O Diário de Mogi
17.2.1994 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Quinta-feira, 17 de fevereiro de 1994. Caderno A – capa
A peça de Gerald Thomas, que encerra a trilogia da B.E.S.T.A., hesita entre surpresas e decepções
VALMIR SANTOS
Agonia é o que não falta em “UnGlauber”, a peça do diretor/autor Gerald Thomas, que encerra sua trilogia da B.E.S.T.A. (Beatificação da Estática Sem Tanta Agonia). Da masturbação existencial da condição do ator, até a mutilação corporal (o sangue jorra em quase todo o espetáculo), o que se denota é um encenador na busca desesperada de chão (ou de céu).
“UnGlauber” é tão ‘working in progress’ quanto “O Império das Meias-Verdades”. Mas agora os personagens ganham mais personalidade, mais voz. Aliás, em comparação aos últimos trabalhos, nunca se falou tanto numa peça de Thomas. Na tentativa de ampliar o canal de comunicação com o público, ele passa a dar mais valor à palavra, ao diálogo.
Mas a linearidade ainda está longe. O texto continua embutindo resquícios de fragmentação. O que não implica estorvo, mas um estilo de linguagem de Thomas.
Em “UnGlauber”, se encaixa melhor a especulação em torno da função do ator, da psicologia à cena propriamente dita, do que à pretensa tematização da geração pós-Glauber Rocha, o cabeça do Cinema Novo nos anos 70. Novamente em off, Thomas disseca a presença desse elemento orgânico dentro do teatro, filosofando, sobretudo, em relação às suas “fraquezas” – capaz de “vender” até a mãe.
Nesta primeira fase, “UnGlauber” (título que literalmente significa “descrente” em alemão) apresenta necessidade de acertos. A impressão é a de que o encenador abriu exceções em relação à atuação dos atores, ao fim da abstração do cenário sem, contudo, se desvencilhar da fumaça, do artificialismo (há um ‘ratazana’ eletrônica que passeia no palco), da onipresença da sua própria voz em off.
Com essa transição, Thomas talvez tenha perdido um pouco a visão do todo; do conjunto das cenas. Isso diminui o acesso à compreensão do espetáculo; ou ao menos ao que a história sugere. O aplauso frouxo da platéia, ao final, é um indício.
Dentro do seu processo de metamorfose – quando anuncia o deslumbramento de uma nova concepção cênica, perseguindo um teatro de essência, de poesia até -, Thomas já certa, em princípio, no que respeita ao seu ator. A principal novidade de “UnGlauber” é o desprendimento do elenco de uma estética opressora. As interpretações de Luiz Damasceno, Edílson Botelho, Ludoval Campos e mesmo a da atriz convidada da Cia. De Ópera Seca, Vera Zimmermann, confirmam a mudança.
Fernanda Torres, que atuou em “The Flash And Crash Days” e “O Império…”, deixa o palco para assinar um figurino. No mínimo, convencional. Entre surpresas e decepções, “UnGlauber” fica em cima do muro. E a maior evidência da fase atual de Thomas está nos versos do samba de Paulinho da Viola, que faz parte da trilha sonora da peça: “Quando um poeta se encontra sozinho num canto qualquer do seu mundo, vibram acordes, surgem imagens, soam palavras, formam-se frases”.
UnGlauber – Texto e direção: Gerald Thomas. Com Cacá Ribeiro, Milena Milena, Eleonora Prado, Domingo Varela e outros. De quarta a sábado, 21h; domingo, 20h. CR$ 2,4 mil e CR$ 1,2 mil. Teatro Sesc Pompéia (rua Clélia, 93, tel. 864-8544). Até dia 27 de fevereiro.
Estréia a versão gaúcha de “Decameron”, em SP
Um dos melhores espetáculos da temporada gaúcha de 1993 estréia, em São Paulo, amanhã. “Decameron”, a obra-prima de Giovanni Boccaccio (1313-1375) é encenada pela Cia. Teatro di Stravaganza, com o elenco de quatro atores interpretando em italiano. A idéia é explorar o ritmo e a sonoridade desta língua.
Os atores Adriane Mottola e Luiz Henrique Palese fizeram a adaptação. Na história original de Boccaccio, dez jovens refugiam-se da peste que assola Florença no ano de 1348. Eles narram histórias de amor num local solitário. Já no enredo de Adriane e Palese, uma companhia mambembe chega a Florença. Seus atores são comediantes que apresentam um espetáculo com sete histórias de amor e sexo, celebrando a alegria, o prazer e a capacidade de manter o bom humor diante de tempos tão difíceis. Palese também assume a direção da peça.
O “Decameron”, da Cia. Di Stravaganza, extraiu sete das cem novelas que Boccaccio escreveu em sua obra-prima. São elas: “A Peste”, “O Mudo no Convento de freiras”, “O Feitiço Que Transforma Uma Bela Jovem em Égua”, “Servir a Deus é Mandar o Diabo ao Inferno”, “Caterina Com o Rouxinol da Mão”, “O Amante no Barril” e “Casais Muito, Muito Amigos”.
A hipotética companhia medieval utiliza um carroção-palco, a “caixa-mágica” para levar seu teatro às praças e palcos de todas as cidades do mundo. Para tanto, foi montado em carroção com 6,40 metros de comprimento, 2,40 metros de largura e 3,60 metros de altura. As cenas de “Decameron” acontecem no piso do teatro, dentro da carroça ou sobre seu teto.
O elenco se preparou com técnicas circenses (bufões, máscaras, acrobacia, malabarismo, etc.). A Cia. Teatro do Stravaganza foi criada há seis anos. Tem a proposta de divulgar a cultura italiana. Ano passado, montou, também, “O Rei Nunca Riu”, baseada em Ítalo Calvino. Com 50 apresentações, “Decameron” ganhou o Troféu Scalp Teatro, no Rio Grande do Sul, e o Júri Popular do Festival Isnard Azevedo, de Florianópolis (SC), ambos de melhor espetáculo. A montagem entra em cartaz em São Paulo, depois de curta temporada no Rio.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.