
1.6.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 01 de junho de 1997. Caderno A – 4
Evento tradicional Ibero-Americano, na Espanha, aperta orçamento para 12ª edição em outubro
VALMIR SANTOS
O Festival Ibero-Americano do Teatro de Cádiz, na Espanha, chega à sua 12ª edição com os cofres em baixa. Para se ter um idéia, a principal porta do teatro latino na Europa tinha, cinco anos atrás, um orçamento de US$ 2 milhões. Para a edição de outubro próximo – entre os dias 16 e 15 -, a organização conta apenas com US$ 350 mil. “O Festival de Cádiz é como a própria arte do teatro, que sempre dizem que está em crise”, raciocina o diretor artístico do evento, o espanhol Pepe Bablé. “Oxalá sempre esteja, porque a vida é crise”. Ele acompanhou o Festival de Teatro de Curitiba, em março, e conversou com O Diário.
Lançado e 1975, o Festival Ibero-Americano de Cádiz nutriu sua importância histórica abrigando os principais grupos da vanguarda de teatro latino. No final dos anos 70, início dos 80, havia uma acentuação política. O engajamento explícito tinha seu espaço de expressão contra os regimes autoritários em voga em muitos países.
“Era uma época áurea, de redescobrimento do teatro, e tínhamos muito apoio”, lembra o organizador. Essa perspectiva de palco militante foi diluída com a queda de todos os muros. A partir dos anos 90, a cidade turística de Cádiz bateu de frente com uma “agonia econômica” que se estende até os dias de hoje.
Se depender deste homem que carrega o teatro na veia – seus descendentes familiares fundaram a companhia de bonecos mais antigos do mundo, a espanhola La Tia Norica (1750), a qual ele segue dirigindo -, o festival vai dar a volta por cima.
“Não vamos jogar a toalha”, promete Bablé. Além da prefeitura de Cádiz, o festival tem apoio do Ministério da Cultura da Espanha, da Junta de Andaluzia e da universidade local, entre outros organismos.
Para a edição deste ano, a intenção é reunir grupos de seis ou sete países (no ano passado, foram nove). Do Brasil, está praticamente fechada a apresentação da peça “Deadly”, com o grupo No Ordinary Angels, encabeçado pelo ator Rodrigo Matheus e por uma atriz da Nova Zelândia. Foi dos espetáculos que Bablé mais admirou em Curitiba – cita também “Tristão e Isolda”, de Enrique Diaz e sua Cia. de Atores do Rio de Janeiro.
A programação inclui ainda o segundo Congresso Ibero-Americano do Teatro, com enfoque para o teatro pedagógico. Serão 12 dias de reflexão, “um escritório vivo e orgânico do teatro latino”, acredita Pepe Bablé. Todo ano, Cádiz realiza uma mostra temática sobre determinado país. A intenção é apresentar um leque cultural e artístico, com exposições, shows, peças, etc. No ano passado, a Colômbia foi contemplada. Neste, quem ganha destaque é o México. Ano que vem, o Brasil deverá ganhar a sua vez – pelo menos é a intenção de Bablé.
Uma característica muito importante do festival é a celebração do encontro entre os grupos. “A gente promove um contato de pele, de união, de troca sobre a arte da representação”, afirma o organizador. Comparado ao aparato empresarial de eventos como o de Curitiba, por exemplo, Cádiz é provavelmente o último dos festivais românticos. Não no sentido depreciativo d termo, caduco mas no que propõe como alicerces básicos; a pesquisa da linguagem cênica, idiomática, um diálogo com todo o continente.
Bablé quer ir mais longe. Sonha com a transcendência da concepção do teatro. Deseja uma “casa do teatro latino-americano”. É uma visão antropológica. “O homem nunca pôde abandonar sua terra; é preciso cultivar Cádiz pelo resto da América”, argumenta Cádiz. De fato, é a mais americanizada das cidades européias. A cidade possui 150 mil habitantes e 30km de praias.
Cabeça e, por extensão, coração do festival Bablé foi autor durante 21 anos. Agora, cuida da direção da La Tia Norica. No ano passado, ele montou “El Montaplatos”, Herold Pinter. Para o próximo, quer levar ao palco uma peça do dramaturgo francês do momento, Berrnad Koltès, que explora a violência urbana deste final de século.
Quando à mostra que conferiu em Curitiba, Bablé identifica um predomínio do papel do diretor. “Desaparece o ator e o público sai prejudicado, porque precisa de uma comunicação mais de pele, direta”, raciona. Para ele, o teatro tem poder de fogo para impactar e comover revelando que o mundo não está tão bem como a mídia anda pintando por aí. “O autor tem esta força da palavra e a gente precisa ir ao teatro escutar a palavra viva e não ser inválido pelas imagens, como acontece atualmente.”
