8.3.2010 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi, sem data. Caderno A – capa
VALMIR SANTOS
O espírito da brincadeira em “Nas Trilhas da Transilvânia”, o esboço, um ano atrás, está presente no primeiro ato de “Drácula e Outros Vampiros”, título da montagem agora em cartaz em São Paulo. Antunes Filho, aos 67 anos, libera sua verve juvenil no novo espetáculo.
Com um elenco repleto de adolescentes, a sensação é de que estamos acompanhando um bando de estudantes aprontando das suas num playground de horror e riso.
De fato, na primeira parte, com exceção do transe efêmero provocado pela vibração dos movimentos dos atores, adaptado de uma dança de Bali (kecak), não há indícios de um trabalho do qual o público assimile imediatamente se tratar da assinatura do diretor, um mestre da cena brasileira.
Um Antunes surpreendente e aventureiro é o que desponta nesta montagem do Centro de Pesquisa Teatral (CPT). A começar pelo peso do tratamento visual em cena. Parênteses para a equipe de J.C. Serroni, com um cenário entranhado no mito do vampiro, sobretudo nas texturas. Idem para o tratamento de sombra na iluminação de Davi de Brito.
No início, muito gelo seco ao som de Black Sabbath. A competente trilha sonora de Raul Teixeira é crucial nas passagens em que a atmosfera, a instalação do clima (gótico ou passional, com direito a tango), importa mais do que propriamente o jogo interpretativo.
Sim, o ator que Antunes sempre colocou em primeiro plano, surge aqui diluído. O álibi talvez fique por conta da safra de novatos, a maioria com “bagagem” de apenas quatro meses de CPT.
Resta a investida no coletivo, na “coreografia” de palco que o diretor domina muito bem. O deslocamento dos coros (Mortos-Vivos, Comitê de Recepção e Dracula’s Club, por exemplo) se dá harmoniosamente no espaço cênico.
Antunes inverte a expectativa para trazer à tona o “trash” que assume em sua formação. Permite-se revelar um outro lado criador – mais anárquico, por que não? É escancarado o ar patético com o qual constrói o Drácula interpretado por Eduardo Cordobhess. Um Drácula palhaço.
No segundo ato, volta o encenador-cabeça. E “Drácula e Outros Vampiros” diz a que veio. Entra em cena a metáfora da burguesia sanguessuga e da direita extremista que avança à beira do próximo milênio. A síntese do espetáculo demora, mas aparece: a cena em que Drácula é convertido em Hitler, emoldurado no esquife, discursando raivosamente. A intolerância está na ordem do dia.
Mas não é o arremate antuniano que se esperava. Apesar das várias citações (o coreógrafo Kurt Jooss, a cineasta Leni Riefenstahl, o escritor Baudelaire), a peça resulta uma metáfora pálida. Nem Sepultura, ao final, dissimula a frustração. A concepção da montagem que fruía na cabeça de Antunes quando da conversa com os jornalistas, na véspera da estréia, prometia mais encantamento e fúria.
DRÁCULA E OUTROS VAMPIROS – Concepção e direção: Antunes Filho. Com Grupo Macunaíma (Lulu Pavarin, Geraldo Mário. Ludmila Rosa e outros). Quarta a sábado, 21h; domingo, 19h. TEATRO SESC ANCHIETA (rua Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 256-2281). R$ 16,00 e R$ 20,00 (sábado). 75 minutos
25.10.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 25 de outubro de 1998. Caderno A – 4
Montagem da Cia. Folias D’Arte aposta na transformação pela ética
VALMIR SANTOS
São Paulo – De Fellini, o espírito libertário. Do brasileiro anônimo, a sobrevivênCia. Em ambos, enfim, a resistência. “Folias Fellinianas” chacoalha as bases do país, expõe suas chagas e imediatamente celebra a ética, em todas as suas instâncias, como única possibilidade criativa e transformadora para os tempos que correm.
Quem, afinal, em sã consciência, pode compartilhar da pregação rasteira de que “ética demais atrapalha”? Como exercer a cidadania com a bandeira do “rouba, mas faz”? “Folias Fellinianas” questiona tudo isso sem xenofobismo de araque. Faz um grito de alerta para esse Brasil neoliberal e globalizado que vem invertendo absurdamente os mínimos valores. A fala de um dos personagens é suprassumo: “Integridade, em tempos de crise, é crime”.
A montagem da Cia. Folias D’Arte atualiza o engajamento do teatro brasileiro nos anos 70, quando o “inimigo”, o regime militar, era mais visível. O suporte agora está fundado não exatamente na política, mas no ser humano, na figura dos milhões marginalizados socialmente e, ainda assim, depositários de esperanças a perder de vista.
Tampouco se prega o discurso direcionado dos Centros Populares de Cultura (CPCs), no auge da União Nacional dos Estudante (UNE). Os tempos são outros. No espetáculo, o conteúdo político-ideológico é emoldurado pela alegoria, pelo vôo dos artistas.
Evoca-se o espírito mambembe, a comédia de arte, o musical, a festa popular, a poesia cantada, o painel suspenso que retrata a história do povo como nos murais de Torres García, enfim, a matéria-prima é toda ela composta do ato de criar, de transcender para derrubar os “muros”, para “salvar o sonho”.
“Folias Fellinianas” cita Euclydes da Cunha, Castro Alves, Joãosinho Trinta, entre outros, para reciclar as memórias vivas. Aqui, os personagens não têm identidade. O Diretor (Guilherme Sant’anna), a Produtora (Nani de Oliveira), a Jornalista (Patrícia Barros), o Brasil (Rogério Bandeira), o Velho (Valdir Rivaben), a Mãe (Saryda Andara), o Rapper (Edgar Bustamante) e o Anjo Branco (Fernando Correa) patinam em suas perspectivas a curto, médio ou longo prazo.
Reunidos por acaso em torno da gravação de um filme, eles serão mobilizados pela presença de Ninguém (Renata Zhaneta), um mensageiro incumbido de entregar cartas, a pedalar por aí em sua bicicleta.
O texto de Reinaldo Maia, gestado em processo com o elenco, concede a Ninguém o tesouro a ser cobiçado: a plenitude de uma ética pessoal coerente com o mundo que o cerca; uma fluência de viver em contraste com o final de século acelerado. A saída está no indivíduo e não na nação.
Esclarecidas as partes, tem início a canibalização de Ninguém, alçado à condição de “santo” graças às visões que têm por conta de uma dor de cabeça intermitente, pela qual roga apenas uma aspirina – mas lhe receitam a “canonização”.
O circo de horrores, com tintas neo-realistas, apresenta desde números sensacionalistas, como as irmãs siamesas (na sugestão para acabar com a fome, uma come o que a outra defeca, ciclo da miséria), até culminar com a morte de Ninguém, queimado vivo tal qual o índio Galdino Jesus dos Santos.
É um espetáculo que não dá um soco no estômago e nem rouba o chão do espectador. Simplesmente não ignora a história que passa diante dos olhos de quem está disposto a ver. Ao peneirar o passado para constituir seu presente com verdade, “Folias Fellinianas” estabelece uma ponte contundente, porque embalada com o talento dos seus artistas.
