1.10.1993 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – outubro de 1993. Caderno A
VALMIR SANTOS
“Ham-Let” é uma orgia. Tudo é festa, catarse dionisíaca, subversão da estética cênica em favor de um ator em estado bruto e, portanto, mais espontâneo naquilo que ele e seu corpo realmente comunicam. Tudo é surpresa, ritual. Desde a entrada no galpão da rua Jaceguai, na Capital, até depois de mais de cinco horas de espetáculo, há sempre o impacto.
A concentração de expectativas na noite de estréia, anteontem, tornou o clima mais mágico – ou melhor, místico. José Celso Martinez Corrêa, homem que pelejou pela reabertura do Teatro Oficina, faz 34 anos, estava visivelmente emocionado. Estado que, aliás, tomou conta do elenco e do público esfuziante.
Comandando a sua Companhia de Teatro Comum Uzyna Uzona, Zé Celso consegue trazer à tona a essência do trabalho do grupo Oficina, cujas montagens de “Rei da Vela” (67), de Oswaldo e Andrade, e “Roda Viva” (68), de Chico Buarque, foram cruciais para a história do teatro brasileiro.
O ator de Zé Celso é tal qual o próprio: se deixa levar por uma espécie de “santo” que baixa no palco. Em “Ham-Let”, várias são as cenas em que personagens berram e correm em disparada. Essa sensação de porra-louquice, uma entrega às cegas, é interessante até certo ponto; depois, causa estranhamento e incomoda porque sua sistemática fica, sem novidades.
Mas essa é a cara do Oficina. Os impulsos do ator merecem respeito e são incorporados a cada momento. É como que um improviso combinado. Se um introduz uma fala nova e sarcástica, o outro ri sem descaracterizar a situação. Na sexta-feira, uma mulher que estava sozinha e havia bebericado além da conta, cruzava o palco a todo instante. Marcelo Drummond (Príncipe Hamlet) não a ignorou. E a sempre segura, Denise Assunção, não fez por menos: jogou a mulher dentro da pequena queda d’água do cenário. E o estorvo assentou o facho.
Dividida em três longos atos, a história de Willian Shakespeare ganhou requintes nacionais. É explícita e velada a referência aos podres poderes políticos que regem o Brasil da fome e das chacinas. E há também o pau costumeiro de Zé Celso dirigido aos homens públicos que tratam a cultura a pão e água.
Marcelo Drummond, Pascoal da Conceição (com sete personagens) e Denise Assunção (Rozecrantz e outros dois papéis hilários) são os destaques da Uzyna Uzona. É impressionante como mantêm, sobretudo Pascoal e Denise, um pique uniforme do início ao fim do espetáculo.
A iluminação de Cibele Forjaz se equilibra com muita competência entre sombras, semiblecautes e gerais – há momentos em que o personagem em cena é acompanhado somente pelo foco de uma lanterna, onde o público vê ator e operador, o que proporciona uma metalinguagem interativa. A música de Péricles Cavalcante e José Miguel Wisnik, executadas ao vivo por músicos excelentes, têm influência capital em “Ham-Let”. O ritmo é o pulso da peça.
O cenário de Hélio Eichbauer e Alexandre Lopes se adequam ao espaço físico do Oficina, incluindo um jardim, o teto móvel, que permite ver a noite lá fora, e as folhagens que espelha pelo corredor-palco. Num primeiro instante, o Oficina é estranho. Não há propriamente um palco. O público se posta nas laterais, em galerias de dois andares. Depois, tudo é inter-ação. Em momentos em que a relação público – ator é tão próxima (personagens trombam na platéia, roubam alguns lugares em determinada cena, duelam com as espadas à beira do nariz do espectador) que vem à mente o teatro hard do grupo catalão La Furia Del Baus, quando esteve no Brasil.
Enfim, pelo tanto que se esperou para a reabertura – que somente será completada em novembro – e pela vontade do diretor, ator e agitador Zé Celso em levar um espetáculo que se sintonizasse com o Brasil aqui-agora. “Ham-Let” é uma montagem inusitada que, apesar de restabelecer o estilo Oficina de atuação, surge paradoxalmente como um divisor de águas no cenário nacional – o que se vê é muito diferente das montagens apresentadas nos últimos anos em todo o País.
Ham-Let – De William Shakespeare. Adaptação de José Celso Martinez Corrêa, Marcelo Drummond e do jornalista da Folha de S. Paulo, Nelson de Sá. Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Oficina (rua Jaceguai, 520, Bela Vista, São Paulo, tel. 259-8405). Cr$ 900 (sexta e sábado) e Cr$ 700 (domingo). Estreou sexta-feira.