Viotti dramatiza a arte do encontro
O dramaturgo Plínio Marcos comemorou seus 40 anos de teatro com uma conversa-espetáculo. Surgia como ele é, sem qualquer resquício de distanciamento (como maquiagem, figurino ou iluminação estilizada). Não havia personagem que não ele mesmo, em luz geral, texto improvisado. Agora o veterano Sérgio Viotti, 36 anos em cena, vai por um caminho semelhante, no qual o público pode perder um entretenimento convencional, mas ganha na saudável transferência da oralidade que o tempo humano se incumbiu de escantear aos poucos. E, outro detalhe, no mesmo palco da Cultura Artística.
Por mais que se queira acentuar a interpretação, a magia do vão público-espetacular, Sérgio Viotti é um personagem de si mesmo em “Humoresque”, espetáculo que tem um fundo autobiográfico encerra hoje a sua participação na atual temporada teatral paulistana.
Seu diretor, Dorival Carper, o deixa bastante à vontade. Paletó e gravata, em tom formal, um humor quase britânico – aliás, que tem um quê de Hitchcock que deixa um suspense no ar -, Viotti vai citando amigos como Sofia, Luci, Agenor, enfim, personagem das suas reminiscências que se tenta transmitir ao espectador.
Ainda esboça uma nuance de voz, uma expressão corporal, sutil – mas todos os tipos, sem a pretensão do humor rasgado, apresentam poucas variações. “Depois dos 50, sempre a gente acorda com uma coisa doente”, conta Viotti – narrador, com uma pitada de sarcasmo. A intenção é sempre pela via do humor.
Sérgio Viotti é homem de palco, de televisão. Usa toda sua versatilidade, apesar de alguns limites da idade. É um proseador que explora os recursos faciais e gestos pequenos, sempre circunscrito ao miolo do tablado. Ali, em pé ou sentado, ele comanda o bate-papo, relatando seus “causos”.
“Humoresque” celebra o encontro. Um artista veterano que soube lavar o ofício com amor e dedicação. Com coragem e disposição para superar muitas coisas e chegar à condição de criar seu próprio personagem, sem precisar de máscara. Talvez esteja aí o ápice para quem vive do (e para) o teatro.
Humoresque – Texto e interpretação: Sérgio Viotti. Direção: Dorival Carper. Última sessão hoje, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Vila Buarque, tel. 258-3616). R$ 20,00. 60 minutos.
Bill T. Jones globaliza os movimentos
Coreógrafo passou por São Paulo na semana e impactou com magia da sua dança universal
Os bailarinos da companhia atingem, durante a apresentação, uma universalidade de gestos e movimentos que não o identificam geograficamente. São bailarinos do mundo. A companhia do coreógrafo norte-americano Bill T. Jones dançou em São Paulo, na semana passada, e deixou seu recado de globalização da dança, capitalizando-a com moeda humana.
A estréia, numa noite tumultuada, marcada por atraso de uma hora, tinha tudo para atrapalhar. A tensão do público foi convertida em energia logo que abriram-se as cortinas do Teatro Sérgio Cardoso, por conta da atuação de Miguel Anaya e Christian Canciani em “Soon” (1988).
Síntese
Na coreografia seguinte, “After Black Room” (1996), a companhia Bill T. Jones/Arnie Zane parece sintetizar seu momento atual. Os corpos mergulhados em penumbras e cores desenham um vocabulário de muita introspecção. É um trabalho que exala a dor no que ela tem de pulsão de vida.
Bill T. Jones, soropositivo, que perdeu o companheiro Arnie Zane, vítima de Aids, sabe como ninguém do que está tratando. Toda a sua dança tem essa perspectiva de urgência, de finitude. O coreógrafo não tem tempo a perder e quer viver até o infinito.
Uma coreografia, “Lisbon” (1977), por conta dos percalços técnicos que impediram a afinação da luz, acabou sendo excluída da programação da primeira noite. O encerramento se deu com “Some Songs”, em que o grupo vai num crescendo, num jogo de luz e música, até provocar a catarse na comunhão com o público.
A essa altura, pouco mais de meia-noite, só restou aplaudir e ovacionar os rapazes e garotas de Bill T. Jones, tão próximos do Brasil quanto da África ou Estados Unidos, o berço deles. O coreógrafo subiu ao palco, juntou-se ao elenco e foi reverenciado de pé pelo público. É um gênio do movimento.