Renata Zhaneta está à vontade no papel masculino de Ninguém. Arma a voz e o corpo com desenvoltura, é tranqüila na passagem interativa com a platéia. Extrai magia na relação com a bicicleta, curiosamente o veículo que equilibra o personagem no chão da razão ética.
Guilherme Sant’anna não fica atrás com seu Diretor histérico, ganhando a empatia instantânea do público. As demais atuações também envolvem com criatividade. Uma ressalva para Rogério Bandeira (Brasil), com matizes remanescentes de “Cantos Peregrinos”, o que limita as possibilidades mil do personagem.
Na estréia, quarta-feira passada, “Folias Fellinianas” ressentia-se ainda, aqui e ali, de um excesso de retórica no texto. São algumas reiterações, dico tomias (bem x mal, solidários x mercadores da alma) que terminam por dispersar a atenção do espectador.
O que fica, porém, é a coerência estética e ideológica da Cia. Folias D’Arte e do seu diretor, Marco Antonio Rodri gues. Como em “Verás Que Tudo É Mentira” (1994), depois em “Cantos Peregrinos” (1997), trata-se de um projeto que elege a arte popular, em sua excelência, como veículo de formação de um público de teatro mais crítico e, por extensão, de seres humanos mais dignos com seus papéis na sociedade.
“Sonhar, viver, criar”, esse é o espírito. Pode haver engajamento mais honesto?
Folias Fellinianas – De Reinaldo Maia. Direção: Marco Antonio Rodrigues. Direção Musical: Sérgio Villafranca. Cenografia: Fernando Monteiro de Barros. Figurino: Atílio Belline Vaz. Preparação corporal e circense: Mariana Maia. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Aliança Francesa (rua General Jardim, 182, Vila Buarque, tel. 259-0086). R$ 10,00 (quinta) e R$ 20,00. Duração: 120 minutos. Até final de novembro. Apoio: Fundação Conrado Wessel.
Rodrigues dirige 4 peças
São Paulo – Com “Folias Fellinianas”, Marco Antonio Rodrigues soma quatro peças na atual temporada paulistana. Andrade (leia crítica abaixo)
O musical “Cantos Peregrinos”, de José Antônio de Souza, está em cartaz há um ano e meio, agora no Teatro Ruth Escobar, com a Cia. Folias D’Arte.
A comédia “O Assassinato do Anão do Caralho Grande”, de Plínio Marcos, que estreou há um ano, fica até hoje no Sérgio Cardoso, interpretada por 35 atores oriundos da Oficina Cultural Oswaldo de Andrade (leia crítica abaixo).
E a tragédia “Senhora dos Afogados”, de Nelson Rodrigues é encenada por alunos recém-formados no Teatro-Escola Célia Helena, onde, permanece em cartaz.
“É uma coincidência feliz poder trabalhar com essa gente que praticamente forma uma família, no bom sentido”, diz Rodrigues. “Para nós o teatro nunca deixou de ser engajado”
A Cia. Folias D’Arte tem cinco anos. Entre as montagens anteriores destaca-se “Verás que Tudo é Mentira” (1994), de autoria de Maia.
Senhora dos Afogados – Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Escola Célia Helena (rua Barão de Iguape, Liberdade, tel. 279-0470). R$ 10,00. Até dia 15.
Cantos Peregrinos – Sexta e sábado, meia-noite. Teatro Ruth Escobar (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 289-2358). R$ 3,00 (consumação mínima).
“Assassinato…” traz atores sem vícios
São Paulo – O circo fala alto no peito do dramaturgo Plínio Marcos, 61 anos. Ele que já foi palhaço e tem no picadeiro a base para o fazer artístico. “Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que é por eles que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha que se valer da técnica mecânica”, encerrou assim o seu célebre manifesto “O Ator”.
Em “O Assassinato do Anão do Caralho Grande”, dos textos mais recentes (1996), o autor de “Dois Perdidos Numa Noite Suja” (1965) retoma a defesa orgânica do artista como ser em constante conflito com a sociedade em que vive.
Plínio sabe esquadrinhar o Brasil em que vive, O poder, em sua constatação mais medíocre, é representado pela prefeitura, pela justiça, pela mídia, na base da velha e viciada estrutura.
Do outro lado, a resistência humanista dos artistas. Aqui, representados pelos ciganos do Gran Circus Atlas. São trapezistas, acrobatas, enfim, gente que trabalha sob lona e sobrevive da magia de encantar o público.
Essa dualidade na forma de olhar a vida ganha relevo na montagem do diretor Marco Antonio Rodrigues, com jovens das Oficinas Culturais Oswaldo de Andrade. O espetáculo estreou em janeiro e encerra temporada hoje no Sérgio Cardoso.
Pelo caráter alegórico de “O Assassinato do Anão…”, um libelo à arte do circo, Rodrigues tem a seu favor a energia com a qual o grupo de 35 atores pisa no palco.
São interpretações despojadas e fundamentadas em pesquisa cênica que leva em consideração o corpo como instrumento crucial para desenhar personagens tão arraigados na cultura brasileira.
Fábio Ferretti (Dona Ciloca), Ireny Silva (Mãe Di), Nani de Souza (Zolá Manuche), Paulo Henrique (Macaco) e Denis Goyos (Bicha Lili), para citar alguns, têm seus personagens nas mãos. E são papéis no limite do estereótipo, felizmente recriados de acordo com o talento de cada um. (É louvável, por exemplo, a forma como Henrique coloca seu corpo e alma à disposição do seu Macaco, sem superficialidade).
O diretor costura a montagem com mão barroca. É minucioso na expressão dos atores, na ocupação harmônica do espaço, inclusive no plano aéreo. A cenografia (Atílio Beline Vaz) catalisa a cena com tranquilidade, transitando da periferia para o centro do palco sem prejuízo dos territórios dedicados ora ao “coro”, ora à atuação solo.
“O Assassinato do Anão…” consagra a força do ator jovem, despido de vícios, aberto para um novo com o qual dialoga de igual para igual, sem se apequenar. Isso quando o diretor – caso de Rodrigues – deixa.
O Assassinato do Anão do Caralho Grande – De Plínio Marcos. Direção: Marco Antonio Rodrigues. Cleber Toline, José Paulo Dantas, Ibrahim Lyra, Rodolfo Falcão, Mariana Maia, Natasha Rodrigues, Nei Gomes, Allan Benatti etc. Última sessão hoje, 20h. Teatro Sérgio Cardoso (rua Rui Barbosa, 196, Bela Vista, tel. 288-0136). R$ 10,00. Duração: 100 minutos.
Em comédia, Dip inspira reflexão
São Paulo – “Eu não quero mudar de computador, de você, de milênio!”, protesta a personagem de “Por Água Abaixo”, uma “comédia filosófica” escrita e interpretada por Angela Dip. Esta comediante de mão cheia condensa maturidade nesta que é das suas melhores aventuras pelo teatro, escrevendo e atuando com esmerado senso de inventividade e leveza.
