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“Diario de Mogi"

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O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 03 de agosto de 1997.   Caderno A – 4


Gênero que viveu seu apogeu nos anos 20 e 30 no Brasil ganha livro de Neyde Venziano

VALMIR SANTOS

São Paulo – Uma passa­gem pelos títulos dos espetáculos apresentados nas décadas de 20 e 30 – – sua época de ouro no Brasil -,  dá o tom do que foi o Teatro de Re­vista entre nós: “Forrobodó, a Capital Federal”, “O Rei do Po­leiro”, “Olelê!… Olalá!…”, “Ta­tu Subiu no Pau”, “Pirão de A­reia”, “Bom Que Dói”’, “É da Pontinha”, “Dá no Couro”, “An­gu de Caroço”, “Abafa a Ban­ca”, “Em Ponto de Bala”, etc… Importado da França, ganhou urna roupa­gem que tra­duziu o espí­rit:o de um povo como poucas ex­pressões ar­tísticas o fizeram.

Muito do que se vê nos palcos con­temporâneos remete ao es­cracho, ao humor es­pontâneo, à alegria dos poucos diálo­gos (esque­tes) e de mu­itos números musicais que representa­ram o Teatro de Revista. Foi a “con­creta tradu­ção teatral” do País, defende a pes­quisadora Neyde Veneziano em “Não Adianta Chorar – – Teatro de Revista Brasileiro… Oba!”, livro recém-lançado pela edito­ra Unicamp.

Conhecida pela, sua atuação acadêmica e sobretudo pela di­reção teatral (“Alma­naque Brasil” foi um musical que emplacou em suas mãos), Neyde Veneziano especiali­zou-se no assunto. Seu acalentado estudo vai além do embasa­mento histórico. Co­mo escreve na sua in­trodução, a autora quer transcender os estereótipos da vede­te, da banana, da tropi­cália. Tudo bem, são dados concretos. Mas por trás das baianas, das músicas e dos ba­langandãs existe tam­bém o conceito cultu­ral.

“Que venha também a consciência de um teatro que contribui para a nossa for­mação cultural, que fixou nos­sos tipos, nossos costumes, nos­so modo genuíno de falar “à brasileira”, reivindica Veneziano. As 203 páginas ganham um tra­tamento que passa longe do me­ramente acadêmico (exceção feita à não tradução de trechos em francês ou italiano para o português, afunilando o acesso à uma compreensão efetiva). Claro, a autora não fez um texto “metarevista”, com o humor de antanho – e nem seria o caso. O livro é, sim, uma reforço histó­rico, uma acentuação de um gênero que geralmente é revisita­do equivocadamente com pecha de arte inferior. Ledo engano.

Numa época em que não e­xistia o rádio, tampouco a televi­são, era na platéia do teatro que o público ia conferir a retrospec­tiva dos acontecimentos do ano. Daí a re-vista… Imaginem as famosas retrospectivas globais de fim de ano levadas ao palco em números musicais ou esquetes (textos breves, diálogos curtos). As revistas de ano eram uma de­liciosa sátira ao País, principalmente aos políticos.

Nem burleta, nem cabaret, nem vaudeville, nem café-con­certo, nem music-hall, nem ope­reta, enfim, Neyde Veneziano toma o cuidado de distinguir as manifestações geralmente asso­ciadas à revista. A autora, então, a define assim: “Espetáculo li­geiro, misto de prosa e verso, música e dança, faz, por meio de inúmeros quadros, uma resenha, passando em revista fatos sem­pre inspirados na atualidade, uti­lizando jocosas caricaturas, com o objetivo de oferecer ao público uma alegre diversão”.

O livro estabelece ligações com a origem primitiva do teatro popular de cinco, seis séculos atrás – sua veia cômica, bufona, paródica , para o plataforma ao qual se lançou a revista. Enquanto gênero, segundo o livro, a re­vista nasceu no século 18, nas ru­as da França. Nas barracas das feiras, improvisavam-se históri­cas ou situações carnavalescas nas quais os protagonistas cria­vam com um olhar “ao avesso” em relação ao mundo.

Uma revista à brasileira ga nna corpo entre as décadas de 20 e 30. A Semana de Arte Moder­na, em 1922, a revista se mo­derniza com um melhor trata­mento cênico, com detalhes da iluminação ao desnudamento das pernas das moças no palco. Carlos Betten­court, Cardoso de Menezes, Marques Porto e Luiz Peixoto es­tão entre os me­lhores revistó­grafos da histó­ria do Brasil. O Rio de Janeiro, então capital fe­deral, reinou ab­soluto abrigando a maioria dos es­petáculós. Quanto aos in­térpretes, desta­caram-se Henri­queta Brieba, Alfredo Silva, Áracy Cortes, Pepa Ruiz e Edith Falcão.

Pouca gente sabe, mas a cantora Carmem Miranda ten­tou pegar carona no movimen­to teatral popular daquela épo­ca, mas chegou tarde. Numa das suas raras apresentações no Brasil, em 1930, com “Vai Dar que Falar”’, de Porto e Peixoto, ela foi vaiada porque era “ex­cessivamente realista” em ce­na. Depois de evoluir das rese­nhas anuais para uma posição assumidamente carnavalesca, não dava para ignorar a pers­pectiva popular.

São informações esclarece­doras como essas que a pesqui­sadora Neyde Veneziano expõe em “Não Adianta Chorar…”. Se exegese, sem saudosismo barato, contextualizando o leitor em relação à situação política em voga aliás, a revista consti­tuia caldeirão propício , o livro resulta num documento valioso para o Teatro Brasileiro. A breve iconografia e a relação dos prin­cipais espetáculos complemen­tam esta que pode ser considera­da uma incursão afetiva de Vene­ziano sobre tema apaixonante. Afinal, foi um tempo em que se ria com alusões políticas e soci­ais de fazer censor corar.

 

Não Adianta Chorar – Teatro de Revista Brasileiro…Oba! – De Neide Veneziano. Editora Unicamp (Cidade Universitária, Caixa Postal 6074, Campinas-SP, CEP 13083-970, tel. 19 788-2170). R$ 22,00.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 20 de julho de 1997.   Caderno A – 4


Nanini, Ary França e Betty Gofman se destacam na peça baseada na obra do dramaturgo

VALMIR SANTOS

São Paulo – A peça começa simbolicamente com a ‘‘crise do espetáculo”. Em cena aberta, Marco Nanini disponta da platéia en­carnando o seu Sr. Jordain, o “burguês ridículo” do título. Dai para frente, o que se tem é uma sincera homenagem ao teatro, à comédia especificamente, representada pela verve de Moliè­re. É o ator Molière, mais do que o dramaturgo francês do século 17, que dá o ar da graça em “O Burguês Ridículo”.

Guel Arraes e João Falcão, vindos de humorísticos da tele­visão, experimentam a arte da direção e, de quebra, respondem pela adaptação. Tomam como ponto de partida “Burguês Fidalgo” e acrescentam trechos de outras peças de Molière, como “As Sabichonas” e “As Preciosas Ridículas”. Tal cruzamento resulta em um texto que preser­va muito da comédia francesa da qual Molière é estrela-mor.

Claro, um texto originário de Molière não pode trair a crítica de fundo social e político. Não é à toa que o autor é levado aos palcos brasileiros com tanta fre­quência. Ri-se da hipocrisia familiar; ri-se da jogatina política; ri-se da escassez ética. Ri-se, em Molière, com um gostinho amar­go de realidade. Como se três sé­culos não houvessem passado.

Na direção, Arraes e Falcão depositam tudo no ator. Para tanto, têm um elenco afinado com a proposta cênica. Nanini encabeça com sua notável presença de palco, já conhecida de montagens anteriores. Aliás é uma surpresa agradável identi­ficar a coerência do trabalho deste ator. Cita-se a irresistível montagem de “O Mistério de Ir­ma Vap” ou a recente “Kean”. Nanini está sempre metido no teatro dentro do teatro. É uma condição que só a maturidade propicia aos grandes atores.

“O Burguês Ridículo” tem ainda a figura impagável de Ary França como Dorante. O sangüessuga fiel do Sr. Jordain é um dos melhores papéis da carreira deste comediante. Seja no drama “Édipo Rei”, sob o vôo dionisía­co de Renato Borghi, seja na di­vertida “O Doente Imaginário”, com Cacá Rosset, França domina plenamente as nuanças de cada personagem. Nele, o público sempre vai encontrar o esforço criativo, o empenho pela verdade interpretativa.

Outro destaque é a emprega­da Nicole de Betty Gofman. A a­triz coloca corpo e voz a favor da caricatural. Mas não o faz gratu­itamente. Ao contrário, vai no li­mite de ser ridícula na acepção pejorativa do termo. O trabalho de Betty e a relação entusiasmada do público com sua personagem confere um status merecido pa­ra ela que também se entrega com risco e competência.

É um grande espetáculo, com atuações marcantes. Uma noite com os comediantes do rei, com a cenografia majestosa e não-empolada de Fernando Mello da Costa, mais os figuri­nos clássicos e leves de Emília Duncan, enfim, uma noite com essa trupe resume-se a um en­contro com um teatro levado a sério em suas mínimas exigên­cias.