25.5.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 25 de maio de 1997. Capa
Aos 91 anos, Kazuo Ohno volta ao País, pela terceira vez, e emociona com a sua dança butô
VALMIR SANTOS
São Paulo – Ainda com as imagens daquele velhinho bailando no palco, o crítico sai de casa, na manhã seguinte à estréia, quarta-feira passada, de “Caminho no Céu, Caminho na Terra” (Tendoh, Chidoh). Subia uma ladeira, quando deparou com um belo quadro da natureza: um arco-íris çoberto parcialmente por nuvens cinzas. O vento anunciava chuva. Esse contraponto entre as cores primitivas e a escuridão de nimbos acabou revelando, no fundo, um cadinho de compreensão da dança de Kazuo Ohno. Nas trevas e na alma, ele arrebata com seu corpo magro, a pele manchada pela velhice. Aos 91 anos, em sua terceira visita ao Brasil, Ohno continua semeando a palavra e o gesto em prol da ligação umbilical do homem com o universo que o cerca. Por mais que se busque uma teoria, uma nesga de lógica, o que dança e pulsa no butô do mestre japonês é a vida no que ela tem de essência e sublime. O ser e estar como antena do cosmo.
“Caminho no Céu, Caminho na Terra” foi o primeiro dos dois espetáculos que ele dança na Temporada Sesc Outono 97. Acompanhado do filho, Yoshito Ohno, 58 anos, também estava programado para apresentar, ontem e hoje, “Ninféias” (Suiren). As duas coreografias são inspiradas em pintores.
A primeira remete às serigrafias de Shohaku Soga, artista japonês do século 18. A segunda tem como referência a série “Lírios D’Agua” do francês Claude Monet.
Em “Caminho no Céu, Caminho na Terra”, Yoshito Ohno surge na platéia, caminhando em direção ao palco, com um vestido florido, uma plumagem azul despontando na cabeça careca – uma peculiaridade sua.
Fica evidente a presença de Yoshito como um vetor entre os dois caminhos abertos por Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata, os dois mentores da dança surgida no pós-guerra. Yoshito equilibra o Dionísio e o Apolíneo em seu corpo. Seu silêncio gestual transcende a noção de tempo e espaço. Tem o vagar do pai, mas também a visceralidade do pai artístico, Hijikata.
Em seguida, Kazuo entra incorporando um personagem de uma das serigrafias de Shohaku Soga. Com cabelos esvoaçantes, espetados com varinhas de bambu, ele carrega uma vassoura de piaçava. A imagem é primitiva, como convém à perspectiva ancestral que o dançarino imprime em toda a sua obra, dialogando também com os mortos, além dos vivos.
Yoshito volta, agora todo de branco. As frestas do seu canal com o público não chegam às comportas de Kazuo Ohno. O filho dança com uma interiorização sutil, que mais hipnotiza o olhar do que propriamente comove.
Kazuo Ohno agora aparece todo de preto, paletó, calça e um chapéu com rosa vermelha na aba. Seus gestos não são expansivos como se verá logo depois, quando entra de vestido preto, também com chapéu, aludindo à sua personagem-mor, La Argentina. Foi em 1929 que o jovem Kazuo assistiu pela primeira vez à apresentação da bailarina argentina Antonia Marcé, La Argentina, que viveu na Espanha.
É aí, na comunhão do homem, da mulher, da criança e do velho, enfim, que o mestre conduz todos para uma emoção bruta, universal. Kazuo Ohno desconstrói um dos maiores mitos pop, Elvis Presley, dançando uma música romântica. Na hora do aplauso, ganha uma rosa de uma espectadora. Se prosta, se joga no chão, não cabe em si de agradecimento, de doação. Improvisa uma bis com a rosa na mão, trêmulo, vibrante com a troca de energia. E a vida, na síntese do butô, por um momento gira em torno daquela flor. A vida cabe ali como uma mágica.
11.5.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 11 de maio de 1997. Caderno A – 4
Marco Antônio Braz e seu grupo voltam a Nelson Rodrigues sem a inventividade de “Perdoa-me…”
VALMIR SANTOS
São Paulo – O diretor Marco Antônio Braz começou a dizer a que veio no ano passado, com “Perdoa-me Por Me Traíres”. A peça, montada à margem do circuito, num corredor espremido do Indac, na Capital, aos poucos caiu no boca a boca e ganhou uma temporada de sucesso no Centro Cultural São Paulo. Braz, um dos novos nomes da atual geração, e seu grupo Círculo de Comediantes, também jovens recém-formados, atravessam agora um momento inusitado para quem vive de teatro. Estão em cartaz com três espetáculos:
“Viúva Porém Honesta”, “Arturo Ui – Essa Onda Vai Te Pegar!” e “Antonio Mora Recebe Fernando Pessoa”, este um monólogo.