A começar pela gênese do texto. Dip se inspira na história da professora de etiqueta e dança Annie Taylor. Em 1901, esta doidivanas desceu as Cataratas do Niágara (EUA), protegendo seu corvo com apenas um barril. Resultado: esconações, aqui e ali, e muita fama à custa da coragem.
Pois a atriz surge com um barril-cenário-figurino e, em torno desse objeto esférico, ela convida o público a embarcar nas desventuras de uma mulher desesperada à beira do milênio, em crise como todos, mas a apenas alguns minutos de se atirar da catarata.
Os queixumes vão desde a pêndega com Deus sobre a velhice, passam pela implicância com as regras gramaticais (notadamente os coletivos de “chinelos”, “cupins”, espelhando a busca da própria individualidade), enfim, e chegam aos protestos pela modernidade que impõe mais do que interage.
É com esse espírito desbravador que a mulher não se atribui um nome à personagem, conferindo-lhe um caráter universal pela média acaba rompendo totalmente com as noções de espaço, explorando todas as direções. “O chão não é o limite, é o teto”, filosofa.
Nesse movimento centrífugo, a mulher transforma-se em furacão de si. De outra forma, não conseguiria sair do marasmo, ir adiante para “viver, dorrmir, sonhar, quem sabe?”, como deixa claro o bordão da anti-heroína politicamente incorreta, chata e encantadora em sua transparência.
Angela Dip esbanja a segurança de uma Denise Stoklos em monólogo, corroborada pela direção de Vivien Buckup (“Para Sempre”, “Cenas de Um Casamento”), que a cada espetáculo afina sua relação com o trabalho de ator e, como conseqüência, o privilegia com equilíbrio. (Aliás, ressalta-se aqui o feminismo subliminar do texto).
A exigência corporal de Dip é atendida com muita técnica. “Por Água Abaixo” é uma montagem enxuta. Na sua brevidade de 50 minutos, estimula a reflexão com recursos iminentemente artísticos (a extremidade oposta da solidão) e, cereja no bolo, traz uma Angela Dip em estado de graça.
Por Água Abaixo – Texto e atuação: Angela Dip. Direção: Vivien Buckup. Sexta e sábado, meia-noite. Teatro Crowne Plaza (rua Frei Caneca, 1.360, Cerqueira César, tel. 289-0985). R$ 15,00. Duração: 50 minutos.
24.10.1998 | por Valmir Santos
No papel da esposa que morreu faz 30 anos, mas com quem o professor aposentado conversa no presente – a atemporalidade é outra característica marcante da peça, fundindo vários planos -, a atriz Mara Carvalho cumpre com elegância a brevidade que o papel lhe confere. Petrônio Gontijo, como o filho, é um contraponto um tanto melodramático, se comparado à performance suave de Fagundes – já se escreveu que o espetáculo é dele, pois não?
Homenagem a João Pacífico em CD
Amor filial às últimas consequências
A Rainha da Beleza de Leenane – De Martin McDonagh. Tradução: Adriana Falcão e Tatiana Maciel. Com Xuxa Lopes, Walderez de Barros, Chico Diaz e Marcelo Médici. Direção: Carla Camurati. Teatro Alfa/Sala B (rua Bento Branco de Andrade Filho, 722, Santo Amaro, tel. 5693-4000). Sexta, 21h; sábado, 19h e 21h30; domingo, 19h. R$ 30,00 e R$ 35 (sábado). Duração: 95 minutos. Até 19 de dezembro.
11.10.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 11 de outubro de 1998. Caderno A – 4
Inspirada na mitologia indígena, peça surpreende pelo despojamento e interpretações
São Paulo – O chamado teatro regional conquista cada vez mais espaço na cena brasileira. Desde os tempos de Ariano Suassuna (“Auto da Compadecida”), nos anos 60, até os dias que correm, ele vem descentralizando o foco do sotaque e dos cacoetes para alcançar um caráter mais universal, sem prejuízo das suas raízes.
Pode-se citar alguns encenadores que contribuíram, em maior ou menor grau, com leituras inovadoras: Antunes Filho (“Macunaíma”), Antonio Nóbrega (“Brincante”), Romero de Andrade Lima (“Auto da Paixão”), Carmem Paternostro (“Merlim”), Luiz Carlos Vasconcelos(“Vau da Sarapalha”), Nehle Frank (“Divinas Palavras”) etc.
Cada um em seu pedaço de chão (São Paulo, Salvador, João Pessoa, Recife, enfim) conceberam pesquisas de linguagem cênica que abriram flancos para o Brasil de dentro e, ao mesmo tempo, conectaram com o de fora, por obra e graça da sua eminência humana.
O espetáculo “Honorato”, em cartaz no Teatro Brasileiro de Comédia, filia-se a essa categoria de teatro regional que foge de facilidades como o diabo da cruz. Não foi à toa que seu diretor Paulo Ribeiro, sediado em São Paulo, levou pelo menos oito anos para chegar ao formato atual.
Ele também é autor do texto. Escreveu-o tomando como ponto de partida a lenda da Cobra Norato, garimpada pelo folclorista Luís Câmara Cascudo e vertida para o romance por Raul Bopp, dando origem à principal montagem do grupo mineiro Giramundo, comandado por Álvaro Apocalypse, outro pesquisador contumaz.
Ribeiro, ex-assistente de Vladimir Capella (“Píramo e Tisbe”), agregou outros elementos à história. O autor amplia a carga simbólica da mitologia indígena (Boto, Iara e Co bra Grande) criando elementos que têm o impacto das tragédias gregas.
Em “Honorato”, Joana Candiru (Selma Luchesi) é amante de Jaguarari (Eldo Mendes), um relacionamento que equivale à lenda amazônica do Boto, o homem misterioso que surge do nada, na calada da noite, e atrai as moças com seu olhar sedutor. Eles têm dois filhos, Honorato (Sandro Alvares) e Maria Caninana (Verônica Menezes). Como Jaguarari pertence a outra instância, coube a Joana Candiru dar conta da criação de sua prole.
São informações que chegam ao espectador num pêndulo sutil de flash backs. No presente, Honorato é um jovem encruzado com a maldição da Cobra Grande, o que lhe impede de viver como um ser humano comum. Na ânsia de libertar-se do estigma, ele conhece seu pai, Jaguarari, que lhe revela a fórmula para afastar a Cobra Grande.
Se Honorato enxerga no pai redivivo a chance de uma guinada, sua irmã tem uma posição o-posta. E ela, Maria Caninana, a propulsora de toda a tragédia.
Primeiro, esfaqueia a mãe. Depois, mata o, pai. Ao cabo de tanto sangue, é assassinada pelo irmão. Toda essa violência é deflagrada sem se apelar à visceralidade. Caminha-se pelo fio da fábula, do fantástico, sempre com precisão visual e interpretativa.
Como encenador, Ribeiro é econômico na medida em que a simplicidade torna-se um tesouro. Seus atores, jovens em maioria, são bem preparados. Entregam-se por inteiro a personagens difíceis, porque entranhados de uma cultura autóctone, distante das grandes cidades.
Selma Luchesi faz uma interpretação apaixonada de Joana Candiru. Aos 30 anos de carreira, a atriz domina as nuanças da mãe com parcimônia. Cristaliza a dor com controle absoluto, sem exagero.
