31.5.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 31 de maio de 1998. Caderno A – 4
“Boemia e Política” narra trajetória do ator, escritor, cantor e compositor
VALMIR SANTOS
São Paulo – Talvez seja um tanto difícil, para as novas gerações, imaginar o manancial memorialístíco que está por trás daquele senhor de cabelos grisalhos, aparência frágil, em plena forma nas novelas da Globo. Mário Lago comporta o epíteto de artista total. Aos 87 anos, o co-autor do samba “Ai, Que Saudades da Amélia” ganha uma biografia que, pelo intertítulo – “Boemia e Política” – dá conta da transcendência poética e humana com a qual o ator, escritor, cantor e compositor vem pautando a vida.
A historiadora Mônica Velloso fez um trabalho de fôlego para reconstituir a trajetória do artista. Além de um total de 15 horas de entrevistas, nas quais Lago falou à vontade, deixando fluir as reminiscências, a autora escarafunchou o Centro de Documentação da Funarte, o Museu da Imagem e do Som (MIS), a TV Globo, o Arquivo da Rádio Nacional e a Biblioteca Nacional. Sem contar a colaboração fundamental dos filhos. Foram pinçados episódios e fotos inéditas que vêm a público.
Ainda garotinho, Lago já tomava aulas de piano com Lúcia Villa-Lobos, mulher do célebre compositor. Ainda que um tanto arredio à música clássica naquela época, ele, como bom carioca da gema, já tendia para enveredar pelas vielas do morro da Lapa. O jovem consumiu ali a sua tendência para a boemia. Naqueles românticos anos 20 (finalzinho) e 30, despontou como um bamba.Meteu-se no meio da plebe, por assim dizer. Frequentou ruas, cafés, cabarés. Bebeu da fonte popular, contrariando os pais que batiam pé sobre as errâncias daquele moço.
Em 1942, uma parceria com Ataulfo Alves rendeu “Ai, Que Saudades da Amélia”. No início, a música não encontrava intérpretes. Moreira da Silva chegou a desdenhar: pre viu que se tratava mais de uma marcha fúnebre do que carnavalesca. Ledo Engano. Ataulfo gravou ele mesmo, acompanhado de Jacó do Bandolim e grupo Academia do Samba. “Amélia” explodiu e tornou-se um dos marcos da nossa música popular. Ao ponto do “Aurélio” citá-la como verbete: “Mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem”.
Só mais de uma década depois Lago revelou que a Amélia da música existia de verdade. Era a empregada de Aracy de Almeida e seu irmão, Almeidinha. “Com essa explicação, desiludi milhares de Amélias que se julgavam homenageadas. Mas, em compensação, ganhei tranquilidade doméstica. Minha esposa até hoje era cismada com essa tal de Amélia…”, conta.
O ingresso na rádio aconteceu pelas mãos de Oduvaldo Vianna, que gostou da voz de Lago em um espetáculo teatral e o convidou para trabalhar na Pan Americana. O artista não só assimilou os macetes do novo veículo, chegando a comandar programas de auditório em sua fase de ouro, como teve em Vianna, dos mais importantes dramaturgos do país à época, uma escola e tanto para o teatro. Já vinha de escrever revistas desde 1993, mas dali em diante passou a esmerar-se nos diálogos.
Depois de 17 anos de rádio – a última em que deu expediente foi na Nacional -, Mário Lago mergulha de vez na televisão. Desde 1954 fazia uma coisa aqui, outra ali. Mas o lance decisivo foi sua entrada na Globo, em 1966, na novela “Sheik de Agadir”. Um dos seus melhores momentos, lembra, foi em “O Casarão” (1976), na qual interpretava Atílio. Foram, ao todo, cerca de 50 novelas – atualmente ele pode ser visto na minissérie “Hilda Furacão”. O personagem? Olavo, claro, um boêmio enamorado da protagonista.
Mas Lago nunca foi muito condescendente com o veículo-mor das massas. “A TV é fascista. Ela não dá o direito de sonhar, de construir os seus sonhos. A TV apresenta um galã e diz: o galã é esse! Você não tem o direito de imaginar que seja outro. O jardim não é outro, senão este. É uma postura fascista da TV, ela tira a ilusão do sonho, da criatividade e da imaginação”, declarou em 1978, à revista “Status”. Como se vê, nada mudou.
Lago sempre se distinguiu do ramerrão de artistas globais que parecem viver em outro país. Jamais abandonou a militância política; fez jus à coerência ideológica. Foi ligado ao Partido Comunista do Brasil (PCB) durante 50 anos. Experimentou sua primeira prisão em 1932. Para se ter uma idéia do envolvimento, um comício serviu de palco para o primeiro encontro com Zeli, a mulher com quem viria a se casar depois, mãe dos seus cinco filhos.
O período mais brabo se deu a partir do golpe de 64, quando foi detido várias vezes, perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Lago era do tipo que botava ordem, sim, nas quatro paredes do cárcere: delegava tarefas, pedia para os amigos ministrarem cursos de acordo com a especialidade de cada um. Enfim, transformava o xadrez em local de entretenimento social e humano, por mais duro que fosse. Nos anos 80 e 90, Lago participou de campanhas do Partido dos Trabalhadores (PT), demonstrando sua simpatia com a candidatura de Lula.
Cinema também foi praia frequentada por Lago. Atuou em filmes como “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha, e “São Bernardo” (1973), de Leon Hirszman.
Enfim, vai-se falar de Mário Lago em tudo quanto é manifestação cênica, radiofônica ou visual. Ele continua rodando o País com seu show intimista, onde relata “causos” e canta suas composições diletas.
Em recente entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, declarou que o melhor conselho para os jovens é viver tudo que tem para ser vivido. Pense menos e vá à luta, realize- foi mais ou menos a mensagem com a qual Lago fechou o programa.
Lendo “Boemia e Política”, compreende-se a extensão da sua filosofia de boêmio, ideólogo e artista. Lago aprendeu cedo que não vale a pena dissociar o prazer do curso da vida já um tanto dolorida, da concepção ao crepúsculo.
Mônica lança mão da linguagem acadêmica e deixa vir à tona o coloquial, inserindo falas do biografado a todo instante, como a trazê-lo para o primeiro plano no “diálogo” com o leitor. A pesquisa é detalhada e está longe do enfado. Ressalta-se o “álbum” de fotografias, dividido em fases. Temos, por fim,. um homem que vive há 87 anos e não perdeu o sorriso maroto. (Valmir Santos)
Mário Lago – Boemia e Política – De Mônica Velloso. Editora Fundação Getúlio Vargas (avenida 9 de julho, 2.029, tel. 281-7875). 402 páginas. R$ 29,00.