Inevitável a comparação. “Perdoa-me…” primou pela leitura assumidamente aberta do humor explícito de Nelson Rodrigues, na maioria das vezes relegado ao porão da pornografia. Braz chamou atenção pelo domínio do espaço cênico, horizontalizando a cena e dispondo público na sua lateral. Nada de novo, mas bem feito. Houve um trabalho acurado na preparação dos atores, com uma atuação marcante de Flávia Pucci no papel do tio neurótico apaixonado pela sobrinha sedutora.
Na nova visita a Nelson Rodlrigues, a sensação é de que o Círculo de Comediantes se encontra exatamente num circuito fechado. Ocupando o palco do Teatro Sesc Anchieta, mantém perspectiva de corredor em boa parte do espetáculo, ainda que diante de uma platéia convenc:ional, italianamente falando.
Quando os coros se deslocam alegoricamente, de uma ponta a outra, como que cuspidos pelo gelo seco, o espectador sabe que já viu aquilo em algum lugar, especificamente em “Perdoa-me…”. Foram tantas as montagens neste “boom” de Nelson Rodrigues que mesmo sua “farsa irresponsável em três atos”, na fórmula que Braz e o Círculo repetem, termina entrando num vácuo desalentador.
O diretor se preocupa tanto em solucionar o entra-e-sai nas laterais e centro, em “viajar no túnel do tempo com suas luzinhas, que termina pôr desprezar a potencialidade do elenco. A decepção maior em “Viúva Porém Honesta” é um certo ranço amador-chique que disponta no grupo em certas passagens, a começar pela protagonista, Joana Curvo, a viúva Ivonete. A atriz faz uma colegial bastante superficial. A transição entre a estudante ninfeta e a mulher epicentro da história não seduz. Joana abusa dos trejeitos infantis. Ivonete, a viúva, é muito mais que isso.
Em outro extremo, porém, está o Dr. Lambreta (Claiton Freitas), exemplo de como fazer uso da caricatura sem descaracterizar o personagem; ao contráno, fazê-lo crescer aos olhos do espectador.
Com a montagem mediana, resta contemplar o festival de frases-feitas que Nelson Rodrigues dispara em sua peça raivosa, escrita logo depois da péssima recepção de público e crítica a, justamente, “Perdoa-me…”. “Todas as mulheres sentam, porque não minha filha”, começa o pai da moça, Dr. J.B. (Maurício Marques, esgarçante o tempo todo), poderoso dono de jornal.
E a verve nelsonrodrigueana – não raro machista e preconceituosa -, concentra-se principalmente no trato com a crítica teatral. Criou um personagem-alvo, Dorothy Dalton, gay que é levado à condição de crítico da nova geração, atropelado por um carrinho de sorvete chiquea Bon. Freud, ou “Segismundo”, é espicaçado na pele de um psicanalista. A falsa hipocrisia da família, com seu “pudor bestial”, também não escapa.
Viúva Porém Honesta – De Nelson Rodrigues. Direção: Marco Antônio Braz. Com Círculo de Comediantes. Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Consolação, tel. 256-2281). R$ 15,00. Até 29 de junho.
“Arturo Ui” perde com seu tom “hiper-realista”
São Paulo – A terceira montagem em cartaz de Braz e do Círculo de Comedian tes é “Arturo Ui – Essa Onda Vai Te Pegar!” É a que dá um passo adiante em relação a “Perdoa- me Por Me Traíres”, marco da emergente trajetória do diretor e grupo. Volta o “corredor” desta vez no histórico Teatro Oficina, de Zé Celso e seu Uzyna Uzona. É ali que Braz e grupo parecem encontrar o seu ideal estético.
“Arturo Ui” busca a consagração do espaço, a veemência do Uzyna Uzona em “Ham-Let” ou “Bacantes”, por exemplo. A angústia da influência de Zé Celso em Braz fica na intenção. O discurso e a prática são outros quinhentos.
O anti-capitalista Brecht faz em seu texto original, “A Resistível Ascenção de Arturo Ui”, mais uma dura crítica ao regime, centrando fogo no embrião autoritário que culminaria com Hitler na Alemanha nazista. Uma máfia do Bronx, bairro norte-americano, corrompe simples plantadores de couve-flor, bem como os comerciantes e o cartel que estão por trás dele.
Tal relação inescrupulosa, uma máquina de moer seres humanos em troca do lucro, serviu de parâmetro para adaptação de Valderez Cardoso Gomes. Por assimilação, portanto, a montagem toca em CPI, nhenhenhén, PM de Diadema e por aí vai. Arturo Ui, o personagem principal, é um gangster nato, um Herodes ou Stálin dos tempos que correm. Movido por ambição desmessurada, domina de grandes comerciantes, como Totó Fidélis, “70 anos de honestidade”, até pobres quitandeiros, reproduzidos aqui como sem-terra.