 

O Burguês Ridículo – Adaptação da obra de Molière. Direção e tradução: Guel Arraes. Tradução: José Almino. Com Bruno Garcia, Dora Pellegrino, Oberdan Junior, Virgínia Cavendish e outros. Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística/Sala Esther Mesquita (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel. 258-3616). R$ 25,00.

 

“As Sereias” mergulha no “telebesteirol”
 

Mas a atualização aponta para um ratamento interpretativo mais direcionado

São Paulo – Muito do espí­rito besteirol se perdeu nos últimos tempos. Não se tem mais aquela ingê­nua irreverência, o susto do im­proviso, a língua ferina. A des­pretensão lavada do seminal grupo Asdrúbal Trouxe o Tram­bone, na carona da abertura po­lítica do País, deu o tom do hu­mor nos palcos brasileiros no i­nício dos anos 80. Agora, resta o consolo televisivo de alguns resquícios em “Casseta & Pla­neta”, por exemplo.

O esforço é grande no teatro, mas parece que tanto a platéia quanto os atores estão sendo tolhidos pela imaginação catódica. Ou seja, o que se vê resvala mui­to na novela das sete. O que não chega a comprometer o entrete­nimento, diga-se de passagem. Atende à espectativa do público, ávido por uma deixa, por uma gag que lhe faça cócegas.

Quando ainda não sofria o bombardeio midiático ao qual se submete atualmente, Miguel Falabella chegou a dividir a cena com Guilherme Karam em “As Sereias da Zona Sul”. Era um texto que ele escreveu a quatro mãos com Vicente Pereira, o au­tor de “Solidão, a Comédia”. Adaptada agora, dez anos depois, para as duas ótimas atrizes Rosi Campos e Zezeh Barbosa, a pe­ça é sintomática da comédia destes anos 90.

Sim, há um pouco do Asdrúbal (Regina Casé, Luiz Fernan­do Guimarães). e de Dercy Gonçalves nas interpretações. Mas a atualização aponta para um tra­tamento interpretativo mais di­recionado.

Escolada em humor radical, Rosi Campos é uma “sereia” que não ousa avançar, se atirar ao mar do riso que captura pela es­sência. Nem no átimo de uma fa­lha, quando a sonoplastia não sintoniza com um gesto seu exa­gerado. Mesmo o pequeno escor­regão não a lança para a formidável contribuição dos erros em se tratanto do exercício de divertir.

Na adaptação do texto que a­gora dirige, Falabella investe no contraponto entre Rosi e Zezeh Barbosa. Esta é dona de uma a­tuação histriônica, popular – lembra uma Dercy, um Grande Othelo. Zezeh provoca empatia imediata. Ela se destacou no musical “O Mambembe”, uma incursão pouco convincente de Gabriel Villela pelo gênero. Fa­labella assistiu à montagem e a escalou para a sua novela “Salsa e Merengue”.

Dificilmente “As Sereias…” funcionaria com outra dupla. Rosi e Zezeh são perfeitas para as quatro esquetes. A melhor, disparada, é aquela na qual in­terpretam duas socialites em uma sauna. Descascam impro­périos contra a ralé, até que as personagens são “castigadas” no desfecho hiláno.

Hildinha ou Ivete, entre ou­tras, as mulheres de Rosi e Zezeh se esmeram na mesquinhez. Elas passam rímel no terceiro olho, resumem suas vidas numa edição de bolso e soltam pérolas como: “Sou uma mulher que só pensa quando está maqueada”. No ou­tro extremo, a peça visita a angústia existencial de uma poeta, que se sai com a espantosa frase-síntese do mundo contemporâ­neo: “A única porta secreta é a que nos separa de nós próprios”.

A dobradinha Falabella-Vi­cente Pereira resultou em diálo­gos ligeiros, como convém à co­média. Falabella trouxe o texto para o presente e contextuali­zou os papéis femininos, respei­tando o entretenimento. O críti­co não assistiu à versão mascu­lina de “As Sereias…”, mas sus­peita que ambas correspon­deram à qualidade cênica de sua época. Hoje, esse que pode ser chamado de “telebesteirol” é mais um dos frutos deste fi­nal de século acelerado. Feliz­mente, a compactação ainda não estancou de vez a arte do ator que Rosi e Zezeh sabem fa­zer valer em cena. Apesar de tudo.

 

As Sereias da Zona Sul – De Miguel Falabella e Vicente Pereira. Direção: Falabella. Com Rosi Campos e Zezeh Barbosa. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Hilton (rua Ipiranga, 265, Centro, tel. 259-5508). R$ 20,00 e R$ 25,00 (sábado). 80 minutos. Estacionamento gratuito na rua Epitácio Pessoa, 75.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 13 de julho de 1997.   Caderno A – 4


Espetáculo aborda a amizade de duas mulheres vividas por Irene Ravache e Jussara Freire

VALMIR SANTOS

São Paulo – Maria Adelai­de Amaral é a veia femi­nista da dramaturgia bra­sileira. Há 20 anos, a au­tora reflete em seus textos sobre a condição da mulher no mun­do: a família, o amor, o preconceito social… São muitos os ân­gulos. Em “Inseparáveis”, ela volta à carga com um dos espe­tábulos mais contundentes da carreira.

As personagens Maria Regi-na e Ana estão na faixa dos 40 anos e como que passam a lim­po a vida. O reencontro aconte­ce depois de anos sem se verem. Ao rememorar os primeiros mo­mentos daquela amizade, com certa nostalgia, elas acabam também encontrando o chão da realidade em que vivem.

Maria Regina está decidida a romper um casamento de 25 anos. Ana, já divorciada, vem de uma frustração amorosa com homem mais novo. É dessa gangorra paradoxal entre um passarinho nas mãos e muitos voando que se dá os conflitos e as intersecções. A autora de “In­separáveis” proporciona ao pú­blico um mergulho na alma das personagens tão comuns em seus anseios de felicidade, em suas misérias amorosas, em seus apegos à esperança.

“Eu nunca me apaixonei por ninguém, nem pelo meu mari­do”, garante Maria Regina. Nos últimos anos, o único prazer pa­ra ela, na hora do ato sexual, éespremer os cravos nas costas do marido insensível. “Você não imagina o quanto este País é implacável com as mulheres como a gente”, dispara Ana. Se uma moça de 25 anos é considerada “velha” para certas carreiras, o que dirá uma mulher de seus 40 anos. Maturidade e vivência são descartadas por uma regra per­versa de mercado.

Mas Maria Adelaide Amaral não se furta ao humor. Por mais que a temática seja dura — mas necessária -, a escritora respinga um senso cômico em suas per­sonagens. Para arrematar, intro­duz um homem na história. Gu­to, o marido abandonado por Maria Regina, acumula os cha­vões machistas, as chantagens de cama, o blablablá comum de quem não é capaz de perceber a infelicidade da companheira.

Casamento, solidão, orgasmo fingido, menopausa – um texto com tal abordagem existencial requer atrizes de peso. Irene Ra­vache (Maria Regina) e Jussara Freire (Ana) sustentam cerca de duas horas de espetáculo com uma harmonia espantosa. As du­as expõem suas personagens com conhecimento de causa. As nuanças das falas, o repertório gestual, a emoção em estado bru­to – enfim, trata-se de um casa­mento orgânico e introspectivo com Maria Regina e Ana.

O contraponto Guto também é encarnado com talento por E­duardo Conde. Sua imagem de canastrão é perfeita. Suas súpli­cas para ter a mulher de volta são impagáveis. Diz que vai “morrer de tristeza’’; recomenda tratamento contra “frigidez”. Quando se convence de que Ma­ria Regina não voltará atrás, então tira a máscara do ridículo e avisa que vai arranjar uma garo­ta novinha para desfilar por aí.

A direção de José Possi Neto aposta exatamente no potencial de Irene Ravache e Jussara Frei­re. É um texto que gira em torno da amizade e isso fica muito pa­tente em cena. A cenografia de Felippe Crescenti transcende a sala-de-estar, figurinha carim­bada nas montagens das peças da autora.

“Inseparáveis” mostra que a virada na vida independe da ida­de. Sob a premissa da felicida­de, da paz consigo, toda e qual­quer movimentação que se faça é sagrada. No texto e na inter­pretação, paira um sentido de -humanidade que se fixa na mu­lher pelo enfoque, mas no fundo não tem sexo.

 

Inseparáveis – De quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Faap (rua Alagoas, 903, Pacaembu, tel. 824-0104). R$ 20,00 e R$ 30,00 (sábados). 90 minutos. Até setembro.

 

“Filhas de Janete Clair” faz autocrítica
 

Homenageando a telenovela, a comédia traz dois atores no papel de comadres hilárias

São Paulo – Telenovela, essa paixão nacional, ganha uma bela homena­gem em “As Filhas de Janete Clair”. Trata-se de um pro­jeto antigo do ator Armando Fi­lho, noveleiro confesso que já contabilizou ter assistido a 271 tramas na televisão. Ele convi­dou Jandira de Souza para desenvolver a pesquisa e finalizar o texto. Em cena, estão o pró­prio Armando e Fausto Franco nos lpapéis de Corina e Delaide.