Eldo Mendes também se destaca como Jaguarari, personagem calcado na imagem indígena. Nota-se a riqueza dos detalhes, da postura de um ser que brota da natureza e desconhece condicionamentos. Mendes, como Selma, como Ribeiro e como toda a equipe de “Honorato”, rezam a cartilha do instinto que a tudo move e a tudo pode – tal qual os personagens da históna.
É um espetáculo que emociona pelo brilho ingênuo e sincero, pela energia de atores como Renata Quintela (Joana jovem) e Daniel Alvim (Soldado de Cametá). Sem contar a encarnação primitiva do Pajé de Hizidio Carrigo.
Sandro Alvares, no papel-título, não chega a arrebatar, visivelmente pela pouca experiência de palco, jovem que é. Seu Honorato pode não envolver na medida dos demais personagens, mas demonstra fôlego, sobretudo nas passagens mais dramáticas.
Rogério Moura, autor da música original do espetáculo, também entra em cena como João, mas serve melhor ao músico do que ao ator.
(Inclusive, é um elenco que também canta letras de Geraldo Azevedo e Chiquinha Gonzaga, entre outros.)
Aliados aos intérpretes, estão Telumi Helen (figurinos) e J. C. Serroni (consultor visual) emoldurando uma atmosfera perfeita para uma peça que destrói completamente as noções de tempo e espaço. E sem a caricatura da floresta (o cenário desmaterializa-se e fica por conta da imaginação do espectador). Mais a iluminação de Giggio Deliberato, e a suspensão está completa.
“Honorato” dá visibilidade ao trabalho de Paulo Ribeiro, tim diretor que coloca o teatro em uma escala maior, recolhendo-se muito aquém do tom personalista cooptado por boa parte dos colegas. Afinal, quando um jovem diretor pesquisa durante oito anos para montar uma peça – descontados problemas estruturais -, é porque possui timing suficiente para penetrar o indevassável território do palco.
Honorato – Texto e direção: Paulo Ribeiro. Assistente de direção: Paulo Capovilla. Assistente de iluminação: Vanderlei Conte. Quinta a sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Brasileiro de Comédia (rua Major Diogo, 315, Bela Vista, tel. 3104-5523). R$ 10,00. Até 20 de dezembro.
‘Química’ de atrizes sustenta montagem
São Paulo – Não é a mesma coisa. Um, dois anos atrás, Rosi Campos dividia a cena com Zezeh Barbosa em “As Sereias da Zona Sul”. Era uma dobradinha afiada. Agora, a atriz volta ao cartaz com nova parceira, Cláudia Borioni. E a química se renova para melhor.
Na montagem anterior, a peça de Vicente Pereira e Miguel Falabella, também agora sob direção do último, promovia um encontro de duas atrizes de estilos se não parecidos, no mínimo próximos.
Era um embate que as nivelava e, de certa maneira, as continha em cena – uma em função de não ofuscar a outra, tamanho o poder de cena, e vice versa.
Com Cláudia, a mudança é significativa. Sua verve é mais sutil, de gestos pequenos, de olhares capciosos. Esse desequilíbrio sustenta o espetáculo, aqui numa versão visualmente mais “pobre”, comparada à anterior (no Teatro Hilton), ocupando aqui um teatro de poucos recursos, o Cacilda Becker, no bairro da Lapa, zona oeste paulista.
Até essa pressuposta pobreza é alçada ao mote de piada para “madames” Rosi e Cláudia deitarem e rolarem, a la Hebe e Ana Maria Braga. A química é perfeita. Nos quadros, num total de quatro, as diferenças físicas (uma é alta, outra baixa), bem como os estilos de interpretação, constituem combustão para deslanchar o humor.
“O Gabinete da Dra. Hully Gully”, o segundo quadro, cristaliza as “especialidades” de cada uma. Rosi, na pele da médica-monstro. Cláudia, como a pobre velhinha que tem dores no rim e vê seu órgão sendo cotado para venda.
São momentos hilários, onde a médica usa de todas as artimanhas – incluindo um gorila – para tentar convencer a velhinha da “venda”. Mas esta não se faz de rogada e quer saber tim-tim-por-tim-tim, num confronto surrealista.
À comédia ligeira de Pereira e Falabella, ainda que pesem seus escorregões racistas, sexistas – depois instituídos de vez no programa dominical “Sai de Baixo” -, Rossi e Cláudia acrescentam seus estilos marcantes. Soltas, à vontade, despachadas, elas convertem “As Sereias da Zona Sul” em entretenimento de alta voltagem cômica.
As Sereias da Zona Sul – De Vicente Pereira e Miguel Falabella. Com Rosi Campos e Cláudia Borioni. Elenco de apoio: Isabela Chiapetta e Carlos Pereira. Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Cacilda Becker (rua Tito, 295, Lapa, tel. 864-4512). R$ 10,00. Duração: 80 minutos.
11.10.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 11 de outubro de 1998. Caderno A – 4
Antunes Filho celebra humildade e sensibiliza em mais um exercício de palco com o CPT
VALMIR SANTOS
São Paulo – A espectadora questiona o elenco após a apresentação: “Qual foi meu papel nesta noite?” O que vim fazer aqui?”. A pergunta, perturbadora, sintetiza a experiência de “Prét-à-Porter 2”, mais uma empreitada de Antunes Filho à frente do seu Centro de Pesquisa Teatral (CPT/Sesc).
Como na versão primeira, que veio a público em março passado, não se trata de espetáculo, mas de “trabalho”, de “apresentação”. Tampouco corresponde a moldes como “happening”, “performance” ou “work in progress”. A melhor forma de compreender o novo Antunes Filho é, tal como ele, desarmar-se das verdades estabelecidas; é arriscar-se em busca da simplicidade, o que é extremamente complexo em se tratando da natureza humana.
Foram deixados de lado os “truques”, “macetes”, tudo a favor da essência da interpretação, da dramaturgia, da concepção estética, enfim.
Em sua franqueza e despojamento, “Prét-à-Porter 2” desconstrói para reerguer a poesia cênica desbotada no balaio pós-pós.
Sob o primado absoluto do ator, a quem delega o poder da criação em instância maior – e advogando para si a capa de coordenador, não mais diretor -, Antunes vive um hiato dos mais produtivos.
Ele está nu, cercado por jovens em seus primeiros passos no teatro e com toda a energia redobrada para erguer e destruir coisas belas. É sob essa condição transitória que se deve ir ao Sesc Consolação. O encenador escolheu um caminho radical e horizontal que vai de encontro ao público pela via do avesso.
É como se estivéssemos detrás da coxia, contemplando as tentativas, os erros, os acertos. Tal procedimento não constitui propriamente novidade no teatro, mas surpreende por causa do quilate de um Antunes. Aqui, a ruptura é total.
Antes de cada cena – sempre interpretadas por duplas -, os atores fazem a chamada “gênese” do personagem, espécie de resumo biográfico que situa o espectador na ação que virá a seguir.
A eliminação simbólica do vão entre palco e platéia, por conta da proximidade da semi-arena montada no hall do Sesc Consolação, transcende ao espaço e é refletida na atuação, no texto, na cena como um todo. Daí o impacto do público diante da experimentanção, do não-espetáculo que instiga tanto quanto.
