12.1.1992 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 12 de janeiro de 1992. Local – Página 3
VALMIR SANTOS
Estavam lá as prostitutas, os meninos de rua, os PMs armados, os evangélicos, os muambeiros e as sofridas pombas urbanas em busca de migalhas no concreto. Durante a última semana, este foi o cenário que serviu de pano de fundo para o espetáculo “O Capeta de Caruaru”, na Praça da Sé, com o grupo Teatro da Universidade de Mogi das Cruzes, o Tumc. A exemplo do que aconteceu nas praças de Mogi e Suzano, a peça do pernambucano Aldomar Conrado, entremeada por lendas absurdas da tradição nordestina e pelas tiradas políticas e sociais em voga, também cativou o público paulistano.
Na roda formada há poucos metros do marco-zero do Estado, os rostos revelavam uma maioria de migrantes do Nordeste. A identificação com as cenas e os sotaques dos personagens era inevitável. O sorveteiro António da Silva, 26 anos, soltava altas gargalhadas. “Tô gostando bastante”, disse o pernambucano de Surubim, cidade a duas horas de Caruaru. Silva só parou para assistir à peça depois de vender todos os 200 sorvetes de sua caixa de isopor. Tem saudades da terra natal, mas é “obrigado” a ficar em São Paulo. “Lá não tem emprego”, justifica.
As aventuras do prefeito António Cipriano e do padre Damião, que se passam, respectivamente, pelo beberrão Chico e o caipira Biu — esse troca-troca de personagens provoca momentos engraçados —, reportou o marceneiro Adaílton Alves Cavalcante, 32 anos, à sua infância e adolescência em Rio Tinto, na Paraíba. “Nunca havia assistido a um espetáculo em praça pública, nem em teatro de verdade”, conta. Cavalcante assistiu a todas as apresentações do Tumc na Sé. Quinta e sexta-feira, estava acompanhado da mulher, Marluce, 22 anos, e do pequeno Anderson, 2 anos.
Amor à arte
Tatiana Freitas, 8 anos, filha da vendedora autônoma Edilenice Freitas do Carmo, 27 anos, se desvencilhou dos braços da mãe e foi sentar à frente da roda-platéia. “Gostei mais da Bruxa”, afirma a menina, referindo-se ao personagem que narra as peripécias de “O Capeta de Caruaru”. Para a baiana Edilenice, que já fez aula de interpretação com a diretora teatral Maria Clara Machado, no Rio de Janeiro, é importante a iniciativa do Tumc em levar a arte cênica para a praça. “A gente percebe uma personalidade forte no grupo, de entrega, de amor à arte mesmo”, avalia, enquanto assistia à peça pela segunda vez. O ajudante de limpeza Antônio da Silva – mesmo nome do sorveteiro -, 45 anos, disse que o Tumc lembra o tempo em que vivia em Rancharia. no interior do Estado, onde costumava freqüentar o circo. Em “O Capeta”, segundo ele, os personagens caricaturados lembram os palhaços. Barba à Tiradentes, uma mochila a tiracolo, apoiando-se em um cabo de vassoura que servia de apoio por causa de uma operação recente na bacia cervical, Silva permaneceu em pé durante toda a apresentação e aplaudiu sorrindo ao final.
Cheirando cola
Poucos minutos depois do inicio do espetáculo, às 19 horas em ponto, cerca de 15 meninos e meninas de rua estavam sentados à frente do público, envoltos em cobertores. A maioria, negros. Alguns cheiravam cola de sapateiro em saquinhos plásticos. “É a primeira vez que vejo teatro na Sé”, disse Agostinho Manoel, 12 anos. Ele pertence ao grupo de menores que tem ainda Corina, 15 anos, e Fábio, 12 anos. “A gente dorme nas ruas do bairro da Liberdade”, afirma Agostinho.
Ex-detento da Febem, abandonado pelos pais desde os 7 anos, Josivaldo Aparecido da Silva, 23 anos, conhece a Praça da Sé como a palma da mão. “É superlegal ver este grupo aqui, se apresentando de graça para o povão”, elogia. Na sua opinião, a temporada do Tumc serviu como recreação para os meninos e meninas de rua donos de vidas bastante atribuladas. “Os policiais espancam, a Rota mata diariamente e ninguém fala nada”, acusa.
Deus e o diabo
Por pouco – cerca de 50 metros – “O Capeta” não trombou com os evangélicos da Igreja Sê Livre. Enquanto na roda do Tumc um cavalo que nasceu com cabeça humana casa com uma moça que pegou a doença do coqueiro e não cessa de crescer, o círculo dos pregadores do grupo Heróis da Fé ouvia as “lições” do pastor Arnaldo Albuquerque, 49 anos. “Aqui não é um picadeiro; é lugar de o homem ouvir a verdade nua e crua”, vangloria. “Aqui em Caruaru felizmente não existem as falcatruas da Saúde”, envaidece o prefeito António Conselheiro na peça do Tumc, comparando sua administração ao ministério comandado por Alceni Guerra. Neste embate pacifista, até que ponto ficção é realidade, e vice-versa?
Convidado especial
O espetáculo da última quinta-feira, acompanhado pela reportagem do Diário, foi dedicado ao diretor César Vieira, fundador do grupo União e Olho Vivo, que completa 25 anos em março. “A peça tem técnica de teatro popular e consegue cativar o público”, analisa Vieira, 49 anos. Ele foi convidado pelo diretor do Tumc, Adamilton Andreucci Torres, 38 anos, autor de uma tese sobre o União e Olho Vivo. Na opinião de Vieira, o trabalho do grupo mogiano segue um caminho de recuperação da arte popular. Cita, como exemplo, o número de pessoas que assistia a “O Capeta” na praça da Sé, cerca de 350. “Garanto que poucos teatros contam com um público destes na platéia.” Hoje, um ingresso custa em média Cr$ 6 mil.