As personagens simples­mente acompanham novelas desde a primeira produção bra­sileira, “2-5499 Ocupado”, exibida pela extinta TV Excelsior, em 1963. Daquela história pro­tagonizada por Tarcísio Meira e Glória Menezes, 34 anos atrás, até os avançados anos 90, a peça conta a trajetória da amizade en­tre Corina e Delaide.

Elas fizeram das novelas das seis, das sete e das oito a história paralela de suas vidas. Muito se fala do poder encantatório dos folhetins eletrônicos e da imi­nente solidão que se esconde por trás do fenômeno. A monta­gem materializa essa constata­ção no palco, onde o público ri e se emociona com as peripécias daquelas cinqüentonas hilárias.

Os perfis são emblemáticos. Corina não tira Carlão da cabe­ça desde que assistiu à cena fi­nal de “Pecado Capital” (1976). O corpo estendido em plena o­bra do rnetrô carioca, coberto por jornais, e ainda por cima enlutado pela canção de Paulinho da Viola (“Dinheiro na mão é vendaval/É vendaval/Nas mãos ­de um sonhador…”) foi transposto da ficção para a realidade da personagem. Desde então, Corina não teve outro homem, ­amargando uma angústia infinita. Mesmo com o surgimento de ­outros heróis, de outros galãs, continua infeliz.

Delaide aparenta maior tato­ com a vida. Assimila modas e trejeitos que de tempos em tempos as novelas soltam. Experi­mentou o casamento, mas o marido morreu. Viúva, foi à luta, mas só teve decepções.

­“As Filhas de Janete Clair” é uma homenagem, sim, como se disse. Mas enseja também uma autocrítica. Não fosse a novela, a que Corina e Delaide poderiam se apegar? Quantas pessoas, Brasil afora, não se alimentam dos mesmos sonhos e padecem dos mesmos sofrimentos? Sonhos e sentimentos alheios, mas tão próximos, tamanha a identificação com os personagens.

De volta à montagem, o que se tem é uma verdadeira antologia televisiva no palco. Corina  e Delaide se encontram para assistirem juntas ao último capítulo de “Vale Tudo”. Como todo o Brasil, elas também querem sa­ ber quem matou Odete Roit-man, a céebre personagem de Beatriz Segall. É nessa noite que se desenrola a história da peça.

Elas têm brincadeiras próprias, voltadas para as novelas. A cada palavra-chave, simulam personagens globais, remetendo a cenas que acompanharam em outras épocas. São citados tipos como Nono Corrêa, Dona Xepa, Perpétua e Viúva Porcina. As falas, as imagens de artistas projetadas em slides e as cenas em que brincam de intérpretes, com direito a figurinos e caracterizações, enfim, tudo soma cerca de150 referências a novelas.

O bombardeio de informações se instala sem enfado. A história flui de forma que mesmo os não-noveleiros acompanhem seu ritmo. Não se descarta a ficção em nenhum momento. A “realidade” das novelas é ínserida sem prejuízo da magia teatral.

As atuações de Armando Filho e Fausto Franco são responsáveis em grande parte por isso. Em especial Armando. Sua Corina é lapidada no tom de voz, no tratamento delicado da emoção. Fausto, como o próprio papel pede, é mais expansivo, exagerado. Ambos têm sua graça e conquistam a empatia do público logo no início, quando surgem metidos em vestidos floridos.

Na direção, Eduardo Silva (atuando em “Os Reis do Im­proviso”), tomou cuidado em não caracterizá-los como travestis. O que se vê são duas mu­lheres em cena, com seus cacoetes, suas crisesinhas. Há também alguns números musicais, sob direção de Gustavo Kurlatm acentuando a leveza do espetáculo. A trilha sonora, assinada por Aline Meier, é um capítulo à parte, trazendo temas de novelas. Lembra-se de “Rock’n Roll, Lulaby”, interpretada por B.J. Thomas em “Selva de Pedra”? Está lá…

A cenografia de Marisa Re­bollo tipifica milhares de lares dos brasileiros. O sofá a poucos centímetros da televisão, a cozinha, os quadros de artistas nas paredes. O projeto de “As Filhas de Janete Clair” tem o mérito de tratar com inventividade um assunto tão enraizado no imaginário nacional. Não é à toa que na estréia, no final de semana passado, o espetáculo teve sessões extras, por causa da empatia do público. Uma montagem simples e com a força que só o teatro pode ema­nar.

As Filhas de Janete Clair – De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Brasileiro de ComédiaAssobradado (rua Major Diogo, 315, Bela Vista, tel. 604-5523 e 606-4408). R$ 10,00. 75 minutos. Até 31 de agosto.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

Uma relação delicada

1.6.1997  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Domingo, 01 de junho de 1997.   Capa


Paulo Autran está em “Para Sempre “, com sessão única amanhã no Teatro Municipal de Mogi

VALMIR SANTOS

Uma das grandes ex­pectativas quando da estréia de “Para Sempre”, no Festival de Teatro de Curitiba, em março, era quanto ao tema homossexual. Seria uma gay play, nos moldes de “O Me­lhor do Homem”, dirigida por Ulysses Cruz e atualmen­te em cartaz no Rio? A dire­tora Vivien Buckup define melhor o texto de Maria Ade­laide Amaral. “E uma relação homossexual, sim, mas a questão é a dimensão huma­na, as dificuldades, o como as pessoas se afastam”, afir­ma. A montagem tem única sessão amanhã, no Teatro Municipal de Mogi, e marca o reencontro do público mo­giano com um dos maiores a­tores do País – Paulo Autran apresentou o monólogo “Quadrante” em 1993, na rei­nauguração do Municipal.
 

O texto de Adelaide Ama­ral foi escrito especialmente para Autran. Mas quando ele leu, pensou um pouco antes de montá-lo. Até que aceitou. “Amor é amor, seja hetero ou não”, dispara Autran. Aos 75 anos, ele esbanja maturidade para encarnar um papel polé­mico. Está pouco preocupa­do com sua imagem, corro­borada sobretudo pela televisão. Veículo, aliás, por qual nutre um desprezo sem meio-tons.
 

Em “Para Sempre”, Max (Autran) é um professor de Teoria Literária, que está unido há 18 anos com Tony (Celso Frateschi). A peça se passa quando eles enfrentam conflitos mais latentes, que colocam em jogo o futuro da relação. “Max não é uma bi­cha, com estereótipos; é um homem que tem sensibilida­de e pensa muito”, explica o ator.
 

Na opinião de Autran, o viés da peça é justamente este: mostrar o homossexual com uma perspectiva huma­na, sem as tintas de aventura e promiscuidade difundidas principalmente pelo cinema. “Como se os casais heteros­sexuais também não fossem tão promíscuos quanto”, al­fineta.
 

Além da direção, função na qual debutou em “Agua­deira” e ganhou corpo em “Cenas de Um Casamento”, Vivien Buckup desenvolveu um trabalho especial de ex­pressão corporal. O Tony de Frateschi, por exemplo, surge sem afetação, apesar dos ges­tos delicados. Mas, no fundo, não deixa de expor sua virili­dade, tomando a decisão de romper a relação.
 

Karin Rodrigues, compa­nheira de outras montagens ao lado de Autran, interpreta Eva, o vértice do triângulo. Ela é amiga do casal e divide com eles suas torturas amoro­sas. Tem tanto carinho por Max, que acabe ficando com ele ao final (leia crítica abai­xo).

Ao lado do elenco estelar, estão profissionais renomados da cena teatral brasileira. Gringo Cardia assina a ceno­grafia; Fábio Namatame os figurinos; e Maneco Quinde­ré a iluminação.

 

Para Sempre – De Maria Adelaide Amaral. Direção: Vivien Buckup. Com Paulo Autran, Celso Frateschi e Karin Rodrigues. Única sessão amanhã, 21h. Teatro Municipal de Mogi (rua Dr. Corrêa, 515, tel. 460-1747). R$ 50,00. Disk ingresso: 470-9477.
 

 

Desfecho tira plenitude de “Para Sempre”
 

Casal homossexual se separa após 18 anos e um deles fica com outra mulher no final da história
Vindo de uma interpretação marcante em “Rei Lear”, um Shakespeare tão aguardado em sua carreira, era de esperar um Paulo Autran tão intenso quanto, sobretudo em se tratando de um texto assinado pela premiada Mana Adelaide Amaral. Nem uma coisa, nem outra. Há um senão em “Para Sempre” que resulta em uma decepção para o espectador atento. A autora junta duas pessoas do mesmo sexo, por 18 anos, e a separação culmina com uma delas nos braços de alguém do sexo oposto.
 

Max, o professor universitário pomposo e cheio de si, atravessa uma crise com seu companheiro, Tony, um bancário. A peça gira em torno das dificuldades de ambos em levar a relação adiante. Ficam cada vez mais paten tes as diferenças sociais, culturais. Tudo vai num crescendo coerente, cavucando as vicissitudes hu manas, como Adelaide Amaral sabe fazer tão bem – vide obras anteriores, co­mo “Tão Longe, Tão Per­to”, “Bodas de Papel” e“Intensa Magia”.
 