“Prét-à-Porter” sustenta-se sobretudo pelo modo como sua dramaturgia é levada à cena. Fica claro que a construção do texto e o trabalho de voz (ainda incipiente, mas há anos-luz da realidade dos intérpretes brasileiros) ganharam status de bola da vez no CPT.
São histórias curtas, não necessariamente interligadas. Desesperados, angustiados, presos no porão da consciência, perambulando alhures, seus personagens se (des)equilibram no limite da existência.
Há o tempo interior, o silêncio, a palavra introjetada e depois reverberada com peso beckttiano. Como no excerto de um diálogo em “Horas de Castigo”.
ELE – Onde é que a gente está quando não está dentro da nossa cabeça?
ELA – Fora da cabeça…
ELE – Não, a gente não está.
ELA – É.
O diacho é que, amiúde distanciamento, naturalismo, enfim, há momentos em que a emoção nos captura a lembrar que, na essência humana como ela é, ou no teatro sem filtro, nada subverte a condição de seres vivos no contato olho a olho, corpo a corpo.
Lianna Matheus, Sílvia Lourenço, Emerson Danesi, Luiz Pãetow e Sabrina Greeve exercitam seus textos com segurança. São atores, são autores, são personagens, são discípulos-teen do “mestre” Antunes e, no entanto, não esmorecem diante de tanta responsabilidade. Ao contrário, levam a caravana com coragem.
Incomoda, porém, um certo ar etéreo nas interpretações, uma frieza atribuída ao tratamento naturalista que está em xeque. (Mas lembre-se: não estamos diante de um espetáculo).
E ainda que a razão nos guie pelo “contrário” do projeto – o público é instado, desde o início, a cumprir seu papel de coadjuvante, inclusive retirando-se da sala a cada intervalo -, ainda assim, não há como se esquivar do envolvimento.
Somos cúmplices incondicionais dessa cruzada anti-naturalismo que faz justamente uso do seu duplo. É a contramão do entretenimento comezinho, da expiação midiática que bloqueia os sentidos e dessensibiliza a todos.
Antunes Filho está decantando os jovens atores perante os olhos de um espectador acuado pela desaceleração cometida em cerca de três horas. Com voz para opinar/desabafar ao final, o público é assim demovido da violenta passividade desse final de milênio. E aí, é amar ou odiar – jamais a indiferença.
São privilegiados aqueles que perscrutam o exercício de palco “Prét-à-Porter 2” e sentem seu pulso. É o chamado geral de quem há pouco girou em torno de si em “Gilgamesh”, mas não atingiu o eixo; pôs os bichos para fora em “Drácula”, mas não seduziu; e agora, em mais um zero a zero, celebra a humildade para encarar a tragédia grega (“Fragmentos Troianos”?) que vem por aí.
Prét-à-Porter – Criação coletiva dos atores do CPT. Coordenação: Antunes Filho. Sábado, 19h50. Sesc Consolação/Hall de Convivência (rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 234-3077, após 13h). R$ 10,00 e R$ 5,00 (comerciários e estudantes). Duração: 180 minutos. Até dezembro.
“Giramundo” homenageia Myrian Muniz
São Paulo – O colega Marcos Caruso (“Porca Miséria”) lhe atribui, apropriadamente, um “humor paulista de sotaque italiano”. De fato, é a veia da comediante que ganha relevo nos 40 anos de carreira da atriz Myrian Muniz, celbrandos agora com o lançamento de uma espécie de “biografia associada”.
Organizado por Maria Thereza Vargas, o livro “Giramundo – Myrian Muniz, o Percurso de Uma Atriz” percorre os seus melhores momentos no palco, na TV, no cinema e na sala de aula, sob a ótica dos amigos que somou ao longo do caminho. Claro, também foi recolhido um rico depoimento da própria.
Apesar da relutar inicialmente à homenagem, recolhendo-se à sombra das aulas do curso que ministra na Capital, Myrian, 66 anos, acabou cedendo ao projeto de Maria Thereza (também autora da biografia de Cacilda Becker, em parceria com Nanci Fernandes, e no momento preparando uma retrospectiva dos últimos 20 anos do Oficina, hoje Uzyna Uzona, de Zé Celso.
“Giramundo” reúne artigos de diretores, atores e ex-alunos de Myrian Muniz. A arte de ensinar interpretação continua rendendo bons momentos para a atriz. Ela já deu aulas na Escola de Artes Dramáticas (EAD), onde também formou-se sob a batuta do lendário Alfredo Mesquita; foi uma das fundadoras da Escola Macunaíma; e há 15 anos inspira atores nas salas da Funarte, no Santa Cecília.
Passaram pelas suas mãos, por exemplo, Paulo Betti, Eliane Giardini e Cristina Pereira. Os três têm seus depoimentos registrados no livro. Também estão lá os diretores Gianni Ratto, Gianfrancesco Guarnieri, Fauzi Arap, Marcos Caruso, Augusto Boal, Carlos Alberto Soffredini, mais a cineasta Ana Carolina, que, por assim dizer, “monopolizou” o talento de Myrian na tela grande (“Mar de Rosas”, “Das Tripas Coração”, sendo que o próximo, “Páscoa em Março”, estréia ano que vem).
Na TV, o colega Juca de Oliveira lembra sua presença no seriado “Nino, o Italianinho” (1969), onde Myrian roubava a cena na pele de Dona Benta.
Da Bruxa Caolha de “A Bruxinha que Era Boa” (1962), de Maria Clara Machado, até a Michelina de “Porca Miséria” (1993), é no teatro que Myrian fez as pazes com a vida. É a paixão maior, que aprendeu a cultivar nas suas passagens pelo Oficina, TBC e Arena – e continua disseminando no coração dos jovens aspirantes do palco, a despeito de todas as dificuldades de ontem e de hoje.
A organizadora Maria Thereza Vargas escalou um time coeso, dando um tratamento confessional e ao mesmo tempo longe da reverência óbvia.
Com uma diagramação arejada, corroborada por um excelente álbum fotográfico (são 52 imagens), que pontua os artigos do início ao fim, “Giramundo” testemunha o que Myrian Muniz faz e continua fazendo pelo teatro brasileiro. Felizmente, sublima mais a vida que está aí, em curso, do que a efeméride, regra editorial (quiçá, cultural) no País.
Giramundo – Myrian Muniz, O Percurso de Uma Atriz – Organização de Maria Thereza Vargas. Lançamento da Editora Hucitec (tel. 240-9318 ou 543-0653). 198 páginas. R$ 30,00.
Atriz ensina jovens há 25 anos
São Paulo – O curso de interpretação teatral com a atriz Myrian Muniz já tem uma tradição de 25 anos. Depois de passar pela EAD, Sesc, Macunaíma, ela agora dá aulas na Funarte.
Além de dotar os alunos com as ferramentas básicas do teatro, o curso trabalha passo a passo a montagem de um espetáculo através de improvisações, jogos dramáticos, pesquisas de textos, palestras sobre temas específicos, leituras de mesa, desenhos, figurinos, cenários, iluminação etc.