A atualização-estilização inclui, ainda, a música-tema de Batman, um rap de Thaíde e DJ Hum ou uma abertura de antigo programa de um antigo programa de desenho infantil (“… do que caubói que dá cem tiros de uma vez”).
Estilização talvez não seja bem a palavra, mas o espetáculo, ao final, dá sensação de que denuncia a violência por denunciar. Retrata a realidade com muita intenção de fidelidade, a ponto de exibir trechos da ação de PMs em Diadema. Esse oportunismo instantâneo, de associação imediata com os acontecimentos, têm efeito contrário, tiram impacto.
O que vemos é reproduzido com tamanha riqueza de detalhes que uma arma na cabeça de uma sem-terra, indefesa, não vai além do óbvio; não acrescenta. Predomina essa “hiper-realidade” que apaga o épico brechtiano, mesmo nesta fábula, a favor de uma tradução urbana, aqui-agora à décima potência.
Ainda assim, em “Arturo Ui” vislumbra-se um diretor mais coerente, intérpretes mais entregues. Guilherme Kwasinski, por exemplo, no papel-título, parece buscar inspiração sobretudo na linguagem dos quadrinhos. Chega a ela de forma sutil, sem a fragmentação estanque e com a elegância de um Noel Rosa, por mais que a equação seja absurda.
A cena em que um ator, dentro da peça, ensina gestos e posturas “corretas” ao gangstermor, para melhor se posicionar em público e dominar as massas, acaba se revertendo numa homenagem ao teatro, evocando Shakespeare e seus fundamentais Júlio César e Titus Andronicus.
Na metalinguagem, o vídeo é avassalador. Uma das passagens é de uma brutalidade atroz: Num desses documentários mundo-cão, um homem tem seu braço arrancado à força, puxado por uma corda. O preço, aí, é alto para o teatro: a imagem prende mais atenção do que a personagem ensangüentada que cruza o palco.
Entre o horror e a sabujice política, o submundo do crime e os refestelados da alta sociedade, o Brecht de Braz, Círculo de Comediantes e adaptador demonstra potencial para encantar e espantar muito mais do que os meros 90 minutos em que se esforça para entreter e entreter – dado o acento musical.
E a “fábrica” Braz não pára. Em julho, o diretor estréia no Rio de Janeiro um novo Nelson Rodrigues, “Beijo no Asfalto”, com a excelente Flávia Pucci no elenco.
Arturo UI – Escola Onda Vai Te Pegar! – Adaptação de Valderez Cardoso Gomes para o texto de Bertolt Brecht. Direção: Marco Antônio Braz. Com Círculo de Comediantes. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 606-2818). R$ 10,00. Até 10 de junho.
Montagem sobre Pessoa é como uma piada mal contada
São Paulo – Fernando Pessoa (1888-1935) é um fenômeno. Os versos do poeta português e seus heterônimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos, os principais) continuam, nos dias de hoje, atraindo multidões. Encabeça, por exemplo, a lista dos livros de bolso mais vendidos recentemente, provando veio popular escondido nas entrelinhas do nacionalismo místico e do sebastianismo que povoam sua obra.
Para espantar ainda mais o desassossego, o diretor Marco Antônio Braz e o ator Maurício Marques escreveram um monólogo que “brinca”, como eles dizem, com o poeta.
De fato, “Antonio Mora Recebe Fernando Pessoa”, o texto, é direcionado para a comédia. Médium português quer “incorporar” o poeta, mas só consegue trazer à tona os seus heterônirnos. A história, em si, é engraçada mas a montagem carece de apelo. Como uma piada mal contada.Também no elenco de “Viúva Porém Honesta”, com o mesmo grupo Círculo de Comediantes, Márcio Marques não está à vontade em cena. Talvez seguindo concepção de Braz, cria uma dependência demasiaia da resposta do público. Antes espera do que oferece.
Essa relação ficou evidente na sessão para menos de dez pessoas. Com a platéia vazia, Marques se vê encurralado com seus personagens. A cabana do médiun (personificado pelo heterônimo Antonio Mora, o “filósofo” dentre os pessoanos), que deveria ser a “caixa mágica hermética”, não reflete nenhum encantamento. Ao contrário, serve simbolicamente de esconderijo.
Com uma interpretação contida – tipos que às vezes lembram espasmo do fantasma de Collor ou desses pastores televangélicos -, enfim, Marques não sustenta o vôo para fazer o público decolar.
Falta-lhe, quem sabe, um encontro efetivo com os papéis que vão se sucedendo no palco espaçoso.