Mas um senão, enfim, desmonta todo o clima e a densidade que se construíu até ali, no desfecho. Depois de longos 18 anos, uma vida, Max simplesmente abandona Tony e começa uma nova relação, agora heterossexual, com a sua melhor amiga, Eva. E tudo – parece – acaba bem.
 

A mulher da peça é vivida por Karin Rodrigues, que emana a elegância e a correção da personagem, tão conflituosa quanto o casal homossexual. Ao mesmo tempo que acompanha in loco as desavenças entre Max e Tony, Eva encontra no casal, sobretudo em Max, é claro, um interlocutor para a sua eterna desilusão amorosa.
 

Paulo Autran vive bons momentos, como na cena em que fica prostrado diante do ser amado, em um jorro emo­cional, rasgado, expondo o desespero da perda amorosa. É preciso insistir: como pode, diante de dor arrebatadora, ainda assim sair-se com uma opção desconcertante para a história?
 

Celso Frateschi encontra o meio-termo do seu Tony, dis­pensando a afetação e assu­mindo, em alguns momentos, uma postura mais viril e ame­açadora em relação ao seu companheiro. Há pouco tem­po, Frateschi interpretou um monólogo marcante, “Do Amor de Dante por Beatriz”, no qual remetia ao sentimen­to de perda da mulher, a tam­bém atriz Edith Siqueira, morta no ano passado.
 

A direção de Vivien Buc­kup é tranqüila. Ela deixa os atores bastante à vontade. Fosse outro o final de “Para Sempre”, o drama se torna­ria mais pleno no que ele pretende impactar. Maria Adelaide Amaral se equivo­cou. Max, apesar da coura­ça, demonstra interiormente um desespero amoroso que não podia ser desprezado tão simplesmente, como o foi. 

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 01 de junho de 1997.   Caderno A – 3


VALMIR SANTOS

São Paulo – São tantas as perplexidades, as alegorias, as indagações em “Opus Profundum” que o crítico achou por bem adiar a abordagem da peça quando da apresentação no Festival de Teatro de Curitiba, em março. Na temporada paulistana, o embate finalmente se deu.
 

Dionísio Neto é um ensinador provocante. No texto, no palco ou atrás dele dispensa a aura do diretor – figura que roubou a cena durante os anos 80, começo dos 90, e agora vai sendo distituído do trono aos pouco. Invariavelmente vestindo a camiseta estampada com o jogo da banda Smashing Pumpkins, Neto valoriza a interpretação no que ela tem de essencial – a  palavra e o corpo, não necessariamente nesta ordem.
 

Aos 25 anos, umbilicado com o mundo das ruas, da urbanidade, da metrópole em que é célula, ele desssacraliza a ação por expor um realismo vacilante, “meta” isso ou aquilo em que as camadas da personalidade do autor se interpõe com o universo do personagem. A variação da cena em si para uma abertura, em luz geral, por exemplo, não distingue o Dionísio Neto do palco ou aquele fora dele. A compensação de um lado a outro, a retroalimentação, são características possíveis de um teatro que se propõe novo, emergente.
 

Tendo Gerald Thomas e Antunes Filho como principais referencias, o jovem encenador, ao invés de sucumbir à angústia da influência, faz dela alvo. Sandra Babeto, como Carnavale, personagem mergulhada em parafuso com o ofício da atriz, ganha o palco com o insípedo e hetero de uma Bete Coelho. Não atinge a densidade da primeira-musa de Thomas – e nem seria o caso -, mas Sandra joga com desequilíbrio, com o não-gesto, o não-movimento. A fala é quase um resultado da ação.
 

Renata Jesion, a primeira-musa de Neto, por assim dizer, é talvez a melhor síntese do que o encenador concebe como nova interpretação. Stanislavsky, Grotowsky e outros métodos não são identificáveis, pelo menos na superfície, na criação, na personificação de Pasquale pela atriz.
 

Nem a escancaração dionística, nem a sombra da técnica. Renata consegue ser tão intensa e poética que mesmo o bumbum para fora, no gesto obsceno e transgressivo, não retira o encantamento. É o rito sem ornamento, o transe sem reza que ela consegue potencializar, despida de qualquer artifício, tão ela e tão Pasquale – é a melhor tradução, a melhor âncora do que brota da cabeça de Dionínio Neto.
 

Este, em cena, faz mais juz ao prenome. Seu Natale é visceral, se atira de peito aberto, sem escudo. Como o texto, o tom autobiográfico salta da boca do autor, passa pelo pensamento do autor e surge cristalizado na ousadia do diretor.
 

Uma mudança sesnsível de Curitiba para São Paulo foi o recolhimento que Dionísio Neto se auto-impôs – ao menos é o que se nota. A visibilidade que ganhou com pecha de vanguarda resultou em uma espécie de reversão do espaço.
 

Na pré-estréia de “Opus Profundum”, por exemplo, ele dava tanto a cara a tapa, se expunha de tal forma na boca de cena, que isso acabou soando como uma atitude gratuitamente agressiva. Parte do público que se retirou do teatro não fez necessariamente pela falsa hipocrisia, pela lascívia do beijo, mas supostamente também pela ostencividade.
 

Essas atenuantes foram percebidas na temporada do Sesc Pompéia. Se em Curitiba ou Unidade Móvel ficou em segundo plano, desta vez esteve paripasso.
 

O equilíbrio do caos sobre a música estridente, de microfone aberto; as interpertações desafiadoras; as imagens do vídeo como testemunhas oculares, in locu; a verborragia passional e desesperada por um alento; tudo isso tornou-se mais homogêneo no espetáculo instigante já pelo desprezo da linearidade.
 

Houve brecha até para atualizações. A brutalidade de policiais militares em Diadema é referendada por uma coreografia “do pelotão” do Unidade Móvel – silenciosa como luto. E o poço da existência é aprofundado ainda mais, com a criança que veio do morro para a cidade grande, está afins de vender um disquete encontrado na rua e quer vendê-lo em busca de trocados.
 

E Dionísio Neto atira para todos os lados: “Daqui a pouco estão encenando Olavo Bilac!”, assusta-se Carnavale, atriz e modelo frustrada em si. “Troca o texto; este texto é o fim”, continua, exercendo a autocrítica do autor. “O povo só lê o caderno da TV”, conclui. Quando a personagem diz “Morrerei jovem para conservar o cadáver”, sinaliza a obsessão do encenador pelo novo.
 

Mas “tudo pode ser mentira, balcla”, repara em seguida Pasquale, o fotógrafo que ganha a fama em cima de modelos que se julgam o máximo e torram grana com books.
 

Carnavale é o vértice da trama. Um fã enamorado perdido na solidão da metrópole; um Werther ou Tristão dos anos 90, respectivamente atrás da sua Charlote ou Isolda. Com a vantagem de que a tragédia não se abate e Carnavale faz seus os lábios da mulher desejada, num beijo de língua e lascívia que se estende por longos segundos, minutos na tela do cenário, ao final da peça, com o público suspenso em silêncio, incomodado, cúmplice engolido ele também pela cena. Dionísio Neto antropofágico até a medula. 

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 01 de junho de 1997.   Caderno A – 4


Evento tradicional Ibero-Americano, na Espanha, aperta orçamento para 12ª edição em outubro

VALMIR SANTOS

O Festival Ibero-Americano do Teatro de Cádiz, na Espanha, chega à sua 12ª edição com os cofres em baixa. Para se ter um idéia, a principal porta do teatro latino na Europa tinha, cinco anos atrás, um orçamento de US$ 2 milhões. Para a edição de outubro próximo – entre os dias 16 e 15 -, a organização conta apenas com US$ 350 mil. “O Festival de Cádiz é como a própria arte do teatro, que sempre dizem que está em crise”, raciocina o diretor artístico do evento, o espanhol Pepe Bablé. “Oxalá sempre esteja, porque a vida é crise”. Ele acompanhou o Festival de Teatro de Curitiba, em março, e conversou com O Diário.

Lançado e 1975, o Festival Ibero-Americano de Cádiz nutriu sua importância histórica abrigando os principais grupos da vanguarda de teatro latino. No final dos anos 70, início dos 80, havia uma acentuação política. O engajamento explícito tinha seu espaço de expressão contra os regimes autoritários em voga em muitos países.

“Era uma época áurea, de redescobrimento do teatro, e tínhamos muito apoio”, lembra o organizador. Essa perspectiva de palco militante foi diluída com a queda de todos os muros. A partir dos anos 90, a cidade turística de Cádiz bateu de frente com uma “agonia econômica” que se estende até os dias de hoje.

Se depender deste homem que carrega o teatro na veia – seus descendentes familiares fundaram a companhia de bonecos mais antigos do mundo, a espanhola La Tia Norica (1750), a qual ele segue dirigindo -, o festival vai dar a volta por cima.

“Não vamos jogar a toalha”, promete Bablé. Além da prefeitura de Cádiz, o festival tem apoio do Ministério da Cultura da Espanha, da Junta de Andaluzia e da universidade local, entre outros organismos.

