18.1.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 18 de janeiro de 1998. Caderno A – 4
“Vida e Arte” traz memórias da atriz que debutou aos 47 anos e completa 87 em fevereiro
VALMIR SANTOS
São Paulo – Você – permita-me dispensar o tratamento de senhora – descortina o passado com a maturidade que só o tempo vivido em sua plenitude pode dotar os seres humanos especiais. Embarcar na leitura de “Vida e Arte – Memórias de Lélia Abramo” é compartilhar contigo, ao pé do ouvido, o curso de urna vida pautada pela formação humanista, pela luta política e pelo ofício de atriz exercido nos palcos, na televisão no cinema.
Um casamento assim, em que a transcendência artística e a preocupação com o próximo se harmonizam, só pôde ser conquistado graças à coerência e perseverança da sua alma. Nascida no berço dos Abramos, você foi apresentada à literatura, ao teatro, às artes, enfim, por obra dos pais, dona Yole e seu Vicente, eixos de uma família de imigrantes italianos, que chegaram ao Brasil em 1892.
Quinta da fieira de sete irmãos, você também manteve com eles uma relação de ternura, de laços de cumplicidade que derrubavam distâncias continentais. Ângela Maria, a Nenê, foi a meia-irmã e, claro, não menos querida que os demais, pois filha do primeiro casamento do seu pai, que ficou viúvo e conheceu sua mãe.
Lívio, o primogênito, acentuou a vocação de desenhista e artista plástico. Athos caminhou para o jornalismo e se especializou na crítica teatral. Beatriz foi a irmã com quem esteve mais próxima, compartilhando inclusive os difíceis 12 anos de residência na Itália, em pleno espocar da Segunda Guerra Mundial, experiência que lhe deixaria sequelas para todo o sempre.
Fúlvio, o quinto mano, engajou-se na luta política, especificamente comunista, num Brasil dos anos 30 que passava pelo crivo ditatorial de Vargas. Mário, que preenchia a casa com sua bondade e delicadeza, “desapareceu” aos 41 anos – sim, porque na sua família ninguém morre ou falece, mas desaparece. Ele estava fazendo um piquenique à margem de um então límpido Rio Tietê, quando foi passear de barco, este virou e o levou, afogado.
Cláudio, o caçula, tornou-se um dos principais nomes da história do jornalismo brasileiro, chegando a dirigir a redação da Folha de S. Paulo e sedimentar uma “escola” que faz eco em todos os jornais do País. O livro “A Regra do Jogo” (1988), escrito pelo filho, Cláudio Weber Abramo, conta sua trajetória e serve de parâmetro para os jovens que sonham merguhar na profissão.
No meio dos sete, você, Lélia, era o “abajurzinho” da farnília, como a defendeu carinhosamente o irmão Athos. Você dividiu tristezas e alegrias com todos; aprendeu, ensinou. Hoje, prestes a completar 87 anos, mês que vem, você se vê sozinha no mundo. Foram-se os pais, os seis irmãos, sozinha, entre aspas, porque o destino lhe reservou um afeto de amizade, em várias frentes, que sedimentou seu caminho até aqui.
Lélia, são tocantes os relatos sobre a busca amorosa. Você, trotskista, namorou um militante leninista. Deixou-se levar pelo coração, escanteando um pouco a razão ideológica daqueles verdes anos de vida. Apaixonou-se pelo rapaz de inúmeras virtudes e um vício frenético: mulherengo à beça. Você, tão aguerrida, quem diria, fez vistas grossas, humana que é, porque as razões do coração pertencem a outra instância, sabe lá Deus qual. “Não sei se foi orgulho ou amor demais”, pondera em suas memórias.
Conviver com a solidão foi como que um estigma em todos esses anos. Por conta da incompetência assombrosa de um médico italiano, você deitou numa mesa de operação, em Roma, para extrair o ovário esquerdo, mas o desastroso cirurgião extirpou-lhe justamente o ovário sadio. “Além disso, ‘alguém’ esqueceu de suturar um vaso, provocando um choque hemorrágico pós-operatório, percebido tardiamente quando meu estado já era desesperador”, relembra. Foi um episódio, como muitos outros, que a marcaram para sempre. Este, em particular, tirou-lhe o direito de gerar um filho.