Curiosamente, na cena final, em que se desloca da intenção cômica para aflorar o drama, na interpretação/declamação de um poema de Pessoa, uma ode à fé crista, Marques atinge essa relação de completude. Emociona, sim, mas já cruelmente tarde.
Antonio Mora Recebe Fernando Pessoa – De Marco Antônio Braz e Maurício Marques. Direção: Braz. Com Marques. Quinta a sábado, 18h30. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Consolação, tel. 256-2281). R$ 10,00. Até 28 de junho.
13.4.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 13 de abril de 1997. Caderno A – 4
Atores Luis Meio e Christiane Torioni compõem papéis tocantes na versão de Oscar Wilde
VALMIR SANTOS
Tua boca é mais
vermelha do que os pés dos
que machucam as uvas
nos lagares –
É mais vermelha do
que os pés dos pombos
que habitam os Templós
Tua boca é como
um ramo de coral trazido
do crepúsculo do mar,
é como a púrpura dos reis
Nada no mundo é tão
vermelho, como o
vermeho da tua boca
Deixe-me beijar a tua
boca, Iokanaan (Oscar Wilde)
|
|
São Paulo – Oscar Wilde faz da metáfora uma figura de linguagem marcante na sua “Salomé”. Lua, mulher, estrela — fenômenos naturais e humanos são citados no texto que tem como eixo a religião e a interferência do humano no destino. “Não se pode achar símbolo em tudo que se vê (…), fica um horror”, sentencia Herodes, o pai da princesa protagonista. A frase, dentro da peça, revela a nuvem de paralelos que termina por roubar muito da ação na montagem em cartaz no Teatro Faap até hoje – a partir da próxima sexta muda para o Arthur Rubinstein, no clube A Hebraica, também na Capital.
Diante das metáforas, resta a contemplação. O diretor José Possi Neto se sai bem na resolução da cena. Aprofunda o tom místico da história bíblica que vem através de séculos. A lenta movimentação dos atores, a indefinição de espaço e tempo (vagamente sugerido no figurino) compõem um quadro de tintas orientais.
Água e fogo são elementos evocados. O cénário de Felipe Crescenti traz um lago artificial e cordas que ascendem ao céu, permitindo a exploração dos planos superior e inferior.
A “Salomé” vertida por Wilde, no final do século passado, equilibra a exposição da filha protagonista e dedica atenção também ao pai, Herodes. Aqui, são interpretados por Christiane Torloni e Luis Melo. A parceria recente na televisão não depõe contra – o que se esperava em se tratando do talento de Melo e da presença marcante de Christiane.
Melo catalisa com seu Herodes, por vezes remetendo à fúria de um Macbeth ou de um camponês messiânico, como respectivamente em “Trono de Sangue” e “Vereda da Salvação”, ambas dirigidas por Antunes Filho.
Ele capta cada filigrama, desenha o personagem com profundidade; beira o transe aos olhos do público.
“Pode transformar água em vinho (…), mas não permito que ressuscite mortos”, pondera Herodes quando ouve o paradeiro de Cristo. É dos momentos em que o ator esbugalha a loucura.
Christiane Torloni abraça a sensualidade. Corresponde à beleza e perversão de Salomé, “filha de Sodoma, do adultério”, que pede a cabeça de lokanaan, ou São João Batista. Seduz o padastro com sua dança e, em contrapartida, exige a cabeça daquele que lhe recusou a boca. Iokanaan, papel de Tuca Andrada, é o profeta em oposição ao mal. Não sucumbe à princesa e, para tanto, paga com a vida.
Herodias, mãe de Salomé, surge na interpretação desconcertante de Cláudia Schapira. Depois da dobradinha com Lu Grimaldi em espetáculos como “Violeta Vita”, eia volta à cena encarnando uma verdadeira megera. Herodias abandona o marido, irmão de Herodes, para ficar com este. E alavanca da roda da fortuna que prega suas armadilhas. E sucumbe também.
Em pouco mais de uma hora, “Salomé” condensa o mito, impõe um ritmo cadente, mas consistente, e projeta bons atores para conduzir o público em uma viagem pontuada pelo conflito entre desejo e poder.
Salomé – De Oscar Wilde. Direção: José Possi Neto. Com Luis Melo, Christiane Torloni, Caco Ciocler, Luis Miranda, Lais Galvão, Augusto Vieira, Jorge Penha, Beto Sodré e outros. Última apresentação hoje, 19 horas. Teatro Faap (rua Augusta, 903, Higienópolis, tel. 824-0104). R$ 25,00. A partir da próxima sexta-feira (18), a montagem muda de endereço e passa a ser apresentada no Teatro Arthur Rubinstein/A Hebraica (rua Hungria, 1.000, Jardim Paulistano, tel. 818-8827). Preço e horário não divulgados. Duração: 75 minutos.
