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Crítica

Para não repetir a História

23.9.2016  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Paulo Amaral/Festivale

Em junho de 2013, centenas de cidadãos tomaram as ruas para protestar contra cortes no orçamento da saúde e da educação e ainda contra a alta taxa de desemprego que já obrigara 200 mil pessoas, 5% da população, a deixar o país em busca de trabalho. A forte recessão tinha origem nas medidas econômicas do governo que assumira o poder há dois anos, e cujo ato primeiro havia sido a extinção do Ministério da Cultura, antes mesmo de tomar posse, em 2011.

Qualquer semelhança talvez não seja mera coincidência. O parágrafo acima refere-se a Portugal – matriz de nossa cultura – e só começou a ser alterado em 2015, quando os partidos da coalisão de centro-direita responsáveis por tal quadro perderam a maioria nas eleições legislativas. Mesmo assim, em uma tentativa de golpe parlamentar, foi empossado um primeiro ministro da direita, derrubado 11 dias depois, por evidente ilegalidade. Desse panorama brotou o espetáculo No limite da dor, com a Cia. Lendias D’Encantar, sediada na cidade portuguesa de Beja.

O teor dos depoimentos, evidentemente escolhidos com cuidado, permitem ao espectador realizar o trânsito entre o privado e o público, não apenas pelo grau de consciência dos presos, mas também pela distância temporal

No caso dessa montagem, que alia alta densidade poética com base documental, é relevante o contexto sociopolítico que lhe dá origem em especial quando é apresentada no âmbito da programação do 31º Festivale, que tem como tema curatorial Teatro e Democracia. Não existe arte a-histórica, toda categoria artística tem a cultura como origem destino. Aspecto ainda mais preponderante no teatro devido à efemeridade que lhe é intrínseca.

No limite da dor é fruto da percepção dos artistas dessa companhia portuguesa de que algumas feridas voltavam a ser abertas diante da atmosfera de medo de um possível retorno de um regime ditatorial. O último durara 41 anos, de 1933 até a celebrada Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974, período em que milhares de cidadãos foram torturados e mortos pela polícia do chamado Estado Novo, implantado por Antonio Salazar. Porém é sempre bom lembrar que nenhum sistema político se instaura sem base de sustentação. Com Salazar não foi diferente. Houve apoio da elite econômica e dos incautos que acreditaram na promessa de estabilidade econômica. Os que perceberam o que viria, resistiram, e enfrentaram dura repressão. São deles as vozes nesse espetáculo.

António Revez ecoa minoria resistente em 'No limite da dor'Divulgação

António Revez ecoa minoria resistente em ‘No limite da dor’

A percepção de que a História poderia se repetir em pleno século XXI levou alguns ex-presos políticos portugueses, todos sobreviventes de torturas nos porões da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), a dar entrevistas para um programa da rádio Antena 1. “A maioria nunca havia falado, silenciaram durante anos, porque eram memórias doloridas demais”, comentou a atriz Ana Ademar na conversa promovida pelo Festivale com os espectadores logo após apresentação no Teatro Municipal de São José dos Campos. Mas diante da nova ameaça, essas pessoas decidiram falar movidas pelo desejo de que o conhecimento do passado pudesse evitar uma nova tragédia no futuro.

A compilação desses depoimentos resultou no livro No limite da dor – a tortura nas prisões da PIDE, de Ana Aranha e Carlos Ademar, base para essa montagem teatral dirigida pelo cubano Julio César Ramírez, em 2014, parceiro de outras empreitadas da companhia portuguesa que, a exemplo do grupo brasileiro Galpão, de Belo Horizonte, é formada apenas por atores, sem um diretor fixo. Não poderia ser mais pertinente a passagem desse espetáculo lusitano pelo Brasil de hoje. O grupo já se apresentou nas cidades de Nova Lima, em Minas Gerais, Teresina, no Piauí, e Salvador. A turnê brasileira chega hoje a São Paulo em sessão única no Espaço dos Satyros Um.

No palco, a dupla Ana Ademar e António Revez assume as vozes de quatro ex-presos: Georgina, uma estudante mal saída da adolescência; Luís Moite, um padre progressista; e do casal Conceição e Domingos, militantes do Partido Comunista Português, vivendo na clandestinidade à época de sua captura. A iluminação baixa, quase penumbra, e a cenografia de poucos elementos – duas grandes portas metálicas gradeadas, um par de cadeiras e um espelho ao fundo – remetem à atmosfera de isolamento e vigilância das masmorras, em contraponto com a serena coloquialidade dos depoimentos, recriados em interpretações elaboradas em chave da contenção emocional, sem que isso resulte em perda de intensidade.

Passar ao largo do tom da confissão de divã (cujo objetivo seria reviver a experiência num processo de trabalho individual da dor) é escolha estética que tem como efeito neutralizar a catarse por identificação psicológica. Por outro lado, evita-se também a bravata, a autocomiseração, a vitimização ou a heroicização. No teatro, menos quase sempre é mais. Ao secar a cena em vez de encharcá-la de lágrimas, gritos ou sentimentalismos – fossem fruto da humilhação e da dor, fossem do consequente ódio aos carrascos – os atores ampliam o espaço de escuta para além das possíveis divisões ideológicas da plateia, e concentram o foco sobre a questão da dignidade humana aviltada.

Vale ainda ressaltar o modo como silenciam a voz do entrevistador, sem eliminá-la de vez. Os atores falam diretamente para a plateia na maior parte do tempo, mas é quase possível ver que falam para alguém que os interroga. Fosse outra a linguagem, mais agressiva, e o espectador seria remetido à situação de origem. Mas a chave é a do diálogo e atmosfera que se instaura abre espaço para que a plateia trabalhe mentalmente suas próprias interrogações.

O teor dos depoimentos, evidentemente escolhidos com cuidado, permite ao espectador realizar o trânsito entre o privado e o público, não apenas pelo grau de consciência dos presos, mas também pela distância temporal. Se por um lado os torturadores nunca foram punidos, por outro a História demonstrou à grande maioria dos portugueses que a avaliação daquela minoria resistente, mesmo feita no calor dos acontecimentos e em tempos de ânimos exaltados, estava correta afinal.

– Escrito no contexto do 31º Festivale – Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba, em São José dos Campos, de 2 a 11 de setembro de 2016

Serviço:
No limite da dor
Onde: Espaço dos Satyros Um (Praça Franklin Roosevelt, 214, tel. 3258-6345)
Quando: Sexta, 23/9, às 21h
Quanto: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)
Capacidade: 70 lugares

Turnê brasileira:
Estão programadas ainda apresentações em Itu (22/9), Santa Maria – RS (1º e 2/10) e Rio de Janeiro (5 e 6/10).

Ficha técnica:
Autoria: Textos baseados em livro de Ana Aranha e Carlos Ademar
Encenação e cenário: Julio César Ramírez
Com: Ana Ademar e António Revez
Figurino: Ana Rodrigues
Luz: Ivan Castro
Trilha: João Nunes
Duração: 60 min.
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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