Para a edição deste ano, a intenção é reunir grupos de seis ou sete países (no ano passado, foram nove). Do Brasil, está praticamente fechada a apresentação da peça “Deadly”, com o grupo No Ordinary Angels, encabeçado pelo ator Rodrigo Matheus e por uma atriz da Nova Zelândia. Foi dos espetáculos que Bablé mais admirou em Curitiba – cita também “Tristão e Isolda”, de Enrique Diaz e sua Cia. de Atores do Rio de Janeiro.

A programação inclui ainda o segundo Congresso Ibero-Americano do Teatro, com enfoque para o teatro pedagógico. Serão 12 dias de reflexão, “um escritório vivo e orgânico do teatro latino”, acredita Pepe Bablé. Todo ano, Cádiz realiza uma mostra temática sobre determinado país. A intenção é apresentar um leque cultural e artístico, com exposições, shows, peças, etc. No ano passado, a Colômbia foi contemplada. Neste, quem ganha destaque é o México. Ano que vem, o Brasil deverá ganhar a sua vez – pelo menos é a intenção de Bablé.

Uma característica muito importante do festival é a celebração do encontro entre os grupos. “A gente promove um contato de pele, de união, de troca sobre a arte da representação”, afirma o organizador. Comparado ao aparato empresarial de eventos como o de Curitiba, por exemplo, Cádiz é provavelmente o último dos festivais românticos. Não no sentido depreciativo d termo, caduco mas no que propõe como alicerces básicos; a pesquisa da linguagem cênica, idiomática, um diálogo com todo o continente.

Bablé quer ir mais longe. Sonha com a transcendência da concepção do teatro. Deseja uma “casa do teatro latino-americano”. É uma visão antropológica. “O homem nunca pôde abandonar sua terra; é preciso cultivar Cádiz pelo resto da América”, argumenta Cádiz. De fato, é a mais americanizada das cidades européias. A cidade possui 150 mil habitantes e 30km de praias.

Cabeça e, por extensão, coração do festival Bablé foi autor durante 21 anos. Agora, cuida da direção da La Tia Norica. No ano passado, ele montou “El Montaplatos”, Herold Pinter. Para o próximo, quer levar ao palco uma peça do dramaturgo francês do momento, Berrnad Koltès, que explora a violência urbana deste final de século.

Quando à mostra que conferiu em Curitiba, Bablé identifica um predomínio do papel do diretor. “Desaparece o ator e o público sai prejudicado, porque precisa de uma comunicação mais de pele, direta”, raciona. Para ele, o teatro tem poder de fogo para impactar e comover revelando que o mundo não está tão bem como a mídia anda pintando por aí. “O autor tem esta força da palavra e a gente precisa ir ao teatro escutar a palavra viva e não ser inválido pelas imagens, como acontece atualmente.”

Viotti dramatiza a arte do encontro

O dramaturgo Plínio Marcos comemorou seus 40 anos de teatro com uma conversa-espetáculo. Surgia como ele é, sem qualquer resquício de distanciamento (como maquiagem, figurino ou iluminação estilizada). Não havia personagem que não ele mesmo, em luz geral, texto improvisado. Agora o veterano Sérgio Viotti, 36 anos em cena, vai por um caminho semelhante, no qual o público pode perder um entretenimento convencional, mas ganha na saudável transferência da oralidade que o tempo humano se incumbiu de escantear aos poucos. E, outro detalhe, no mesmo palco da Cultura Artística.

Por mais que se queira acentuar a interpretação, a magia do vão público-espetacular, Sérgio Viotti é um personagem de si mesmo em “Humoresque”, espetáculo que tem um fundo autobiográfico encerra hoje a sua participação na atual temporada teatral paulistana.

Seu diretor, Dorival Carper, o deixa bastante à vontade. Paletó e gravata, em tom formal, um humor quase britânico – aliás, que tem um quê de Hitchcock que deixa um suspense no ar -, Viotti vai citando amigos como Sofia, Luci, Agenor, enfim, personagem das suas reminiscências que se tenta transmitir ao espectador.

Ainda esboça uma nuance de voz, uma expressão corporal, sutil – mas todos os tipos, sem a pretensão do humor rasgado, apresentam poucas variações. “Depois dos 50, sempre a gente acorda com uma coisa doente”, conta Viotti – narrador, com uma pitada de sarcasmo. A intenção é sempre pela via do humor.

Sérgio Viotti é homem de palco, de televisão. Usa toda sua versatilidade, apesar de alguns limites da idade. É um proseador que explora os recursos faciais e gestos pequenos, sempre circunscrito ao miolo do tablado. Ali, em pé ou sentado, ele comanda o bate-papo, relatando seus “causos”.

“Humoresque” celebra o encontro. Um artista veterano que soube lavar o ofício com amor e dedicação. Com coragem e disposição para superar muitas coisas e chegar à condição de criar seu próprio personagem, sem precisar de máscara. Talvez esteja aí o ápice para quem vive do (e para) o teatro.

Humoresque – Texto e interpretação: Sérgio Viotti. Direção: Dorival Carper. Última sessão hoje, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Vila Buarque, tel. 258-3616). R$ 20,00. 60 minutos.
 

Bill T. Jones globaliza os movimentos
 

Coreógrafo passou por São Paulo na semana e impactou com magia da sua dança universal

Os bailarinos da companhia atingem, durante a apresentação, uma universalidade de gestos e movimentos que não o identificam geograficamente. São bailarinos do mundo. A companhia do coreógrafo norte-americano Bill T. Jones dançou em São Paulo, na semana passada, e deixou seu recado de globalização da dança, capitalizando-a com moeda humana.

A estréia, numa noite tumultuada, marcada por atraso de uma hora, tinha tudo para atrapalhar. A tensão do público foi convertida em energia logo que abriram-se as cortinas do Teatro  Sérgio Cardoso, por conta da atuação de Miguel Anaya e Christian Canciani em “Soon” (1988).

Síntese

Na coreografia seguinte, “After Black Room” (1996), a companhia Bill T. Jones/Arnie Zane parece sintetizar seu momento atual. Os corpos mergulhados em penumbras e cores desenham um vocabulário de muita introspecção. É um trabalho que exala a dor no que ela tem de pulsão de vida.

Bill T. Jones, soropositivo, que perdeu o companheiro Arnie Zane, vítima de Aids, sabe como ninguém do que está tratando. Toda a sua dança tem essa perspectiva de urgência, de finitude. O coreógrafo não tem tempo a perder e quer viver até o infinito.

Uma coreografia, “Lisbon” (1977), por conta dos percalços técnicos que impediram a afinação da luz, acabou sendo excluída da programação da primeira noite. O encerramento se deu com “Some Songs”, em que o grupo vai num crescendo, num jogo de luz e música, até provocar a catarse na comunhão com o público.

A essa altura, pouco mais de meia-noite, só restou aplaudir e ovacionar os rapazes e garotas de Bill T. Jones, tão próximos do Brasil quanto da África ou Estados Unidos, o berço deles. O coreógrafo subiu ao palco, juntou-se ao elenco e foi reverenciado de pé pelo público. É um gênio do movimento.


 

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

A vida cabe numa rosa

25.5.1997  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Domingo, 25 de maio de 1997.   Capa


Aos 91 anos, Kazuo Ohno volta ao País, pela terceira vez, e emociona com a sua dança butô

VALMIR SANTOS

São Paulo Ainda com as imagens daquele velhinho bailando no palco, o crítico sai de casa, na manhã seguinte à estréia, quarta-feira passada, de “Caminho no Céu, Caminho na Terra” (Tendoh, Chidoh). Subia uma ladeira, quando deparou com um belo quadro da natureza: um arco-íris çoberto parcialmente por nuvens cinzas. O vento anunciava chuva. Esse contraponto entre as cores primitivas e a escuridão de nimbos acabou revelando, no fundo, um cadinho de compreensão da dança de Kazuo Ohno. Nas trevas e na alma, ele arrebata com seu corpo magro, a pele manchada pela velhice. Aos 91 anos, em sua terceira visita ao Brasil, Ohno continua semeando a palavra e o gesto em prol da ligação umbilical do homem com o universo que o cerca. Por mais que se busque uma teoria, uma nesga de lógica, o que dança e pulsa no butô do mestre japonês é a vida no que ela tem de essência e su­blime. O ser e estar como antena do cosmo.
 

“Caminho no Céu, Caminho na Terra” foi o primeiro dos dois espetáculos que ele dança na Temporada Sesc Outono 97. Acompanhado do filho, Yoshito Ohno, 58 anos, também estava progra­mado para apresentar, ontem e hoje, “Ninféias” (Suiren). As duas coreografias são inspiradas em pintores.
 

A primeira remete às serigrafias de Shohaku Soga, artista japonês do século 18. A segunda tem como referência a série “Lírios D’Agua” do francês Claude Monet.

Em “Caminho no Céu, Caminho na Terra”, Yoshito Ohno surge na platéia, caminhando em direção ao palco, com um vestido florido, uma plumagem azul despontando na cabeça careca – uma peculiaridade sua.
 

