15.3.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 15 de março de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo O “laboratório”, como é definido no meio teatral o período em que o ator sai à cata de conteúdos internos e externos para compor seu personagem, não raras vezes proporciona bons momentos no palco. Nesse exercício de decantação, é imperativo sondar os confins da alma, peregrinar por caminhos d’antes não percorridos, trazer à superfície da consciência – ou não – a emoção em seu estado bruto. Considerando a interpretação de Diogo Vilela em “Diário de Um Louco”, sua viagem pessoal foi de uma riqueza tremenda. Única, intransferível, trata-se de uma dádiva dos deuses do teatro, reservada àqueles jque se atiram sem rede na fase de pré-montagem.
Na pesquisa sobre o personagem do conto do escritor russo Nikolai Gogol (1809-1952), Vilela foi visitar manicômios. Sentiu na pele a lida de seres humanos com a irrealidade cotidiana. Numa entrevista recente, a psiquiatra Nise da Silveira, fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, se questionava: “Quem sabe o que acontece no imenso mar do inconsciente? Quem dizer que sabe, este sim é louco”. Pois Vilela chegou bem perto na busca da insanidade e do carisma de Popritchitchine um funcionário público do século passado, angustiado numa repartição kafkiana.
Em suas anotações, o sujeito, vai relatando as mazelas do seu chefe, que goza do poder. Popritchtchine queria ser um general, um governador, um intendente, quem sabe. Mas não. Está ali, metido na “fauna de burocráticos fétidos”, como ele define os coleguinhas de repartição.
Não bastasse a submissão social, o personagem amarga um amor platônico pela filha do chefe. O sentimento é tão desconcertante que o leva a estabelecer uma relação afetuosa com o cachorrinho da moça. Sem título de nobreza, sem dinheiro, só lhe resta o diálogo imaginário com o cachorrinho para quem declara seu amor incondicional por Sofia.
A solidão com o papel, no qual “deita sua pena”, culmina com sua elevação a rei da espanha. A despeito da autoproclamação, em que sobe na mesa do escritório e encara os demais como seus súditos, Popritchitchine é encaminhado para um manicômio. Aos poucos, o grau de esquizofrenia é proporcional ao seu estado de consciência.
Preso à camisa-de-força, aquele mero empregado, ainda assim, traduz a surra nas costas, com pauladas, como se fosse ação de um inquisidor. Nem a crua dor de um bastão o demove da liberdade imaginária.
Diogo Vilela perpassa a via crúcis de Popritchitchine expondo a leveza e agudeza com que a loucura dota os visionários. Cita-se Van Gogh ou Artaud, por exemplo. Aliás, paira em “Diário de um Louco” o espectro do monólogo histórico de Rubens Corrêa, já falecido, para o francês que deu à luz o “teatro da crueldade”. Não se comparam, mas se ligam pelo tema.
Entre a dor da impossibilidade humana diante de algumas forças da vida, e a dor do grito infinito da alma, Vilela não sucumbe ao drama total. Há brechas para o humor e ele aproveita muito bem esses momentos. Como nas confissões entre o personagem e o “sr.” cachorrinho.
Mas o Gogol que surge aqui não é o mesmo da comédia política (pós-revoluçãO russa) “O Inspetor Geral” (1936), sua obra-prima, escrita quatro anos antes de “Diário de Um Louco”. Este é um texto perturbador. E um espetáculo tanto quanto.
Adornado pela coroa de garfos, uma referência ao artista plástico Arthur Bispo do Rosário, outro que transcendeu à loucura, Diogo Vilela constrói gestos e movimentos dissociados de seus trabalhos anteriores – notadamente “Solidão, a Comédia”.
Seu suporte está no olhar, no corpo que ocupa o espaço cênico dilatando a sua expressão. Parece olhar a loucura nos olhos. Neste monólogo, compete a ele, ator, dar conta também dos desenhos físico e orgânico projetados pelo texto. “Enxergamos” o cachorrinho ao seu lado, sim, quando ele fica de quatro e estabelece uma “conversa” de igual para igual. O cenário subjetivo e extemporâneo de Beli Araújo também não faz sugestão ao escritório, estimulando o leque imaginário.
O diretor Marcus Alvisi não dilui a dureza do drama e tampouco o florea. Como Diogo Vilela é um ator com forte apelo cômico, a montagem não desprezou esse quinhão. Entre as concessões, de um lado e de outro, o resultado é um monólogo que consegue dar seu recado poético, sem o cerco literário.
No silêncio introspectivo da platéia, magnetizada pela presença de Vilela/Popritchitchine, conduzida ainda por uma trilha musical fabulosa (Tchaikovsky, Bruck), enfim, a cena compartilha também se reveste de um pouco da experiência que o ator viveu antes de chegar ao seu personagem. Em pouco mais de uma hora, somos atingidos pelos devaneios daquele funcionário que ousou ir além numa sociedade de parasitas. É atordoante.
Diário de um Louco – De Nikolai Gogol. Tradução: Luis de Lima. Dramaturg: Robert de Cleto. Direção: Marcus Alvisi. Com Diogo Vilela. Figurinos: Kalma Martinho. Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Teatro Cultura Artística (rua Nestor Pestana, 196, Centro, tel.258-3616). R$ 25,00 e R$ 30,00 (sábado). Duração: 70 minutos.