11.10.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 11 de outubro de 1998. Caderno A – 4
Inspirada na mitologia indígena, peça surpreende pelo despojamento e interpretações
São Paulo – O chamado teatro regional conquista cada vez mais espaço na cena brasileira. Desde os tempos de Ariano Suassuna (“Auto da Compadecida”), nos anos 60, até os dias que correm, ele vem descentralizando o foco do sotaque e dos cacoetes para alcançar um caráter mais universal, sem prejuízo das suas raízes.
Pode-se citar alguns encenadores que contribuíram, em maior ou menor grau, com leituras inovadoras: Antunes Filho (“Macunaíma”), Antonio Nóbrega (“Brincante”), Romero de Andrade Lima (“Auto da Paixão”), Carmem Paternostro (“Merlim”), Luiz Carlos Vasconcelos(“Vau da Sarapalha”), Nehle Frank (“Divinas Palavras”) etc.
Cada um em seu pedaço de chão (São Paulo, Salvador, João Pessoa, Recife, enfim) conceberam pesquisas de linguagem cênica que abriram flancos para o Brasil de dentro e, ao mesmo tempo, conectaram com o de fora, por obra e graça da sua eminência humana.
O espetáculo “Honorato”, em cartaz no Teatro Brasileiro de Comédia, filia-se a essa categoria de teatro regional que foge de facilidades como o diabo da cruz. Não foi à toa que seu diretor Paulo Ribeiro, sediado em São Paulo, levou pelo menos oito anos para chegar ao formato atual.
Ele também é autor do texto. Escreveu-o tomando como ponto de partida a lenda da Cobra Norato, garimpada pelo folclorista Luís Câmara Cascudo e vertida para o romance por Raul Bopp, dando origem à principal montagem do grupo mineiro Giramundo, comandado por Álvaro Apocalypse, outro pesquisador contumaz.
Ribeiro, ex-assistente de Vladimir Capella (“Píramo e Tisbe”), agregou outros elementos à história. O autor amplia a carga simbólica da mitologia indígena (Boto, Iara e Co bra Grande) criando elementos que têm o impacto das tragédias gregas.
Em “Honorato”, Joana Candiru (Selma Luchesi) é amante de Jaguarari (Eldo Mendes), um relacionamento que equivale à lenda amazônica do Boto, o homem misterioso que surge do nada, na calada da noite, e atrai as moças com seu olhar sedutor. Eles têm dois filhos, Honorato (Sandro Alvares) e Maria Caninana (Verônica Menezes). Como Jaguarari pertence a outra instância, coube a Joana Candiru dar conta da criação de sua prole.
São informações que chegam ao espectador num pêndulo sutil de flash backs. No presente, Honorato é um jovem encruzado com a maldição da Cobra Grande, o que lhe impede de viver como um ser humano comum. Na ânsia de libertar-se do estigma, ele conhece seu pai, Jaguarari, que lhe revela a fórmula para afastar a Cobra Grande.
Se Honorato enxerga no pai redivivo a chance de uma guinada, sua irmã tem uma posição o-posta. E ela, Maria Caninana, a propulsora de toda a tragédia.
Primeiro, esfaqueia a mãe. Depois, mata o, pai. Ao cabo de tanto sangue, é assassinada pelo irmão. Toda essa violência é deflagrada sem se apelar à visceralidade. Caminha-se pelo fio da fábula, do fantástico, sempre com precisão visual e interpretativa.
Como encenador, Ribeiro é econômico na medida em que a simplicidade torna-se um tesouro. Seus atores, jovens em maioria, são bem preparados. Entregam-se por inteiro a personagens difíceis, porque entranhados de uma cultura autóctone, distante das grandes cidades.
Selma Luchesi faz uma interpretação apaixonada de Joana Candiru. Aos 30 anos de carreira, a atriz domina as nuanças da mãe com parcimônia. Cristaliza a dor com controle absoluto, sem exagero.
Eldo Mendes também se destaca como Jaguarari, personagem calcado na imagem indígena. Nota-se a riqueza dos detalhes, da postura de um ser que brota da natureza e desconhece condicionamentos. Mendes, como Selma, como Ribeiro e como toda a equipe de “Honorato”, rezam a cartilha do instinto que a tudo move e a tudo pode – tal qual os personagens da históna.