Fica evidente a presença de Yoshito como um vetor entre os dois caminhos abertos por Kazuo Ohno e Tatsu­mi Hijikata, os dois mentores da dança surgida no pós-guerra. Yoshito equilibra o Dionísio e o Apolíneo em seu corpo. Seu silêncio gestual transcende a noção de tempo e espaço. Tem o vagar do pai,  mas também a visceralidade do pai artístico, Hijikata.
 

Em seguida, Kazuo entra incorporando um persona­gem de uma das serigrafias de Shohaku Soga. Com cabelos esvoaçantes, espetados com varinhas de bambu, ele carrega uma vassoura de piaçava. A imagem é primitiva, como convém à perspectiva ancestral que o dançarino im­prime em toda a sua obra, di­alogando também com os mortos, além dos vivos.
 

Yoshito volta, agora todo de branco. As frestas do seu canal com o público não che­gam às comportas de Kazuo Ohno. O filho dança com uma interiorização sutil, que mais hipnotiza o olhar do que propriamente comove.
 

Kazuo Ohno agora aparece todo de preto, paletó, calça e um chapéu com rosa vermelha na aba. Seus gestos não são ex­pansivos como se verá logo de­pois, quando entra de vestido preto, também com chapéu, a­ludindo à sua personagem-mor, La Argentina. Foi em 1929 que o jovem Kazuo assistiu pela primeira vez à apresentação da bailarina argentina Antonia Marcé, La Argentina, que vi­veu na Espanha.
 

É aí, na comunhão do ho­mem, da mulher, da criança e do velho, enfim, que o mes­tre conduz todos para uma e­moção bruta, universal. Ka­zuo Ohno desconstrói um dos maiores mitos pop, Elvis Presley, dançando uma músi­ca romântica. Na hora do a­plauso, ganha uma rosa de uma espectadora. Se prosta, se joga no chão, não cabe em si de agradecimento, de doa­ção. Improvisa uma bis com a rosa na mão, trêmulo, vi­brante com a troca de ener­gia. E a vida, na síntese do butô, por um momento gira em torno daquela flor. A vida cabe ali como uma mágica.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 11 de maio de 1997.   Caderno A – 4


Marco Antônio Braz e seu grupo voltam a Nelson Rodrigues sem a inventividade de “Perdoa-me…”

VALMIR SANTOS

São Paulo O diretor Marco Antônio Braz co­meçou a dizer a que veio no ano passado, com “Perdoa-me Por Me Traíres”. A peça, montada à margem do circuito, num corredor espremido do In­dac, na Capital, aos poucos caiu no boca a boca e ganhou uma temporada de sucesso no Centro Cultural São Paulo. Braz, um dos novos nomes da atual gera­ção, e seu grupo Círculo de Comediantes, também jovens re­cém-formados, atravessam ago­ra um momento inusitado para quem vive de teatro. Estão em cartaz com três espetáculos:

“Viúva Porém Honesta”, “Artu­ro Ui – Essa Onda Vai Te Pe­gar!” e “Antonio Mora Recebe Fernando Pessoa”, este um mo­nólogo.
 

Inevitável a comparação. “Perdoa-me…” primou pela lei­tura assumidamente aberta do humor explícito de Nelson Ro­drigues, na maioria das vezes relegado ao porão da pornogra­fia. Braz chamou atenção pelo domínio do espaço cênico, horizontalizando a cena e dispondo público na sua lateral. Nada de novo, mas bem feito. Houve um trabalho acurado na preparação dos atores, com uma atuação marcante de Flávia Pucci no pap­el do tio neurótico apaixonado pela sobrinha sedutora.
 

Na nova visita a Nelson Rodlrigues, a sensação é de que o Círculo de Comediantes se encontra exatamente num circuito fechado. Ocupando o palco do Teatro Sesc Anchieta, mantém perspectiva de corredor em boa parte do espetáculo, ainda que diante de uma platéia convenc:ional, italianamente falando.
 

Quando os coros se desloc­am alegoricamente, de uma ponta a outra, como que cuspi­dos pelo gelo seco, o espectador sabe que já viu aquilo em algum lugar, especificamente em “Per­doa-me…”. Foram tantas as montagens neste “boom” de Nelson Rodrigues que mesmo sua “farsa irresponsável em três atos”, na fórmula que Braz e o Círculo repetem, termina en­trando num vácuo desalentador.
 

O diretor se preocupa tanto em solucionar o entra-e-sai nas laterais e centro, em “viajar no túnel do tempo com suas luzi­nhas, que termina pôr despreza­r a potencialidade do elenco. A decepção maior em “Viúva Po­rém Honesta” é um certo ranço amador-chique que disponta no grupo em certas passagens, a começar pela protagonista, Joa­na Curvo, a viúva Ivonete. A a­triz faz uma colegial bastante superficial. A transição entre a estudante ninfeta e a mulher e­picentro da história não seduz. Joana abusa dos trejeitos infan­tis. Ivonete, a viúva, é muito mais que isso.
 

Em outro extremo, porém, está o Dr. Lambreta (Claiton Freitas), exemplo de como fazer uso da caricatura sem descarac­terizar o personagem; ao contrá­no, fazê-lo crescer aos olhos do espectador.
 

Com a montagem mediana, resta contemplar o festival de frases-feitas que Nelson Rodri­gues dispara em sua peça raivo­sa, escrita logo depois da péssi­ma recepção de público e crítica a, justamente, “Perdoa-me…”. “Todas as mulheres sentam, por­que não minha filha”, começa o pai da moça, Dr. J.B. (Maurício Marques, esgarçante o tempo todo), poderoso dono de jornal.
 

E a verve nelsonrodriguea­na – não raro machista e pre­conceituosa -, concentra-se principalmente no trato com a crítica teatral. Criou um perso­nagem-alvo, Dorothy Dalton, gay que é levado à condição de crítico da nova geração, atrope­lado por um carrinho de sorve­te chiquea Bon. Freud, ou “Se­gismundo”, é espicaçado na pele de um psicanalista. A falsa hipocrisia da família, com seu “pudor bestial”, também não escapa.

 

Viúva Porém Honesta – De Nelson Rodrigues. Direção: Marco Antônio Braz. Com Círculo de Comediantes. Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Consolação, tel. 256-2281). R$ 15,00. Até 29 de junho.
 

“Arturo Ui” perde com seu tom “hiper-realista”
São Paulo A terceira mon­tagem em cartaz de Braz e do Círculo de Comedian tes é “Arturo Ui – Essa Onda Vai Te Pegar!” É a que dá um passo adiante em relação a “Perdoa- me Por Me Traíres”, marco da e­mergente trajetória do diretor e grupo. Volta o “corredor” desta vez no histórico Teatro Oficina, de Zé Celso e seu Uzyna Uzona. É ali que Braz e grupo parecem encontrar o seu ideal estético.
 

“Arturo Ui” busca a consa­gração do espaço, a veemência do Uzyna Uzona em “Ham-Let” ou “Bacantes”, por exemplo. A angústia da influência de Zé Celso em Braz fica na intenção. O discurso e a prática são outros quinhentos.
 

O anti-capitalista Brecht faz em seu texto original, “A Resis­tível Ascenção de Arturo Ui”, mais uma dura crítica ao regi­me, centrando fogo no embrião autoritário que culminaria com Hitler na Alemanha nazista. Uma máfia do Bronx, bairro norte-americano, corrompe simples plantadores de couve-flor, bem como os comerciantes e o cartel que estão por trás dele.
 

Tal relação inescrupulosa, uma máquina de moer seres hu­manos em troca do lucro, serviu de parâmetro para adaptação de Valderez Cardoso Gomes. Por assimilação, portanto, a monta­gem toca em CPI, nhenhenhén, PM de Diadema e por aí vai. Ar­turo Ui, o personagem princi­pal, é um gangster nato, um He­rodes ou Stálin dos tempos que correm. Movido por ambição desmessurada, domina de gran­des comerciantes, como Totó Fidélis, “70 anos de honestida­de”, até pobres quitandeiros, re­produzidos aqui como sem-ter­ra.

A atualização-estilização in­clui, ainda, a música-tema de Batman, um rap de Thaíde e DJ Hum ou uma abertura de antigo programa de um antigo progra­ma de desenho infantil (“… do que caubói que dá cem tiros de uma vez”).
 

Estilização talvez não seja bem a palavra, mas o espetácu­lo, ao final, dá sensação de que denuncia a violência por denun­ciar. Retrata a realidade com muita intenção de fidelidade, a ponto de exibir trechos da ação de PMs em Diadema. Esse o­portunismo instantâneo, de as­sociação imediata com os acontecimentos, têm efeito contrá­rio, tiram impacto.
 

O que vemos é reproduzido com tamanha riqueza de deta­lhes que uma arma na cabeça de uma sem-terra, indefesa, não vai além do óbvio; não acres­centa. Predomina essa “hiper-realidade” que apaga o épico brechtiano, mesmo nesta fábula, a favor de uma tradução urbana, aqui-agora à décima potência.
 