Curso de Interpretação Teatral Myrian Muniz – Segundas e terças, das 20h às 23h. Funarte (Alameda Nothman, 1.058, tel. 3662-5177). Matrícula. R$ 50,00; mensalidade, R$ 150,00.
13.9.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 13 de setembro de 1998. Caderno A – 4
Montagem de Beth Lopes, com Regina Braga, traduz força e lirismo do drama de Tennessee
VALMIR SANTOS
São Paulo – Há Tennessee Williams (1911-83) para todos os gostos. Pode-se encarar seus textos a partir da bruma indelével da superfície. Pode-se mergulhar mais fundo e deparar com seres atordoados pela existência. E neste patamar, ora rastejando, ora reunindo força para dobrar o destino, que se vai enxergar nos olhos e tocar na alma dos seus personagens.
Em cartaz no Teatro Faap, a história de “À Margem da Vida” (44) se passa no plano baixo, o subsolo, espaço imaginário compreendido entre o asfalto e o teto de uma ponte. Para vir à público, no palco, a família Wingfield precisa descer as escadas de um cenário cinza e impessoal, como as paredes de concreto dos túneis do metrô.
Frieza e distanciamento visual conferem com o enredo. Estamos diante de um núcleo humano em dissolução. Amanda (ReginaBraga), a célula-mater, tenta a todo custo sustentar as aparências se agarrando aos fiapos do cotidiano comezinho.
Laura (Luah Guimarãez), a filha envolta em “bolha” de timidez gestada pela perna ligeiramente maior que a outra, prefere se abster de tanta hipocrisia e cria seu mundo paralelo, habitado pelos bichinhos de vidro que coleciona desde criança. E um esforço inglório, pois a freudiana castração materna, aqui, é elevada à potência de morte, simbólica e gradativa.
Recai sobre Tom (Gabriel Nunes Braga), o varão dos Wingfield, a atitude dissonante. Não se trata de escape machista do autor. Ao contrário, o corte umbilical do filho é questão de sobrevivência. Romper com o determinismo do lar constitui etapa das mais dificeis para jovens inquietos diante das possibilidades da vida descortinada pelo tempo.
Tom foi submisso até o limite em que já não pertencia a si, mas à mãe e, por extensão, à irmã. Como o pai, que abandonou o barco no passado – mas é um personagem que flutua nas entrelinhas do texto com peso determinante -, ele também deixa o “bunker”.
“O homem é por instinto guerreiro, vai à guerra”, afirma Tom na vã ilusão de convencer Amanda do comichão poético que lhe invade e impede de ver o cor-de-rosa da realidade pintada pela mãe.
Tennessee Williams escreveu um drama que explicita o processo de crescimento pela via da dor. Em verdade, as opções de Laura e Tom são iguais. As escolhas, porque inerentes ao âmago de cada um, elas sim são diferentes.
Toda essa pungência de “À Margem da Vida” desponta com equilíbrio na montagem dirigida por Beth Lopes. Equilíbrio não propriamente de espírito, mas de estado. Há um domínio preciso da diretora na reorganização do espaço e da atuação que traduz a essência do dramaturgo norte-americano, sem verter tanta densidade para melodrama ou empolação – um risco eminente.
Lopes conta com uma equipe dos sonhos de qualquer diretor. Daniela Thomas fez a direção de arte, com cenário de Felipe Tassara, iluminaação de Wagner Pinto e música composta por Marcelo Pellegrini. Luz e trilha, em particular, harmonizam a delicadeza interior dos personagens com a tempestade por que passam – cuja melhor metáfora é a britadeira cortando o concreto…
Na base da interpretação, o elenco passou pelas mãos de Renata Meio (“Domésticas”). Ao que parece, a coreógrafa trabalhou mais no sentido de contenção do que propriamente expansão, como requer um Tennessee Williams, contrastando com a fisicalidade recorrente dos espetáculos anteriores de Beth Lopes.
Luah Guimarãez é quem despende maior esforço para levar sua Laura adiante. Há um tênue fio a separá-la da loucura, mas a consciência não lhe escapa por completo (“O que vamos fazer do resto de nossas vidas”, pergunta) – o que também tem lá o seu custo.
Regina Braga consegue extrair humor do histerismo da Amanda. Como recomenda o autor, a mãe não deve ser interpretada sob o signo fácil do exagero, do estereótipo. A atriz não só segue à risca, como amplia as possibilidades da personagem, conferindo-lhe uma estatura mais demasiadamente humana na insegurança e na insensatez.
A revelação fica por conta de Gabriel Nunes Braga, filho de Regina. Seu Tom transita entre ação e narração com naturalidade. É encantador acompanhar o personagem no desprendimento da família, na disposição em sair para a vida – ou “para o cinema”, como insiste no álibi de boêmio e poeta que é. Enfim, uma interpretação segura.
O ator André Boll surge sem comprometimento na segunda metade da peça no papel de Jim, Amigo de serviço de Tom, que a mãe tenta empurrar para Laura sem sucesso.
Com esse Teneessee Williams, Beth Lopes dá por encerrada, definitivamente, a fase “O Cobrador” com a qual ficou estigmatizada nos últimos anos, à frente da Cia. de Teatro em Quadrinhos – sem desmerecer aquela montagem marcante no início da década, mas o teatro, como a vida, é ciclo. “À Margem da Vida”, superproduzida esteticamente simples, coroa a maturidade e o talento de uma grande diretora parcimoniosa na arte de tocar o público.
À Margem da Vida – De Teneessee Williams. Tradução: Marta Góes. Figurino: Verônica Julian e Flávia Ribeiro. Programação visual: Gringo Cardia. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Teatro Faap (rua Alagoas, 903, Higienópolis, tel. 3662-1992). R$ 25 e R$ 30,00.
“Doce Lembrança” reinventa saudade
São Paulo – A delicadeza que Beth Lopes perscruta em “À Margem da Vida” surge em estado bruto em “Doce Lembrança”, a montagem que dirigiu com seus alunos de interpretação na EAD/USP. A peça permaneceu dois meses em cartaz, até final de agosto, e tem perspectiva de reestrear em breve.
Adaptação da obra fundamental de Ecléa Bosi – “Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos” -, o espetáculo expõe uma diretora que já se sabia aliada à exigência física dos atores, mas não se vislumbrava, até aqui, uma diluição mais vertical de tempo e espaço, liberando-os, ao menos de vez em quando, da ação em si.
De cunho experimental, o trabalho resultou extremamente rico em signos, a começar pela ocupação inventiva do porão do Centro Cultural São Paulo. O público era recebido com bolos e pãezinhos, acompanhados de chá e café, bem ao estilo dos nossos avós.
Conquistado pela boca – a gastronomia como poderosa aliada da memória -, sentamos na platéia semi-arena para acompanhar a aventura de seis personagens pelo túnel do tempo de suas vidas.
E tudo começa pelo extremo, lá na outra ponta, na infância. “Pirulito que bate bate/ Pirulito que já bateu…”, entoam. A memória, essa instância sublime que conjuga tristeza e alegria, é recomposta aos poucos, em insights mútuos.