“Dama do Cerrado” não garante gargalhada
|
São Paulo – Brasilia já frequentou os palcos com mais humor e picardia. “Capital Estrangeiro”, com Edson Celulari, foi das últimas tentativas, cerca de dois anos atrás – pouco feliz diga-se de passagem. O alvo amainou em tempos de Real. Mas as moscas continuam lá. Quem agora volta à “lama”, ainda que com um pé no passado, é o espetáculo “A Dama do Cerrado”, mais um texto de Mauro Rasi, o mesmo do sucesso “Pérola”, da temporada passada. |
Rasi não atualiza, mas remete ao escroque político da “abertura”. ACM, Maluf, Roseana, Aecinho… Eles continuam na ativa. Verão de 85, véspera da posse de Tancredo Neves, eleito pelo Congresso Constituinte. As eleições diretas não vingam e o País consola-se com seu primeiro presidente civil depois do período militar.
Mas veio mais uma daquelas intervenções históricas, sabe-se lá se destino, que deixam todo mundo de boca aberta de quando em vez: a supreendente internação e, dias depois de tanta agonia, o anúncio da morte de Tancredo pelo porta-voz Antonio Britto.
É sobre este fundo sócio-político que o autor solta um humor que só não é mais rasgado por causa da contenção do texto e pela própria característica da dupla principal, Otávio Augusto e Suzana Vieira.
Não há uma tirada, uma frase de efeito cortante. “Inocente não sobrevive em Brasilia”, dispara em tom quase formal Leda Florim (Suzana) – socialite de meia-tigela que envolve-se com um deputado da corja para tirar, ela também, proveito próprio.
A atriz vai ao que parece ser seu limite na comédia, sem acrescer ao que o público já conhece da televisão. A perua Leda, comedida, desata a sua bancarrota para o cabeleireiro que não vê há duas décadas. É nessa retrospectiva que se tem notícia do jogo de bastidores, com fofocas pinçadas aqui e ali.
Quem serve de “parede”, mas vai muito além, é o cabeleireiro Fúlvio, na pele de Otávio Augusto. O “gueixa” (um trocadilho para gay?) surge com o quimono e vive entrando em viagens com maconha, cocaína, haxixe, LSD. Um figurino de cores berrantes, um cenário igualmente digno de filme de Almodóvar, de salão de beleza, uma iluminação espalhafatosa, enfim, ainda assim a piada está nos trejeitos de Otávio Augusto.
Ele consegue se utilizar do estereótipo sem exceder, com timining até para cenas abertas. Quando surge vestido em preto, sadomasoquista, já tem o público nas mãos.
Despretensiosa, “A Dama do Cerrado” dá conta do recado mas não assegura gargalhada deliberada, franca.
A Dama do Cerrado – De Mauro Rasi. Com Suzana Vieira, Otávio Augusto, Beatriz Lyra e Luciano Mallman. Quinta e sexta, 21h; sábado, 20h e 22h; domingo, 19h. Teatro Jardel Filho (avenida Brigadeiro Luís Antônio, 884, Bela Vista, tel. 605-8433). R$ 28 a R$ 32. 90 minutos.
Um Villela moderno e tradicional em ‘Ventania’
|
São Paulo – “Ventania” expõe um Gabriel Villela afeito a experimentar outros caminhos. A peça de autoria de Alcides Nogueira pincela a autobiografia do dramaturgo José Vicente e volta à casa noturna Tom Brasil para três sessões no próximo fim de semana. |
Oposição bem e mal, sol e lua; a dicotomia de Zé e Vicente, dois personagens fundidos em um só; enfim, flancos explorados em meio à linguagem pop da peça que remete aos anos 70. Assim, canções lúdicas dividem espaço com Elvis Presley, The Doors, George Michel.
Villela transita com tranquilidade entre a tradição e a modernidade. Não abre mão das luzinhas, do Cristo, da rusticidade do cenário, do seu teatro como ele é. Contudo, incorpora-se à atemporalidade musical sem soar datado. Não se trata de um “Hear” saudosista, por exemplo.
“A Vida é dia útil; a vida não é domingo”, propaga Vicente, tentando instigar Zé, o poeta, o sonhador. As palavras têm seu peso medido em “Ventania”.
A alma da mãe de Zé e Vicente, morta, trava um embate com sua mãe, avó dos rapazes, que também têm que lidar com a irmã Luiza.
Mas um dos problemas recorrentes de Villela está na direção de ator. Ela sucumbiu em “O Sonho”, por exemplo, com o elenco despreparado do Teatro Castro Alves, da Bahia. Em “Ventania”, os irmãos interpretados por Davi Taiu (Zé) e Eriberto Leão (Vicente) ficam aquém da loucura ou santidade.