Ainda assim, em “Arturo Ui” vislumbra-se um diretor mais coerente, intérpretes mais entregues. Guilherme Kwasinski, por exemplo, no papel-título, parece buscar inspiração sobretudo na linguagem dos quadrinhos. Chega a ela de forma sutil, sem a fragmentação estanque e com a elegância de um Noel Rosa, por mais que a equação seja ab­surda.
 

A cena em que um ator, den­tro da peça, ensina gestos e pos­turas “corretas” ao gangster­mor, para melhor se posicionar em público e dominar as mas­sas, acaba se revertendo numa homenagem ao teatro, evocando Shakespeare e seus fundamentais Júlio César e Titus Andronicus.
 

Na metalinguagem, o vídeo é avassalador. Uma das passagens é de uma brutalidade atroz: Num desses documentários mundo-cão, um homem tem seu braço arrancado à força, puxado por uma corda. O preço, aí, é al­to para o teatro: a imagem pren­de mais atenção do que a perso­nagem ensangüentada que cru­za o palco.
 

Entre o horror e a sabujice política, o submundo do crime e os refestelados da alta socieda­de, o Brecht de Braz, Círculo de Comediantes e adaptador de­monstra potencial para encantar e espantar muito mais do que os meros 90 minutos em que se es­força para entreter e entreter – dado o acento musical.
 

E a “fábrica” Braz não pára. Em julho, o diretor estréia no Rio de Janeiro um novo Nelson Rodrigues, “Beijo no Asfalto”, com a excelente Flávia Pucci no elenco. 
 

Arturo UI – Escola Onda Vai Te Pegar! – Adaptação de Valderez Cardoso Gomes para o texto de Bertolt Brecht. Direção: Marco Antônio Braz. Com Círculo de Comediantes. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 606-2818). R$ 10,00. Até 10 de junho.
 

Montagem sobre Pessoa é como uma piada mal contada

São Paulo – Fernando Pes­soa (1888-1935) é um fe­nômeno. Os versos do po­eta português e seus heterôni­mos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos, os principais) continuam, nos dias de hoje, atraindo multidões. En­cabeça, por exemplo, a lista dos livros de bolso mais vendidos recentemente, provando veio popular escondido nas entreli­nhas do nacionalismo místico e do sebastianismo que povoam sua obra.
 

Para espantar ainda mais o desassossego, o diretor Marco Antônio Braz e o ator Maurício Marques escreveram um monó­logo que “brinca”, como eles di­zem, com o poeta.
 

De fato, “Antonio Mora Re­cebe Fernando Pessoa”, o texto, é direcionado para a comédia. Médium português quer “incor­porar” o poeta, mas só consegue trazer à tona os seus heterôni­rnos. A história, em si, é engraçada mas a montagem carece de apelo. Como uma piada mal contada.Também no elenco de “Viúva Porém Honesta”, com o mesmo grupo Círculo de Comediantes, Márcio Marques não está à vontade em cena. Talvez seguindo concepção de Braz, cria uma dependência demasia­ia da resposta do público. Antes espera do que oferece.
 

Essa relação ficou evidente na sessão para menos de dez pessoas. Com a platéia vazia, Marques se vê encurralado com seus personagens. A cabana do médiun (personificado pelo heterônimo Antonio Mora, o “fi­lósofo” dentre os pessoanos), que deveria ser a “caixa mágica hermética”, não reflete nenhum encantamento. Ao contrário, serve simbolicamente de esconderijo.
 

Com uma interpretação con­tida – tipos que às vezes lem­bram espasmo do fantasma de Collor ou desses pastores tele­vangélicos -, enfim, Marques não sustenta o vôo para fazer o público decolar.

Falta-lhe, quem sabe, um en­contro efetivo com os papéis que vão se sucedendo no palco espaçoso.
 

Curiosamente, na cena final, em que se desloca da intenção cômica para aflorar o drama, na interpretação/declamação de um poema de Pessoa, uma ode à fé crista, Marques atinge essa relação de completude. Emoci­ona, sim, mas já cruelmente tar­de.
 

Antonio Mora Recebe Fernando Pessoa – De Marco Antônio Braz e Maurício Marques. Direção: Braz. Com Marques. Quinta a sábado, 18h30. Teatro Sesc Anchieta (rua Dr. Vila Nova, 245, Consolação, tel. 256-2281). R$ 10,00. Até 28 de junho.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 13 de abril de 1997.   Caderno A – 4


Atores Luis Meio e Christiane Torioni compõem papéis  tocantes na versão de Oscar Wilde

VALMIR SANTOS

Tua boca é mais

vermelha do que os pés dos

que machucam as uvas

nos lagares

É mais vermelha do

que os pés dos pombos

que habitam os Templós

Tua boca é como

um ramo de coral trazido

do crepúsculo do mar,

é como a púrpura dos reis

Nada no mundo é tão

vermelho, como o

vermeho da tua boca

Deixe-me beijar a tua

boca, Iokanaan (Oscar Wilde)

 

São Paulo – Oscar Wilde faz da metáfora uma fi­gura de linguagem mar­cante na sua “Salomé”. Lua, mulher, estrela — fenômenos na­turais e humanos são citados no texto que tem como eixo a reli­gião e a interferência do huma­no no destino. “Não se pode a­char símbolo em tudo que se vê (…), fica um horror”, sentencia Herodes, o pai da princesa pro­tagonista. A frase, dentro da pe­ça, revela a nuvem de paralelos que termina por roubar muito da ação na montagem em cartaz no Teatro Faap até hoje – a partir da próxima sexta muda para o Arthur Rubinstein, no clube A Hebraica, também na Capital.
 

Diante das metáforas, resta a contemplação. O diretor José Possi Neto se sai bem na resolu­ção da cena. Aprofunda o tom místico da história bíblica que vem através de séculos. A lenta movimentação dos atores, a in­definição de espaço e tempo (vagamente sugerido no figuri­no) compõem um quadro de tin­tas orientais.
 

Água e fogo são elementos evocados. O cénário de Felipe Crescenti traz um lago artificial e cordas que ascendem ao céu, permitindo a exploração dos planos superior e inferior.
 

A “Salomé” vertida por Wilde, no final do século pas­sado, equilibra a exposição da filha protagonista e dedica atenção também ao pai, Hero­des. Aqui, são interpretados por Christiane Torloni e Luis Melo. A parceria recente na te­levisão não depõe contra – o que se esperava em se tratando do talento de Melo e da presen­ça marcante de Christiane.
 

Melo catalisa com seu He­rodes, por vezes remetendo à fúria de um Macbeth ou de um camponês messiânico, como respectivamente em “Trono de Sangue” e “Vereda da Salva­ção”, ambas dirigidas por An­tunes Filho.
 

Ele capta cada filigrama, de­senha o personagem com pro­fundidade; beira o transe aos o­lhos do público.
 

“Pode transformar água em vinho (…), mas não permito que ressuscite mortos”, pondera He­rodes quando ouve o paradeiro de Cristo. É dos momentos em que o ator esbugalha a loucura.
 

Christiane Torloni abraça a sensualidade. Corresponde à beleza e perversão de Salomé, “filha de Sodoma, do adulté­rio”, que pede a cabeça de lo­kanaan, ou São João Batista. Seduz o padastro com sua dan­ça e, em contrapartida, exige a cabeça daquele que lhe recusou a boca. Iokanaan, papel de Tu­ca Andrada, é o profeta em oposição ao mal. Não sucumbe à princesa e, para tanto, paga com a vida.
 

Herodias, mãe de Salomé, surge na interpretação descon­certante de Cláudia Schapira. Depois da dobradinha com Lu Grimaldi em espetáculos como “Violeta Vita”, eia volta à cena encarnando uma verdadeira megera. Herodias abandona o marido, irmão de Herodes, pa­ra ficar com este. E alavanca da roda da fortuna que prega suas armadilhas. E sucumbe tam­bém.
 

Em pouco mais de uma hora, “Salomé” condensa o mito, im­põe um ritmo cadente, mas consistente, e projeta bons atores para conduzir o público em uma viagem pontuada pelo conflito entre desejo e poder.

 

Salomé – De Oscar Wilde. Direção: José Possi Neto. Com Luis Melo, Christiane Torloni, Caco Ciocler, Luis Miranda, Lais Galvão, Augusto Vieira, Jorge Penha, Beto Sodré e outros. Última apresentação hoje, 19 horas. Teatro Faap (rua Augusta, 903, Higienópolis, tel. 824-0104). R$ 25,00. A partir da próxima sexta-feira (18), a montagem muda de endereço e passa a ser apresentada no Teatro Arthur Rubinstein/A Hebraica (rua Hungria, 1.000, Jardim Paulistano, tel. 818-8827). Preço e horário não divulgados. Duração: 75 minutos.
 

“Dama do Cerrado” não garante gargalhada

São Paulo Brasilia já fre­quentou os palcos com mais humor e picardia. “Capital Estrangeiro”, com Ed­son Celulari, foi das últimas tentativas, cerca de dois anos atrás – pouco feliz diga-se de pas­sagem. O alvo amainou em tempos de Real. Mas as moscas continuam lá. Quem agora volta à “lama”, ainda que com um pé no passado, é o espetáculo “A Dama do Cerrado”, mais um texto de Mauro Rasi, o mesmo do sucesso “Pérola”, da tempo­rada passada.
 