Da mesma forma, e paralelamente, vai-se dando a reconstrução – ou “reinvenção” – dos móveis e adereços. Aos poucos, eles ganham forma em cena.
Um amálgama de corpos arqueados, cacarejos e cacoetes; mais panos, rendas, flores, fotos, cartas, documentos, sapatos, enfim, desenham um esforço tremendo diante do sentimento da saudade, tão peculiar à alma brasileira.
As principais passagens políticas do País, como o auge da Era Vargas, são pincelados aqui e ali. Num Brasil que não leva a sério os dois extremos da vida, o velho e a criança, o entrelaçamento do privado e do público é alentador.
Quando se fala em terceira idade, esse “palavrão”, remete-se logo aos eternos problemas da Previdência Social. “Doce Lembrança” não passa ao largo disso, mas valoriza mais o indivíduo -ou a amizade e sua celebração em grupo.
A via aqui é a da felicidade possível e, porém, esmaecida num passado não muito distante e pouco distinto dos nossos aucestrais. A cena final, em que cada personagem retorna ao caixote que lhe cabe nesta reta final da vida, é memorável.
Trata-se, sobretudo, do resultado de um elenco esforçado, disposto a empreender a gana da sua juventude, sem sobressaltos, em projeto tão comovente.
Doce Lembrança – Direção: Beth Lopes. Com Ana Gallotti, Eduardo de Paula, Fabiana Barbosa, Guadalupe Vivanco, Mara Leal e Vera Canolli. Cenografia: André Moia. Figurinos: Luciana Pareja. Iluminação: João Donda.
Eterno retorno de “Noturno”
São Paulo – Não é dificil explicar o “eterno retorno” de “Noturno”. O musical de Oswaldo Montenegro, de volta ao cartaz, tem ingredientes na medida para seu público alvo: jovens munidos de adrenalina para se aventurar por aí, atrás de utopias d’antes não conquistadas – algo como a dupla paz-amor ou o triô liberdade-igualdade-fraternidade.
Aquele espírito libertador e datado de “Hair”, nos anos 60, pouco legou à geração dos 90. Embaçados pelas perspectivas esotéricas – um tal ex-parceiro de Raul Seixas só corrobora o caldo retrô -, os “teens”, como querem, divagam na poesia do “chato” Oswaldo Montenegro.
“Chato” porque assim auto-denominou-se em uma das suas canções. Mas é assim, sincero em seu canto – como o sabem milhares de fãs bem crescidinhos – que Oswaldo Montenegro chega junto da moçada sem medo de pisar na bola.
O musical, em seis anos de estrada, um CD, junta um bando de 60 atores, jovens em sua maioria oriundos da Oficina dos Menestréis, curso ministrado por Deto Montenegro e Candé Brandão, sempre no temporão Teatro Dias Gomes, onde a montagem segue em cartaz nas segundas e terças, alternativas e de casa invariavelmente cheia.
A trilha vai de Prince a Peter Gabriel. Destaque para as belas vozes de Tânia Maya e Débora Reis.
“Noturno” utiliza todo o espaço do teatro (em uma perspectiva de 360 graus), conjugando coreografias em massa e jogos de sombra de luz. A platéia é literalmente envolvida pela ação dos atores, ora no palco, ora dependurados em cordas, ora ziguezagueando pelos corredores. Maiores detalhes sobre a empatia dos estudantes para com um espetáculo que prega a utopia como condição sine qua non, só conferindo. Poesia pouca é bobagem.
Noturno – Direção: Oswaldo Montenegro. Com Estela Cassilatti, Tânia Maya, Débora Reis, Gordo Marques, Marcelo Palma, Marco de Vita e outros. Segunda e terça, 21h. Teatro Dias Gomes (rua Domingos de Moraes, 348, metrô Ana Rosa, tel. 571-6177). R$ 15,00.
23.8.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 23 de agosto de 1998. Caderno A – 4
Discriminação de profissional é abordada com crueza e lirismo na montagem
VALMIR SANTOS
São Paulo – No imaginário sócio-cultural do brasileiro, as empregadas domésticas são frequentemente aviltadas em seus direitos. Quer na vida real, quer na ficção (vide Olímpia em “Trair e Coçar, ÉSó Começar” ou Edileusa em “Sai Debaixo”). Essas profissionais são exploradas e tachadas de “burra” num piscar de olhos. E não se trata apenas de ranço machista. Numa definição elementar, são mulheres humildes tratadas como escravas e relegadas à míngua.
Da ausência de registro na carteira profissional (uma luta sindical que ganhou visibilidade recentemente) até a relação sub-humano com patrões e patroas, a discriminação reflete a face mesquinha e hipócrita da sociedade – em especial, da sua classe média. É “sujeira” da grossa sob o tapete…
A relação de poder entre quem contrata e quem presta serviço reproduz a falta de respeito para com o próximo. Um salário injusto, um quartinho diminuto, uma sujeição de “pessoa menor” dentro da casa-senzala, enfim, os papéis hierárquicos como que justificam tal tratamento, desprezando-se direitos humanos universais – e infelizmente consagrados mais no papel do que na vida como ela é.
Esse pensamento vem à tona por conta do espetáculo de dança-teatro “Domésticas”, a nova montagem da atriz, bailarina, coreógrafa e diretora Renata Melo (“Bonita Lampião”, 94).
A partir de pesquisa com “jovens, idosas, mães, viúvas, solteiras, abandonadas, que amavam ou odiavam a profissão, seus patrões…”, Melo escreveu o texto e concebeu um espetáculo tocante e lírico em sua comicidade trágica.
O raio-X mostra quem são essas mulheres, seus desejos, sonhos e frustrações sem fim. A partir de três empregadas que ora se revezam e ora compartilham a cena, a peça mostra quadros independentes que, no entanto, complementam-se pela cumplicidade temática nos planos da injustiça, da afetividade, da alegria, da tristeza, do desalento, enfim, da divagação diante do exercício de viver.
A própria Renata Meio, mais as atrizes-dançarinas Lena Roque e Cláudia Missura, são intérpretes meticulosas na condução de suas personagens. O pressuposto rigor coreográfico harmoniza-se aqui com o espaço mais arejado do teatro. Porém, a imposição do verbo não descaracteriza, em momento algum, a fluência de gestos e movimentos. Mesmo no “timming” dos diálogos o espaço cênico é de alguma forma preenchido, corporalmente falando.
“Domésticas” fura o universo feminista e também coloca em cena a figura masculina. Os personagens de Eduardo Estrela (chofer, pai, etc.) não contrapõem, mas revelam que são discriminados tanto quanto. Seu chofer, por exemplo, enamorado de uma empregada, confessa que seu sonho é fazer um crediário.
Os pequenos anseios e as grandes decepções vão, aos poucos, compondo o fio do espetáculo. Para citar a frase obrigatória do início da peça: “Parece um trato que a gente faz: a gente limpa eles suja, a gente passa eles amassa, a gente arruma eles bagunça, a gente guarda eles joga, a gente põe eles tira, a gente tira eles põe. O serviço nunca acaba, o serviço acaba com a gente.”