É um espetáculo que emociona pelo brilho ingênuo e sincero, pela energia de atores como Renata Quintela (Joana jovem) e Daniel Alvim (Soldado de Cametá). Sem contar a encarnação primitiva do Pajé de Hizidio Carrigo.
Sandro Alvares, no papel-título, não chega a arrebatar, visivelmente pela pouca experiência de palco, jovem que é. Seu Honorato pode não envolver na medida dos demais personagens, mas demonstra fôlego, sobretudo nas passagens mais dramáticas.
Rogério Moura, autor da música original do espetáculo, também entra em cena como João, mas serve melhor ao músico do que ao ator.
(Inclusive, é um elenco que também canta letras de Geraldo Azevedo e Chiquinha Gonzaga, entre outros.)
Aliados aos intérpretes, estão Telumi Helen (figurinos) e J. C. Serroni (consultor visual) emoldurando uma atmosfera perfeita para uma peça que destrói completamente as noções de tempo e espaço. E sem a caricatura da floresta (o cenário desmaterializa-se e fica por conta da imaginação do espectador). Mais a iluminação de Giggio Deliberato, e a suspensão está completa.
“Honorato” dá visibilidade ao trabalho de Paulo Ribeiro, tim diretor que coloca o teatro em uma escala maior, recolhendo-se muito aquém do tom personalista cooptado por boa parte dos colegas. Afinal, quando um jovem diretor pesquisa durante oito anos para montar uma peça – descontados problemas estruturais -, é porque possui timing suficiente para penetrar o indevassável território do palco.
Honorato – Texto e direção: Paulo Ribeiro. Assistente de direção: Paulo Capovilla. Assistente de iluminação: Vanderlei Conte. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Brasileiro de Comédia (rua Major Diogo, 315, Bela Vista, tel. 3104-5523). R$ 10,00. Até 20 de dezembro.
‘Química’ de atrizes sustenta montagem
São Paulo – Não é a mesma coisa. Um, dois anos atrás, Rosi Campos dividia a cena com Zezeh Barbosa em “As Sereias da Zona Sul”. Era uma dobradinha afiada. Agora, a atriz volta ao cartaz com nova parceira, Cláudia Borioni. E a química se renova para melhor.
Na montagem anterior, a peça de Vicente Pereira e Miguel Falabella, também agora sob direção do último, promovia um encontro de duas atrizes de estilos se não parecidos, no mínimo próximos.
Era um embate que as nivelava e, de certa maneira, as continha em cena – uma em função de não ofuscar a outra, tamanho o poder de cena, e vice versa.
Com Cláudia, a mudança é significativa. Sua verve é mais sutil, de gestos pequenos, de olhares capciosos. Esse desequilíbrio sustenta o espetáculo, aqui numa versão visualmente mais “pobre”, comparada à anterior (no Teatro Hilton), ocupando aqui um teatro de poucos recursos, o Cacilda Becker, no bairro da Lapa, zona oeste paulista.
Até essa pressuposta pobreza é alçada ao mote de piada para “madames” Rosi e Cláudia deitarem e rolarem, a la Hebe e Ana Maria Braga. A química é perfeita. Nos quadros, num total de quatro, as diferenças físicas (uma é alta, outra baixa), bem como os estilos de interpretação, constituem combustão para deslanchar o humor.
“O Gabinete da Dra. Hully Gully”, o segundo quadro, cristaliza as “especialidades” de cada uma. Rosi, na pele da médica-monstro. Cláudia, como a pobre velhinha que tem dores no rim e vê seu órgão sendo cotado para venda.
São momentos hilários, onde a médica usa de todas as artimanhas – incluindo um gorila – para tentar convencer a velhinha da “venda”. Mas esta não se faz de rogada e quer saber tim-tim-por-tim-tim, num confronto surrealista.
À comédia ligeira de Pereira e Falabella, ainda que pesem seus escorregões racistas, sexistas – depois instituídos de vez no programa dominical “Sai de Baixo” -, Rossi e Cláudia acrescentam seus estilos marcantes. Soltas, à vontade, despachadas, elas convertem “As Sereias da Zona Sul” em entretenimento de alta voltagem cômica.
As Sereias da Zona Sul – De Vicente Pereira e Miguel Falabella. Com Rosi Campos e Cláudia Borioni. Elenco de apoio: Isabela Chiapetta e Carlos Pereira. Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Cacilda Becker (rua Tito, 295, Lapa, tel. 864-4512). R$ 10,00. Duração: 80 minutos.