22.2.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 22 de fevereiro de 1998. Caderno A – 4
VALMIR SANTOS
São Paulo – Ele era do tipo que tinha um nó na garganta quando via um cenário sendo desmanchado, ao final de cada temporada. O diretor paulista Ademar Guerra (1933-1993) inscreveu seu nome na história do teatro brasileiro com paixão incomum.
Montagens como “Marat/Sade” (1967) e o musical “Hair” (1969) marcaram pela disciplina ferrenha e despretenção estética. O ator era alicerce de tudo e a ele Guerra devotava sua arte. O perfil instrospectivo, pouco chegado aos holofotes, o deixou como que à margem da geração seminal de diretores brasileiros, como Antunes, Boal, Zé Celso, Abujamra, Haddad etc. Quando o incenso é muito, o santo desconfia – bem que a máxima caberia nos 59 anos vividos por Guerra.
O livro “Ademar Guerra: O Teatro de Um Homem Só”, do jornalista Oswaldo Mendes (Editora Senac), descortina toda a trajetória do diretor – desde a atuação como assistente de Antunes Filho, nos anos 50, até o seu último espetáculo, “O Vampiro e a Polaquinha”, que estreou em 1992, um ano antes de sua morte. E vem preencher, também, uma lacuna para as novas gerações, carentes de informações sobre o passado do teatro no País.
Não se trata propriamente de uma biografia. Quando muito, toca na forte ligação com a mãe. Mendes, amigo e parceiro em muitos trabalhos de Guerra, resgata a memória do diretor através de depoimentos colhidos do próprio e dos inúmeros profissionais que conviveram com ele. Mendes ousa colocar o texto na primeira pessoa, demonstrando o grau de intimidade com o encenador, resultando numa narrativa póstuma. Essa ressuscitação, por assim dizer, recupera oralidade coloquial de Guerra e o aproxima ainda mais do presente.
Entre suas montagens históricas, estão os musicais “Oh! Que Delícia de Guerra” (1966) e “Hair”, dois textos estrangeiros que lhe valeram patrulhamento à época, acusado de alienação política. Na opinião de Guerra, o bom texto era aquele que embutia um olhar universal. Capaz, por exemplo, de catalisar a atenção do público brasileiro para a guerra do Vietnã (caso de “Hair”), independente da contextualização. Ele provou essa espécie de globalização de problemas e virtudes humanas muito antes de “Angels in America”, de Tony Kushner, nestes anos 90.
O formato editorial de “O Teatro de Um Homem Só” é curioso. Nas páginas ímpares, Mendes segue contando a luta de Guerra para levar suas idéias adiante; as frustrações com alguns colegas; enfim, a projeção afetiva com a qual o diretor ficou conhecido na classe teatral. Já nas páginas pares, o livro reproduz depoimentos não menos passionais, de críticos, jornalistas e amigos de Guerra (Décio de Almeida Prado, Alberto Guzik, Jefferson del Rios, Bárbara Heliodora, Márika Gidali, Maria Bonomi, Aracy Balabanian, Renata Pallotini etc).
É importante lembrar que Ademar Guerra trascendeu às fronteiras do teatro e também flertou com a dança e a música. Respondeu pelo roteiro de algumas coreografias do grupo Stagium, como “Quebradas do Mundaréu” (1975) – adaptação de “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos – e “Paulistânias” (1994). Assinou ainda a direção de um dos shows mais importantes da carreira de Elis Regi-na, “Saudade do Brasil” (1980). Aliás, no final do livro, ele se encontra coma cantora no céu, concessão um tanto permissiva de Mendes.
Didático sem ser enfadonho, “O Teatro de Um Homem Só” é um livro de memória fresca que, não fosse por ele, o livro, estaria mofando úa cuca de muitos que compartilharam da presença cativante de Guerra. Explorando, sem medo, a veia afetiva do “biografado”, dando voz a pessoas não menos especiais, ilustrando boa parte dos espetáculos dirigidos por Guerra, enfim, Mendes deu seu recado com um belo projeto.
Ademar Guerra – O Teatro de um Homem Só – De Oswaldo Mendes. Editora Senac (rua Dr. Vila Nova, 228, 4º andar, Consolação, tel. 236-2135). Preço médio: R$ 28,00.