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Entrevista

Restituir participação. Resistir

10.6.2016  |  por Francis Wilker

Foto de capa: Sidney Rocharte

Embora a história contada nos livros tenha sido tão negligente com a trajetória de tantas mulheres que ofereceram contribuições fundamentais ao Brasil; embora, em 2016, a luta pelos direitos das mulheres ainda precise estar em marcha, basta olhar para as ruas, para as redes sociais e para os movimentos da sociedade civil e identificar o forte protagonismo de muitas “Marias” que colocam sua inteligência, coragem, força e sensibilidade na construção de novos mundos. A baiana Maria Marighella, atriz, gestora cultural, mãe de Zeca e Bento, pertence a essa linhagem, como ela mesma diz ao falar do avô Carlos Marighella (1911-1964): “Acredito nas transformações que podem surgir da formação política de um povo”.

Máxima que parece mover a atuação de Maria, seja nos palcos ou nos gabinetes da gestão pública da cultura. Recentemente, ela ocupou o cargo de coordenadora de teatro do Centro de Artes Cênicas (Ceacen) na Fundação Nacional de Artes (Funarte), sob a gestão do presidente Francisco Bosco, jornalista, escritor e filósofo no Rio de Janeiro. A atriz trabalhou em parceria com o também ator Leonardo Lessa, do grupo Teatro Invertido, de Belo Horizonte, responsável pela direção do mesmo Ceacen nos últimos 14 meses.

A cultura está na centralidade da agenda progressista do Brasil. Isso é inédito, mas conversa com as lutas tradicionais por direitos, os movimentos sociais. Um novo tecido social está se formando a partir da cultura

A legitimidade dessa equipe – vista por muitos artistas como um lampejo para modernizar a instituição e estruturar uma Política Nacional para as Artes (PNA), meta da gestão do então ministro Juca Ferreira – teve seu percurso interrompido prematuramente com o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff e a interinidade de Michel Temer.

Vinculada à Frente Nacional de Teatro, cujos pares ocupam equipamentos públicos do MinC pelo país, inconformados com o governo provisório, Maria Marighella deu entrevista ao Teatrojornal por e-mail, num diálogo sobre a experiência no Centro de Artes Cênicas, os rumos da Política Nacional das Artes e as percepções como mulher na gestão pública.

Como chegou à coordenação do Ceacen e quais foram as primeiras impressões na Funarte?

Maria Marighella – Cheguei após uma experiência de três anos (2012-2015) como coordenadora de Teatro da Fundação Cultural do Estado da Bahia [Funceb]. Foi muito interessante o que aconteceu na Bahia entre 2007 e 2014 – quando tivemos Jaques Wagner como governador e Márcio Meirelles (2007-2010) e Albino Rubim (2011-2014) como secretários de Cultura. Antes de 2007, não tínhamos uma Secretaria de Cultura. Até 2006, na Bahia, estado com uma complexidade e diversidade cultural imensa, havia uma Secretaria de Cultura e Turismo e uma Fundação Cultural responsáveis pelas políticas de cultura. A partir de então passamos a ter uma Secretaria de Cultura e, inspirados pelo que acontecia em âmbito federal (Gilberto Gil e Juca Ferreira à frente do Ministério da Cultura), uma série de formulações ampliou muito o conceito de cultura e sua função pública. A Fundação Cultural passou a ser, por exemplo, exclusivamente responsável pelas políticas públicas para as artes. E nesse contexto cheguei à gestão. Acho que o convite para ir à Funarte e participar da construção da Política Nacional das Artes (PNA) vem dessa experiência. Encontrei uma instituição muito mais “executora” do que “formuladora” de políticas públicas para as artes, e afastada historicamente do Sistema MinC. Durante o ano em que estive lá [julho de 2015 a maio de 2016], na gestão de Francisco Bosco, trabalhamos, dentro da construção da PNA, no sentido de envolver a Funarte no Sistema MinC e desenvolver, em conjunto, as políticas e sua reestruturação.