Rasi não atualiza, mas reme­te ao escroque político da “a­bertura”. ACM, Maluf, Rosea­na, Aecinho… Eles continuam na ativa. Verão de 85, véspera da posse de Tancredo Neves, eleito pelo Congresso Constitu­inte. As eleições diretas não vingam e o País consola-se com seu primeiro presidente civil depois do período militar.
 

Mas veio mais uma daquelas intervenções históricas, sabe-se lá se destino, que deixam todo mundo de boca aberta de quan­do em vez: a supreendente in­ternação e, dias depois de tanta agonia, o anúncio da morte de Tancredo pelo porta-voz Anto­nio Britto.
 

É sobre este fundo sócio-po­lítico que o autor solta um hu­mor que só não é mais rasgado por causa da contenção do texto e pela própria característica da dupla principal, Otávio Augusto e Suzana Vieira.
 

Não há uma tirada, uma fra­se de efeito cortante. “Inocente não sobrevive em Brasilia”, dis­para em tom quase formal Leda Florim (Suzana) – socialite de meia-tigela que envolve-se com um deputado da corja para tirar, ela também, proveito próprio.

A atriz vai ao que parece ser seu limite na comédia, sem acrescer ao que o público já co­nhece da televisão. A perua Le­da, comedida, desata a sua ban­carrota para o cabeleireiro que não vê há duas décadas. É nessa retrospectiva que se tem notícia do jogo de bastidores, com fofo­cas pinçadas aqui e ali.
 

Quem serve de “parede”, mas vai muito além, é o cabelei­reiro Fúlvio, na pele de Otávio Augusto. O “gueixa” (um troca­dilho para gay?) surge com o quimono e vive entrando em vi­agens com maconha, cocaína, haxixe, LSD. Um figurino de cores berrantes, um cenário i­gualmente digno de filme de Al­modóvar, de salão de beleza, uma iluminação espalhafatosa, enfim, ainda assim a piada está nos trejeitos de Otávio Augusto.
 

Ele consegue se utilizar do estereótipo sem exceder, com timining até para cenas abertas. Quando surge vestido em preto, sadomasoquista, já tem o públi­co nas mãos.
 

Despretensiosa, “A Dama do Cerrado” dá conta do recado mas não assegura gargalhada deliberada, franca. 
 

A Dama do Cerrado – De Mauro Rasi. Com Suzana Vieira, Otávio Augusto, Beatriz Lyra e Luciano Mallman. Quinta e sexta, 21h; sábado, 20h e 22h; domingo, 19h. Teatro Jardel Filho (avenida Brigadeiro Luís Antônio, 884, Bela Vista, tel. 605-8433). R$ 28 a R$ 32. 90 minutos.


Um Villela moderno e tradicional em ‘Ventania’

São Paulo – “Ventania” ex­põe um Gabri­el Villela afeito a experimentar outros caminhos. A peça de autoria de Alci­des Nogueira pince­la a autobiografia do dramaturgo José Vicente e volta à casa noturna Tom Brasil para três ses­sões no próximo fim de semana.

Oposição bem e mal, sol e lua; a di­cotomia de Zé e Vi­cente, dois persona­gens fundidos em um só; enfim, flancos explorados em meio à lingua­gem pop da peça que remete aos anos 70. Assim, canções lúdicas dividem espaço com Elvis Pres­ley, The Doors, George Michel.
 

Villela transita com tranqui­lidade entre a tradição e a mo­dernidade. Não abre mão das luzinhas, do Cristo, da rusticidade do cenário, do seu teatro como ele é. Contudo, incorpora-se à a­temporalidade musical sem soar datado. Não se trata de um “Hear” saudosista, por exemplo.
 

“A Vida é dia útil; a vida não é domingo”, propaga Vicente, tentando instigar Zé, o poeta, o sonhador. As palavras têm seu peso medido em “Ventania”.
 

A alma da mãe de Zé e Vi­cente, morta, trava um embate com sua mãe, avó dos rapazes, que também têm que lidar com a irmã Luiza.
 

Mas um dos problemas re­correntes de Villela está na direção de ator. Ela sucumbiu em “O Sonho”, por exemplo, com o elenco despreparado do Teatro Castro Alves, da Bahia. Em “Ventania”, os irmãos interpre­tados por Davi Taiu (Zé) e Eri­berto Leão (Vicente) ficam aquém da loucura ou santidade.
 

Malu Valle, no papel da mãe morta; Sílvia Buarque, a irmã, e sobretudo Lorival Prudêncio, como avó, eles sim, dão conta da interpretação e sustentam a montagem – todos coadjuvan­tes. 
 

Ventana – Mais três sessões: sexta (18), 22h; sábado, 22h; e domingo, 20h). Tom Brasil (rua olimpíadas, 66, Vila Olímpia, tel. 820-2326). R$ 15 a R$ 40.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

O Diário de Mogi

O Diário de Mogi – Domingo, 13 de abril de 1997.   Caderno A – 3


VALMIR SANTOS

Não foi uó. Elas deram o ar da graça para uma platéia seleta, sim, e empolgada, que atirou pérolas do mundinho para a passarela – tipo “É Tudo!”, “Abalou”, “Dá valor, meu bem!”, As “monas”, como elas se tratam, esquentaram a lanchonete Zero Grau na noite de quinta-feira. O I Concurso de Beleza Mogi Gay 97 confirma que, aos poucos, a cidade vai saindo do armário – já tem sex shop, pois não? A manifestação da sexualidade, ainda que em conta-gotas, ganha visibilidade muito além dos “personagens” temporões. É o movimento GLS, sigla para gays, lésbicas e simpatizantes. No capitalismo da lei do lucro sem preconceito, descobriram o filão da vez. “Viado”, expressão pejorativa fora de moda, é consumidor exigente e“está podendo”. Abaixou a onda clubber, que na entrada dos anos 90 debutou no Massivo, casa noturna dos Jardins, na Capital. Agora quem manda em tudo é o mercado. Ou melhor, o também fundamental Mercado Mundo Mix, guarda-chuva que abriga todas as tendências.
 

A mesma Mogi que boicotou preconceituosamente, cerca de dois anos atrás, a versão local do evento em César de Souza, iniciativa de Leandro Silva, da Laser Vídeo, desta vez foi mais receptiva. Claro que a estudantada que entupia a lanchonete evaporou ao toque de recolher das 22 horas. A resistência ainda é grande, mas os heróis, ou heroínas como as organizadoras Mary e Silvana de Andrade, “simpatizante” e “militantes”, estão aí para derrubar tijolinhos.
 

Quem não foi, perdeu oportunidade para rir à toa com a cicerone Silvete Montilla, 29 anos, 10 de noite. Auxiliar da Promotoria Pública de dia, ela se transforma com a chegada da lua para assumir sua veia artística.
 

Silvete é uma verdadeira comediante com domínio de palco-passarela de causar inveja em muitas que fazem das tripas coração para ganhar o público. Ela não. E escorregadia, maliciosa, de uma comicidade espontânea capaz de arrancar gargalhadas até dos mais sérios.
 

“Ê aííííí?! não cansa de repetir o grito de guerra do dicionário GLS – para perguntar como vai -, que ela jura ter batizado. São anos de shows em boates, de “bas fond”.
 

Atacada pelo “Exu Petinha”, desencana com o sorteio de uma passagem para “Paris.. .Cida do Norte”; admite que “nome de gay é uma floresta que sai da boca”, diante de tanto anglicismo das dondocas (Stephane, Kelly, Natash etc); dá uma colher de chá para o “patrocinador”, “Tubaína Pitu, aquela que você toma pela boca e sai… por aquela linha”; berado para a participação especial do evento em Mogi…
 

“Mas nada disso importa”, conclui a própria Silvete, perguntando se alguém da platéia “catou”. Divertir é o que há. Parecem deslocadas de tempo e espaço, como um sonho. Todas já foram miss isso, miss aquilo, como se coubessem no trono de rainha.
 

Mas afinal, a vida longe dos holofotes segue seu curso. Silvete, por exemplo, não se conforma com a desculpa de não ter camisinha na hora “h” – “usa papel Melita”, apela. Participou do “Alerta CaridAids”, que reuniu 15 mil em São Paulo, ano passado. “O gay tem emoção de rir e chorar como qualquer outro ser humano”, explica. Preconceito, como não bastasse a carga, continua sendo, para muitos, mera desinformação à beira do próximo milênio.
 

E histórias humanas, aliás, não faltam. Natasha Dushesi, 25 anos, uma das candidatas revela com naturalidade que sua primeira transa foi aos sete anos, com um primo. “Sempre acontece dentro da família”, aposta. O primeiro vestido, ela nunca esquece, usou aos 12 anos, para ir à escola. “A maioria dos gays só ri para não chorar”. Natasha diz cursar o primeiro ano de Moda numa faculdade do Rio de Janeiro. Confessa que só entrou porque “comprou” o diploma do segundo grau (“Como toda escola pública de lá, você precisa ter dinheiro”). É a vida sem maquiagem, como ela é.

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.