Malu Valle, no papel da mãe morta; Sílvia Buarque, a irmã, e sobretudo Lorival Prudêncio, como avó, eles sim, dão conta da interpretação e sustentam a montagem – todos coadjuvantes.
Ventana – Mais três sessões: sexta (18), 22h; sábado, 22h; e domingo, 20h). Tom Brasil (rua olimpíadas, 66, Vila Olímpia, tel. 820-2326). R$ 15 a R$ 40.
13.4.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 13 de abril de 1997. Caderno A – 3
VALMIR SANTOS
Não foi uó. Elas deram o ar da graça para uma platéia seleta, sim, e empolgada, que atirou pérolas do mundinho para a passarela – tipo “É Tudo!”, “Abalou”, “Dá valor, meu bem!”, As “monas”, como elas se tratam, esquentaram a lanchonete Zero Grau na noite de quinta-feira. O I Concurso de Beleza Mogi Gay 97 confirma que, aos poucos, a cidade vai saindo do armário – já tem sex shop, pois não? A manifestação da sexualidade, ainda que em conta-gotas, ganha visibilidade muito além dos “personagens” temporões. É o movimento GLS, sigla para gays, lésbicas e simpatizantes. No capitalismo da lei do lucro sem preconceito, descobriram o filão da vez. “Viado”, expressão pejorativa fora de moda, é consumidor exigente e“está podendo”. Abaixou a onda clubber, que na entrada dos anos 90 debutou no Massivo, casa noturna dos Jardins, na Capital. Agora quem manda em tudo é o mercado. Ou melhor, o também fundamental Mercado Mundo Mix, guarda-chuva que abriga todas as tendências.
A mesma Mogi que boicotou preconceituosamente, cerca de dois anos atrás, a versão local do evento em César de Souza, iniciativa de Leandro Silva, da Laser Vídeo, desta vez foi mais receptiva. Claro que a estudantada que entupia a lanchonete evaporou ao toque de recolher das 22 horas. A resistência ainda é grande, mas os heróis, ou heroínas como as organizadoras Mary e Silvana de Andrade, “simpatizante” e “militantes”, estão aí para derrubar tijolinhos.
Quem não foi, perdeu oportunidade para rir à toa com a cicerone Silvete Montilla, 29 anos, 10 de noite. Auxiliar da Promotoria Pública de dia, ela se transforma com a chegada da lua para assumir sua veia artística.
Silvete é uma verdadeira comediante com domínio de palco-passarela de causar inveja em muitas que fazem das tripas coração para ganhar o público. Ela não. E escorregadia, maliciosa, de uma comicidade espontânea capaz de arrancar gargalhadas até dos mais sérios.
“Ê aííííí?! não cansa de repetir o grito de guerra do dicionário GLS – para perguntar como vai -, que ela jura ter batizado. São anos de shows em boates, de “bas fond”.
Atacada pelo “Exu Petinha”, desencana com o sorteio de uma passagem para “Paris.. .Cida do Norte”; admite que “nome de gay é uma floresta que sai da boca”, diante de tanto anglicismo das dondocas (Stephane, Kelly, Natash etc); dá uma colher de chá para o “patrocinador”, “Tubaína Pitu, aquela que você toma pela boca e sai… por aquela linha”; berado para a participação especial do evento em Mogi…
“Mas nada disso importa”, conclui a própria Silvete, perguntando se alguém da platéia “catou”. Divertir é o que há. Parecem deslocadas de tempo e espaço, como um sonho. Todas já foram miss isso, miss aquilo, como se coubessem no trono de rainha.
Mas afinal, a vida longe dos holofotes segue seu curso. Silvete, por exemplo, não se conforma com a desculpa de não ter camisinha na hora “h” – “usa papel Melita”, apela. Participou do “Alerta CaridAids”, que reuniu 15 mil em São Paulo, ano passado. “O gay tem emoção de rir e chorar como qualquer outro ser humano”, explica. Preconceito, como não bastasse a carga, continua sendo, para muitos, mera desinformação à beira do próximo milênio.
E histórias humanas, aliás, não faltam. Natasha Dushesi, 25 anos, uma das candidatas revela com naturalidade que sua primeira transa foi aos sete anos, com um primo. “Sempre acontece dentro da família”, aposta. O primeiro vestido, ela nunca esquece, usou aos 12 anos, para ir à escola. “A maioria dos gays só ri para não chorar”. Natasha diz cursar o primeiro ano de Moda numa faculdade do Rio de Janeiro. Confessa que só entrou porque “comprou” o diploma do segundo grau (“Como toda escola pública de lá, você precisa ter dinheiro”). É a vida sem maquiagem, como ela é.