Maria Marighella em Ensaio de casamento (2012), direção de Nadja TurenkoTiago Lima

Maria Marighella em Ensaio de casamento (2012), direção de Nadja Turenko

Na Funceb, você participou de experiências bem-sucedidas, como a elaboração de um modelo de difusão do teatro. O que percebe de diferenças e semelhanças na gestão da política cultural nas esferas estadual e federal?

Maria – As diferenças são pequenas e os problemas, bem semelhantes. Precisamos nos debruçar igualmente em temas relacionados ao fomento, participação social, descentralização, desenvolvimento territorial, difusão das artes (um dos maiores gargalos da nossa produção), fruição, acesso, consumo, formação, memória, etc. A questão que está colocada é que precisamos atuar numa lógica federativa, dentro do Sistema Nacional de Cultura. A Política Nacional nasce nessa perspectiva. Precisamos encontrar o papel de cada ente federado, a partir de suas vocações, na construção e execução das políticas públicas para a cultura e mais especificamente para as artes. Hoje, por exemplo, municípios, estados e União fomentam criação. Mas a difusão do produto artístico continua sendo um gargalo. Não temos políticas para manutenção de espaços/equipamentos culturais independentes ou para os festivais (eventos “calendarizados”). Sabemos, por exemplo, que a internacionalização das artes é um desafio que precisamos enfrentar. Dificilmente avançaremos sem uma perspectiva de pactuação federativa.

Que leitura faz do lugar do teatro na estrutura da Funarte? Quais foram os desafios e conquistas como coordenadora?

Maria – Tivemos, tradicionalmente, presidentes da Funarte e diretores do Centro de Artes Cênicas (Ceacen) vindos do setor teatral. Acho que essa tradição mascarou a desidratação da coordenação de teatro. Não temos na coordenação de teatro da Funarte uma estrutura capaz de dialogar com a complexidade do teatro brasileiro. Nossa estrutura é menor que nossa necessidade. Encontrei uma coordenação sem diálogo com o Pronac [Programa Nacional de Apoio à Cultura que tem entre suas funções estimular a produção, a distribuição e o acesso], por exemplo. Ou seja, os projetos inscritos ou contemplados na Lei Rouanet não passam pela coordenação. Com toda a crítica que temos ao mecanismo, não podemos estar afastados dessa maneira. Ao longo de todo o processo, tentamos nos aproximar do Sistema MinC: Sefic (Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura); SPC (Secretaria de Políticas Culturais, na construção da economia do teatro); Sefac [Secretaria de Educação e Formação Artística e Cultural); SAI (Secretaria de Articulação Institucional), etc. Tentamos restituir participação. Mostrar a importância de estarmos integrados e termos capacidade institucional para operar em conjunto. Infelizmente fomos abatidos em pleno voo.

Acrescento que é inaceitável termos ainda um Centro de Artes Cênicas. Precisamos ter lócus específico para o circo, a dança e o teatro dentro da Política Pública para as Artes. A reestruturação da Funarte e a urgente reforma administrativa foram tema prioritário da construção da Política Nacional das Artes. As primeiras reflexões podem ser lidas no Relatório PNA, publicado no site da Funarte.

Você sempre foi uma atriz militante. Como é sair do “bloco” das demandas dos movimentos teatrais e ir para o outro lado, o da gestão pública? Como é olhar esses movimentos desde outra perspectiva?

Maria – Acho importante afirmar que assumi cargo como gestora em contexto específico, na convicção de que o que aconteceu com a cultura no Brasil a partir da gestão Gil/Juca, e os impactos dessa política nos estados e municípios, foi uma revolução. O que aconteceu no Brasil a partir da ampliação desse direito fundamental é de proporção incalculável. Houve uma revolução. Inclusão de minorias e de comunidades tradicionalmente excluídas. Falar do contexto é importante porque fui também gestora militante. Juca fala uma coisa que gosto muito: “Não somos o governo na cultura, somos a cultura no governo”. Além da ampliação do conceito, houve mudanças importantes na relação com a sociedade civil. Perseguimos modelos de participação social, mecanismos republicanos, democráticos, de acesso irrestrito e legislação específica com proteção ao bem cultural.

