13.4.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 13 de abril de 1997. Caderno A – 4
Atores Luis Meio e Christiane Torioni compõem papéis tocantes na versão de Oscar Wilde
VALMIR SANTOS
Tua boca é mais
vermelha do que os pés dos
que machucam as uvas
nos lagares –
É mais vermelha do
que os pés dos pombos
que habitam os Templós
Tua boca é como
um ramo de coral trazido
do crepúsculo do mar,
é como a púrpura dos reis
Nada no mundo é tão
vermelho, como o
vermeho da tua boca
Deixe-me beijar a tua
boca, Iokanaan (Oscar Wilde)
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São Paulo – Oscar Wilde faz da metáfora uma figura de linguagem marcante na sua “Salomé”. Lua, mulher, estrela — fenômenos naturais e humanos são citados no texto que tem como eixo a religião e a interferência do humano no destino. “Não se pode achar símbolo em tudo que se vê (…), fica um horror”, sentencia Herodes, o pai da princesa protagonista. A frase, dentro da peça, revela a nuvem de paralelos que termina por roubar muito da ação na montagem em cartaz no Teatro Faap até hoje – a partir da próxima sexta muda para o Arthur Rubinstein, no clube A Hebraica, também na Capital.
Diante das metáforas, resta a contemplação. O diretor José Possi Neto se sai bem na resolução da cena. Aprofunda o tom místico da história bíblica que vem através de séculos. A lenta movimentação dos atores, a indefinição de espaço e tempo (vagamente sugerido no figurino) compõem um quadro de tintas orientais.
Água e fogo são elementos evocados. O cénário de Felipe Crescenti traz um lago artificial e cordas que ascendem ao céu, permitindo a exploração dos planos superior e inferior.
A “Salomé” vertida por Wilde, no final do século passado, equilibra a exposição da filha protagonista e dedica atenção também ao pai, Herodes. Aqui, são interpretados por Christiane Torloni e Luis Melo. A parceria recente na televisão não depõe contra – o que se esperava em se tratando do talento de Melo e da presença marcante de Christiane.
Melo catalisa com seu Herodes, por vezes remetendo à fúria de um Macbeth ou de um camponês messiânico, como respectivamente em “Trono de Sangue” e “Vereda da Salvação”, ambas dirigidas por Antunes Filho.
Ele capta cada filigrama, desenha o personagem com profundidade; beira o transe aos olhos do público.
“Pode transformar água em vinho (…), mas não permito que ressuscite mortos”, pondera Herodes quando ouve o paradeiro de Cristo. É dos momentos em que o ator esbugalha a loucura.
Christiane Torloni abraça a sensualidade. Corresponde à beleza e perversão de Salomé, “filha de Sodoma, do adultério”, que pede a cabeça de lokanaan, ou São João Batista. Seduz o padastro com sua dança e, em contrapartida, exige a cabeça daquele que lhe recusou a boca. Iokanaan, papel de Tuca Andrada, é o profeta em oposição ao mal. Não sucumbe à princesa e, para tanto, paga com a vida.
Herodias, mãe de Salomé, surge na interpretação desconcertante de Cláudia Schapira. Depois da dobradinha com Lu Grimaldi em espetáculos como “Violeta Vita”, eia volta à cena encarnando uma verdadeira megera. Herodias abandona o marido, irmão de Herodes, para ficar com este. E alavanca da roda da fortuna que prega suas armadilhas. E sucumbe também.
Em pouco mais de uma hora, “Salomé” condensa o mito, impõe um ritmo cadente, mas consistente, e projeta bons atores para conduzir o público em uma viagem pontuada pelo conflito entre desejo e poder.
Salomé – De Oscar Wilde. Direção: José Possi Neto. Com Luis Melo, Christiane Torloni, Caco Ciocler, Luis Miranda, Lais Galvão, Augusto Vieira, Jorge Penha, Beto Sodré e outros. Última apresentação hoje, 19 horas. Teatro Faap (rua Augusta, 903, Higienópolis, tel. 824-0104). R$ 25,00. A partir da próxima sexta-feira (18), a montagem muda de endereço e passa a ser apresentada no Teatro Arthur Rubinstein/A Hebraica (rua Hungria, 1.000, Jardim Paulistano, tel. 818-8827). Preço e horário não divulgados. Duração: 75 minutos.
