17.2.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005
TEATRO
Estréia de Ignácio de Loyola Brandão na dramaturgia evoca mito argentino
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
O teatro sempre atentou Ignácio de Loyola Brandão, 68. Nascido em Araraquara (SP), como Zé Celso, ele dividiu pensão com o diretor do Oficina em São Paulo. Era espectador assíduo do Oficina e do Arena. Quando assistiu ao espetáculo “Jornada de um Longo Dia para Dentro da Noite” (1958), no Rio, saiu tão emocionado que dizia para si que um dia escreveria uma peça com o fôlego daquele clássico de Eugene O’Neill.
Depois de lançar 27 livros, o romancista, contista e cronista finalmente reata com o sonho da dramaturgia. Acaba de escrever sua primeira peça, “A Última Viagem de Borges”, uma evocação ao homem e à obra do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986).
A montagem de Sérgio Ferrara, com cenografia e figurinos da artista Maria Bonomi, estréia dia 17/3 no Festival de Teatro de Curitiba e entra em cartaz em 25/3 no Sesc Anchieta, em São Paulo.
Não é um texto biográfico, tampouco adaptação. Instigado por Bonomi e Ferrara, Brandão encontrou uma porta livre na obra de Borges para a recriação.
A partir das chaves da palavra e da memória, tão caras ao autor de narrativas como “História Universal da Infâmia”, “O Aleph” e “O Livro de Areia”, Brandão chegou à seguinte gênese: certo dia, Borges descobriu a palavra perfeita, aquela que contém todas as outras, tal o Aleph, acesso infinito aos fatos e circunstâncias do mundo; mas, da mesma forma que encontra a palavra-mor, Borges a perde, a esquece, e o único lugar no qual pode tentar reavê-la é a Biblioteca de Babel.
“As palavras são astuciosas e armam ciladas para nos desafiar. A minha palavra fugiu. Escapou e se ocultou. Eu a construí durante um longo tempo com sílabas articuladas cheias de ternuras e temores”, diz o personagem Borges (Luiz Damasceno), emparelhado com o escritor do conto “A Biblioteca de Babel”.
Em plena maturidade, Borges decide então partir em busca da palavra perdida. A sua mulher, María Kodama (viúva na vida real, personagem interpretada por Flávia Pucci), entende a demanda espiritual, existencial, mas teme por uma viagem sem volta. Respeita-o, no entanto. Deixa-o partir em seu caminho solitário.
Para acompanhá-lo na expedição, Borges escolhe três nomes entre personagens e autores que o marcaram para sempre: o aventureiro inglês “sir” Richard Francis Burton (1821-1890), tradutor de “As Mil e Uma Noites” (interpretado por Fernando Pavão); a sedutora Sherazade (Pucci), contadora de histórias; e Funes (Olayr Coan), aquele que contém em si a memória de todas as coisas e nutre certo ódio pelo seu criador, Borges, que o deixa paralítico sobre uma cama no conto “Funes, o Memorioso” (na peça, surge em cadeira de rodas).
Há um quarto agregado, o jovem guia de Borges (Rodrigo Bolzan), “olhos e movimentos” do escritor cego, espécie de Tirésias, o adivinho das tragédias gregas.
Tal qual Homero ou Gulliver, Borges cumprirá uma rota plena de obstáculos, saindo de Buenos Aires. Brandão joga com o duplo, com espelhos, labirintos -recursos borgeanos.
Para Ferrara, “A Última Viagem de Borges” carimba auto-conhecimento no rito de passagem. “Enquanto ele acha que a palavra que busca é só dele, fica desconectado do mundo. Na hora em que entende que a palavra é comum a todos, aí entra em contato com o cosmos; aí ele pode morrer”, diz Ferrara, 37, que teve apoio do diretor Fauzi Arap no projeto.
Sobre a contemporaneidade do homenageado, Maria Bonomi, 69, fala em “abertura ao mistério”, em “transformação do olhar”.
“O possível e o impossível estão extremamente trançados. Em Borges, a imaginação torna-se uma forma conhecimento. Ao recolocar as questões do destino do homem, ele não substitui a intuição, a paixão e o lúdico na grande aventura que é a vida”, diz a cenógrafa, que já trabalhou com Antunes Filho, Flávio Rangel, Ademar Guerra e agora volta a trabalhar com Ferrara (“Tarsila”).
Para “tocar o intocável no tempo-espaço lúdico”, Bonomi lança mão de projeções. As imagens de filmes (“O Espelho”, do russo Andrei Tarkovski, por exemplo) e quadros (o argentino Xul Solar, o belga Magritte) bailam entre palavras no universo sideral.
“Será um espetáculo muito sensorial. As pessoas vão perder a respiração. Como se pegássemos o público pelas mãos e disséssemos: feche os olhos que nós vamos pular.”