Mas enfrentamos internamente muitas dificuldades. Falta de institucionalidade, descontinuidades, restrição orçamentária, falta de estrutura. Impossibilidade de planejamento. Se por um lado avançamos muito, por outro, os avanços ainda são pequenos quando pensamos no campo e o que ele representa para o Brasil. Temos dificuldade de organizar a militância, a nossa base de mobilização social, para disputar publicamente. Por tradição, disputamos quando o calo aperta, quando precisamos batalhar pagamento de prêmios ou algo muito específico. Já a militância a longo prazo, o monitoramento de política e os debates são difíceis. Sentimos falta da presença constante do setor.

Nos nossos dias é quase impossível não fazer uma leitura de gênero das questões no meio político. Ser mulher, mãe e artista num cargo de gestão significa também lidar com questões dessa natureza?

Maria – Escrevi recentemente: “A quem interessa a investida sistemática e programada contra a mulher, senão ao patriarcado, ao machismo e ao capitalismo? Não haverá justiça social enquanto não combatermos com coragem e veemência a iniquidade étnico-racial e de gênero”. A cultura tem o papel, o desafio de ser vanguardista. Ela é responsável pela constituição de imaginário. Precisamos de representação. Democracia se constitui na presença dos diferentes, em diálogo. E ainda somos poucas. Não foram poucos os desafios que enfrentei ao chegar ao Rio para assumir um cargo público com duas crianças pequenas. Desafios que não são nada perto do que mulheres pobres e negras enfrentam todo dia. Precisamos avançar. Mas, por outro lado, sabemos que é forte e potente a presença das mulheres nas ruas e em todas as principais disputas de direitos. Estamos juntas e firmes na defesa da democracia e de direitos.

Você é neta de um ícone da história brasileira na luta contra a ditadura militar. Como tem sido vivenciar o momento político que culmina na sua saída da Funarte depois de apenas um ano de trabalho?

Maria – Ser neta de Marighella é uma sorte. Eu poderia ser neta de muita gente, né? (Risos). Na Bahia ser neto(a)… Mas ser neta de Marighella me deu uma fé inabalável na política. Acredito na política, na resistência, na democracia, nas transformações que podem surgir da formação política de um povo. Sei também que a História é implacável e que estamos fazendo História. Acho fundamental o papel que artistas e setores diversos da cultura estão exercendo na defesa da democracia. A cultura hoje está na centralidade da agenda progressista do Brasil. Uma agenda que defende direitos culturais, culturas identitárias, os feminismos, a cultura anti-homofóbica. Que defende as culturas populares e tradicionais, os povos indígenas e de terreiro. A cultura de periferia. A cultura de paz, numa disputa acirrada com a cultura fascista e de ódio crescente no país. Isso é inédito, mas conversa com as lutas tradicionais por direitos. Um novo tecido social está se formando a partir da cultura e, junto a movimentos sociais tradicionais, pode e deve construir uma pauta de desenvolvimento de futuro. Temos muito a fazer.

Diretor, performer, pesquisador e professor de teatro. Mestre em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Licenciado em Artes Cênicas pela UnB. Fundador e diretor do grupo brasiliense Teatro do Concreto. Atuou como docente na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (2004 a 2011). Tem artigo publicado na revista Sala Preta (ECA-USP); Subtexto (Galpão Cine Horto-MG); Textos do Brasil (Ministério das Relações Exteriores-DF). Consultor da série Linguagem teatral e práticas pedagógicas, da TV Escola. Além disso, colabora com alguns festivais como debatedor.

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