“Dama do Cerrado” não garante gargalhada
São Paulo – Brasilia já frequentou os palcos com mais humor e picardia. “Capital Estrangeiro”, com Edson Celulari, foi das últimas tentativas, cerca de dois anos atrás – pouco feliz diga-se de passagem. O alvo amainou em tempos de Real. Mas as moscas continuam lá. Quem agora volta à “lama”, ainda que com um pé no passado, é o espetáculo “A Dama do Cerrado”, mais um texto de Mauro Rasi, o mesmo do sucesso “Pérola”, da temporada passada. |
Rasi não atualiza, mas remete ao escroque político da “abertura”. ACM, Maluf, Roseana, Aecinho… Eles continuam na ativa. Verão de 85, véspera da posse de Tancredo Neves, eleito pelo Congresso Constituinte. As eleições diretas não vingam e o País consola-se com seu primeiro presidente civil depois do período militar.
Mas veio mais uma daquelas intervenções históricas, sabe-se lá se destino, que deixam todo mundo de boca aberta de quando em vez: a supreendente internação e, dias depois de tanta agonia, o anúncio da morte de Tancredo pelo porta-voz Antonio Britto.
É sobre este fundo sócio-político que o autor solta um humor que só não é mais rasgado por causa da contenção do texto e pela própria característica da dupla principal, Otávio Augusto e Suzana Vieira.
Não há uma tirada, uma frase de efeito cortante. “Inocente não sobrevive em Brasilia”, dispara em tom quase formal Leda Florim (Suzana) – socialite de meia-tigela que envolve-se com um deputado da corja para tirar, ela também, proveito próprio.
A atriz vai ao que parece ser seu limite na comédia, sem acrescer ao que o público já conhece da televisão. A perua Leda, comedida, desata a sua bancarrota para o cabeleireiro que não vê há duas décadas. É nessa retrospectiva que se tem notícia do jogo de bastidores, com fofocas pinçadas aqui e ali.
Quem serve de “parede”, mas vai muito além, é o cabeleireiro Fúlvio, na pele de Otávio Augusto. O “gueixa” (um trocadilho para gay?) surge com o quimono e vive entrando em viagens com maconha, cocaína, haxixe, LSD. Um figurino de cores berrantes, um cenário igualmente digno de filme de Almodóvar, de salão de beleza, uma iluminação espalhafatosa, enfim, ainda assim a piada está nos trejeitos de Otávio Augusto.
Ele consegue se utilizar do estereótipo sem exceder, com timining até para cenas abertas. Quando surge vestido em preto, sadomasoquista, já tem o público nas mãos.
Despretensiosa, “A Dama do Cerrado” dá conta do recado mas não assegura gargalhada deliberada, franca.
A Dama do Cerrado – De Mauro Rasi. Com Suzana Vieira, Otávio Augusto, Beatriz Lyra e Luciano Mallman. Quinta e sexta, 21h; sábado, 20h e 22h; domingo, 19h. Teatro Jardel Filho (avenida Brigadeiro Luís Antônio, 884, Bela Vista, tel. 605-8433). R$ 28 a R$ 32. 90 minutos.
Um Villela moderno e tradicional em ‘Ventania’
São Paulo – “Ventania” expõe um Gabriel Villela afeito a experimentar outros caminhos. A peça de autoria de Alcides Nogueira pincela a autobiografia do dramaturgo José Vicente e volta à casa noturna Tom Brasil para três sessões no próximo fim de semana. |
Oposição bem e mal, sol e lua; a dicotomia de Zé e Vicente, dois personagens fundidos em um só; enfim, flancos explorados em meio à linguagem pop da peça que remete aos anos 70. Assim, canções lúdicas dividem espaço com Elvis Presley, The Doors, George Michel.
Villela transita com tranquilidade entre a tradição e a modernidade. Não abre mão das luzinhas, do Cristo, da rusticidade do cenário, do seu teatro como ele é. Contudo, incorpora-se à atemporalidade musical sem soar datado. Não se trata de um “Hear” saudosista, por exemplo.
“A Vida é dia útil; a vida não é domingo”, propaga Vicente, tentando instigar Zé, o poeta, o sonhador. As palavras têm seu peso medido em “Ventania”.
A alma da mãe de Zé e Vicente, morta, trava um embate com sua mãe, avó dos rapazes, que também têm que lidar com a irmã Luiza.
Mas um dos problemas recorrentes de Villela está na direção de ator. Ela sucumbiu em “O Sonho”, por exemplo, com o elenco despreparado do Teatro Castro Alves, da Bahia. Em “Ventania”, os irmãos interpretados por Davi Taiu (Zé) e Eriberto Leão (Vicente) ficam aquém da loucura ou santidade.
Malu Valle, no papel da mãe morta; Sílvia Buarque, a irmã, e sobretudo Lorival Prudêncio, como avó, eles sim, dão conta da interpretação e sustentam a montagem – todos coadjuvantes.
Ventana – Mais três sessões: sexta (18), 22h; sábado, 22h; e domingo, 20h). Tom Brasil (rua olimpíadas, 66, Vila Olímpia, tel. 820-2326). R$ 15 a R$ 40.