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Valor Econômico

Projeto ambicioso ilumina a história do teatro brasileiro

9.10.2012  |  por Valmir Santos

(texto publicado originalmente no caderno Eu&Cultura, do jornal Valor Econômico, edição de 8 de outubro de 2012, p. D4)

Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo

Os primeiros vestígios brasileiros de manifestação teatral têm quase os 512 anos do país. Foi no Brasil Colônia que a Companhia de Jesus manipulou a arte de representar para catequizar índios. Entre os padres, o espanhol José de Anchieta (1534- 1597), que pisou na Terra de Santa Cruz em 1553 e contava 19 anos, foi o mais bem-sucedido na criação de breves autos em verso, conforme raros documentos remanescentes. Aprendeu a língua tupi e se deixou contaminar pela cultura indígena, sem jamais perder de vista a religião.

 

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Foi por meio desse “processo de substituição de cultura” que “emergiu penosamente o Brasil”, e com ele o aparecimento do teatro, anota o crítico e historiador Décio de Almeida Prado (1917- 2000) no primeiro capítulo do livro História do teatro brasileiro: volume I – Das origens ao teatro profissional da primeira metade do século XX (Vários autores. Ed. Perspectiva e Edições Sesc SP; 502 págs., R$ 95), ambicioso e rigoroso estudo de equipe planejado desde 2002 pelo professor emérito e editor J. Guinsburg e dirigido pelo professor de literatura brasileira João Roberto Faria, ambos da USP.

 

O Brasil ainda não dispunha de uma obra aprofundada que levasse em conta os múltiplos aspectos do fazer teatral ao mirar os cinco séculos no retrovisor. Estudos anteriores concentraram demasiadamente na produção literária do gênero dramático, reflexo dos laços intrínsecos com a literatura, cuja historiografia desponta anos-luz à frente em seus cânones delineados. Faltava englobar a evolução do espetáculo, da interpretação, das ideias críticas, das companhias dramáticas e de seus empresários, entre outras faces do ofício que culminam na cultura de teatro com a qual o espectador de hoje é familiarizado.

 

Uma das obras de referência é Panorama do teatro brasileiro (1962), do crítico e ensaísta Sábato Magaldi, no qual apenas três dos 21 capítulos originais vão além da importância da dramaturgia. Há 50 anos, ele mesmo tinha consciência de que faltava “um estudo satisfatório de todos os aspectos da vida cênica”. O próprio Magaldi inspirou o novo projeto e chegou a triangular com Guinsburg e Faria, mas não pôde manter sua participação.

 

Os 26 capítulos do primeiro volume cobrem desde a missão cristã dos jesuítas no século XVI até a modernidade artística florescida em meados do século XX. O livro compreende seis partes: raízes do teatro, teatro romântico, teatro realista, teatro de entretenimento e as tentativas naturalistas, teatro no pré-modernismo e teatro profissional dos anos de 1920 aos anos de 1950.

 

Todos os aspectos da vida cênica foram contemplados, diz Faria, pesquisador profícuo que foi aluno de Almeida Prado nos anos de 1970, no curso de letras, e dele herdou a interface da literatura com o teatro (o crítico o orientou no mestrado sobre José de Alencar). O livro tem o mérito de contar com a adesão empenhada dos departamentos de artes cênicas das principais universidades do país. Segundo Faria, é a primeira obra de fôlego escrita com base no espírito universitário de pesquisa. Um time de cerca de 40 colaboradores dá conta da abrangência e riqueza de informações, domina a bibliografia e é vertical em suas análises (Maria Thereza Vargas, Vilma Arêas, Flávio Aguiar, Tania Brandão, Fernando Mencarelli, Walter Lima Torres e Luiz Fernando Ramos, entre outros).

 

“Com o incremento da pesquisa em artes cênicas nos cursos de pós-graduação, conhecemos hoje o nosso passado teatral com detalhes que escaparam aos historiadores de 30 ou 40 anos atrás. Há muita gente estudando o teatro brasileiro. Dissertações e teses sobre os aspectos mais variados da nossa vida cênica tornaram possível preencher lacunas e construir a história do nosso teatro numa narrativa mais completa”, diz o professor que reivindica “uma nova história do teatro brasileiro” plural e abrangente.

 

O 12º parágrafo de um decreto que circulou quando a República Federativa do Brasil contava apenas oito anos exemplifica o quanto essa arte foi transformada no compasso da sociedade. “Os atores que alterarem o texto das peças acrescentando ou diminuindo palavra, que derem a estas sentido equívoco por meio de inflexão da voz e gestos, ou nas pantomimas e danças fizerem acenos e meneios indecentes, incorrerão na multa de 10$ a 20$ [réis], e em quatro a oito dias de prisão”.

 

Esse documento foi publicado em 21 de julho de 1897, sob o pretexto de regular a inspeção dos teatros e outras casas de espetáculo no Rio, então capital federal. Ao que o comediógrafo Artur Azevedo comentou à altura: “Se a polícia quiser dar inteiro cumprimento a essa disposição, não haverá espetáculos, porque os nossos artistas, salvo honrosas exceções, passarão na cadeia a maior parte da existência”.

 

O segundo volume da História do teatro brasileiro será lançado nas próximas semanas. Entre os temas abordados em 25 capítulos, estão o modernismo demarcado pela Semana de Arte Moderna de 1922, as primeiras tentativas de modernização, os grupos amadores, as companhias profissionais dos anos 1940-1960, o fortalecimento da dramaturgia, o surgimento dos grupos como Arena e Oficina, os efeitos da ditadura de 1964 sobre o teatro e as diversas manifestações da contemporaneidade.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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