Ninguém passa incólume aos anos de guerra. Sua estadia na Itália, entre 1938 e 1950, veio confirmar ainda mais sua veia humanista. Testemunhar, in toco, os desvarios de Hitler na Segunda Guerra fez de você uma mulher antenada com as causas sociais – nem que isso lhe demandasse duas pátrias. Não foi à toa que você levou a bandeira da profissionalização do ator brasileiro à frente do Sindicato dos Artistas, em São Paulo.
Seu envolvimento com o movimento sindical chegou ao poto de testemunhar o lançamento do Partido dos Trabalhadores, no início da década de 80, consequência das greves que mobilizaram os operários do ABC em 1979. Você serviu como interlocutora para convencer o metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva, o Lula, a tomar a dianteira naquela semente do PT. Poucos anos depois, você viria a trabalhar na gestão de outra mulher de força incomum, a ex-prefeita Luiza Erundina, canalizando sua energia teatral para projetos comunitários.
Ah, sim, a atriz. A maturidade, mais uma vez, se fez presente no início da carreira. Você só foi subir ao palco profissionalmente aos 47 anos, interpretando, sintomaticamente, a operária Romana de “Eles Não Usam Black-Tie” (1958), peça que Gianfrancesco Guarnieri escreveu em sua juventude. Cinco anos depois, você tremia no palco em “Os Ossos do Barão”, de Jorde Andrade, quando notou que o grande ator italiano Vittorio Gassmann estava sentado na platéia.
No dia do golpe de 64, lº de abril, você ensaiava “Vereda da Salvação”, também de Andrade. Antunes Filho, em seus primeiros passos de diretor, decidiu suspender os ensaios, A montagem chegou a cumpnr uma curta temporada no TBC. Você interpretava Durvalina no palco, mas na versão da peça para o cinema, naquele mesmo ano, sob direção de Anselmo Duarte, você foi escalada para fazer Dolores, uma mãe arrebatadora.
Sua experiência com a televisão nunca foi uma maravilha. Dona de uma consciência social contumaz, era difícil se eximir de crítica ao veículo. Sobretudo à toda poderosa Rede Globo, surgida na esteira do regime militar. Sua saída da emissora, como descreve, é a melhor prova desse confronto intelectual em que os interesses humanos e os capitais se chocam. Participavas da novela “Pai Herói” (1979), dirigida por Gonzaga Blota, quando sua personagem, Dona Januária, “morreu” subtamente e você foi parar no olho da rua, ficando desempregada.
Perseguida pelas armadilhas do destino ou pelas injustiças, você nunca se esquivou de enfrentá-las. Foram tantos os obstáculos, de toda ordem, que é de admirar a força com que você chega até nós para rememorar as lembranças, força-motriz de qualquer história pessoal. “Mas a vida sempre nos prepara situações inesperadas e às vezes dolorosas que não podemos alterar ou impedir – só nos resta ter paciência, suportar e sofrer”, ensi na você, escolada na arte do bom senso.
Lançamento conjunto da Editora Fundação Perseu Abramo e Editora da Unicamp, com um alentado material ilustrativo, “Vida e Arte” é calcado nas reminiscências, com precisão de detalhes como o pôr-do-sol e a tonalidade dos céus. Você faz questão de costurar os fatos históricos – realidade que tanto sublimou para compensar as perdas e danos pessoais. Lélia, deambular é teu verbo vitorioso, porque fizestes da solidão um instrumento para se agarrar aos gestos essenciais da vida como ela lhe é. Muitas vezes gestos pequenos e, por isso, gigantes.
Vida e Arte – Memória de Lélia Abramo – De Lélia Abramo. Editora Fundação Perseu Abramo tel. 259-8024 e Editora da Unicamp tel. 19-788-2015. 272 páginas. R$ 27,00.