Mais esta, que também consta do programa bem bolado, em forma de carteira profissional: “Quando a gente não pode fazer mais nada, então vai ser empregada. Come o que sobrou, se falta frita um ovo”. Tudo assim, a seco.
Elas, as empregadas, gostam de “música triste”, de fotonovelas, de novelas. Aliás, lêem faltando letras”. Esperam o “príncipe encantado”. Orgulham-se de mandar um dinheirinho para o pai e a mãe distantes. E gostam de preencher o pouco tempo de folga com digressões sobre o sol e a lua, satélites tão distantes quanto a realidade em que sobrevivem para o ganha-pão.
Adotando narrativa testemunhal em boa parte do espetáculo como num testemunho vivo para os espectadores, as empregadas fazem seus relatos sem interromper as tarefas cotidianas – acostumadas que estão a todo tipo de pressão. Assim, as vassouras de piaçava são incorporadas à movimentação. O mesmo ocorre com o balde e o pano de chão; com as flanelas; com o aspirador de pó; com os uniformezinhos indefectíveis.
A movimentação conjunta, ainda que às vezes propositada-mente desleixada, tem lá sua geometria. Outro destaque é o esforço intensivo para traduzir a mesma sonoridade produzida por gestos e objetos durante o trabalho de limpeza nos vários pontos de uma casa. Essa perspectiva sensorial confere mais vida à ação.
O cenário asséptico de Daniela Thomas e Marcelo Larrea, com suas paredes forradas por azulejos brancos, contrasta com a obsessão das empregadas em limpar e limpar o que não está sujo, num determinismo que, ao final das contas, limita suas próprias vidas à condição submissa em que se encontram.
Esse “folclorismo” é pincelado em “Domésticas”. Ainda quando tratadas “como cachorro”, custa a algumas mobilizar-se para reivindicar os direitos da profissão. A identidade não é só questão de “nome bonito”, mote do quadro de Raimunda e Antonio, ambos descontentes, sim, mas com respectivos prenomes, não com suas realidades.
Trata-se de um espetáculo de mão dupla: instiga o riso e cutuca a consciência dos espectadores, em sua maioria classe média. Os quatro intérpretes são envolventes. Renata Melo, em particular, é plena na introjeção da personagem, da voz à mão que amacia a roupa passada. Lena Roque, Claudia Missura e Eduardo Estrela também se entregam com a mesma energia, inclusive nos solos, garantindo o público nas mãos.
“Domésticas” acerta em não exceder na preocupação estética, procedimento comum em se tratando de dança-teatro (quando criadores querem fundir as linguagens com tanto virtuosismo que terminam por anulá-las). O equilíbrio aqui é de tal monta que não se distingue propriamente um e outro – teatro e dança conjugam-se a favor dos personagens e de suas histórias sem atropelo.
Nessa que é das melhores montagens em cartaz na Capital (fica até o final de agosto mas deve ser prorrogada), o entretenimento flui com a mesma intensidade da denúncia. Função mais do que louvável de uma arte verdadeira em tempos de tanta injustiça social.
Domésticas – Direção, coreografia e roteiro: Renata Melo. Com Cláudia Missura, Lena Roque e Renata Melo. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 12,00. Duração: 70 minutos. Até 30 de agosto (há previsão de prorrogar temporada).
“Aqueles 2” voa sobre o chão da vida
São Paulo – Compositor dos destinos na voz de Caetano, o tempo serve de moto-contínuo para a história de Pedro e Joana, os personagens de “Aqueles 2”. A peça escrita e dirigida por José Geraldo Petean oscila presente e passado na vã tentativa de vislumbrar o futuro a partir de uma perspectiva onírica.
Essa diluição de tempo e espaço pode confundir no papel, mas é bem elaborada em cena. Entre montes de areia que forram o tablado montado numa sala do restaurante Piolim, tradicional reduto da classe teatral na rua Augusta, Eloisa Elena Joana) e Marcelo Góes (Pedro) recriam o lúdico e o trágico com sutileza distinta da realidade.
O que está em jogo – eis uma palavra-chave para se compreender a aventura do texto – é a impossibilidade amorosa. “Aqueles 2”, na essência, não está longe de “Romeu e Julieta” ou “Tristão e Isolda”, para citar os clássicos.
Se nas tragédias a intervenção do mundo externo constitui empecilho concreto para a união de seres enamorados, aqui, no âmbito particular – ainda que não se situe o tempo e o espaço -, os entraves são antes frutos das vicissitudes humanas do que de natureza outra.
Joana e Pedro, os personagens, deslizam suas vidas por um árido terreno em que aparentemente têm segurança, mas logo sucumbem ao primeiro imprevisto da vida.
Toda a história, percebe-se depois, tem como eixo a imprudência. Em flashback, os dois desfrutam de uma noite de amor, bebem bastante e ele, já bastante debilitada, insiste em ir embora e dirigir pela estrada madrugada adentro.
O acidente quase lhe provoca a morte. Joana fica com um sério problema na perna e, pior, é obrigada a romper com seu objeto do desejo por conta da ameaça do pai, que enxerga nele, Pedro, a causa de toda a desgraça do ponto de vista familiar e francamente burguês.
De volta para o futuro – um movimento que ora insistem em levar adiante e ora insistem em levar adiante e ora recuam -, os dois vêem-se obrigados a lidar com o real. Não há mais incosciência de viver por viver.
Joana aprende a pôr os pés nos chão. É assim que Pedro a reencontra, anos depois. Ele, claro, tenta cavucar a poesia de suas vidas, num passado remoto. Mas não encontra guarida. A não ser nas lembranças, das quais ambos parecem nutrir-se o tempo todo.
O texto de Petean, bem como sua direção, não se esquivam de assumir esse alheamento de almas apaixonadas que, de qualquer ponto de vista que não o dos envolvidos, pouco interessa. Mas não é bem assim.
“Aqueles 2” exala o sabor do desprendimento, do poder da aventura, de um extinto de liberdade, de permissão, enfim, que dificilmente se depara em vida – ou depois dela, como se queira. O problema, demasiado humano, é que tanta leveza não sobrevive para contar suas glórias. Num átimo de segundo, a vida branda sua fiel balança para compensar, para guindar os filhos alados para o chão da estrada.
As atuações perseguem o mesmo conceito de alteridade. Eloisa Elena e Marcelo Góes estão integrados em cena. Seus personagens se movimentam com leveza.
Todos os seres que estão ao redor de Joana e Pedro não ficam suficientemente claros para o espectador. Esses “vultos” não importam para o enredo que celebra a possibilidade do indivíduo em sua plenitude e relega normas ditas familiares, sociais. Os laços, aqui, são de outra ordem: a do coração.
Num tempo em que as noções de romance perdem-se em pós-isso, pós-aquilo, a montagem impõe-se como resgate de uma entrega menos oblíqua.
Joana e Pedro não foram felizes para sempre. Mas a felicidade revela-se um meio, e não um fim, quando as partes envolvidas são mais honestas consigo. “Aqueles 2”, ele e ela, pelo menos tentaram.
Aqueles Dois – Texto e direção: José Geraldo Petean. Com Eloisa Elena e Marcelo Góes. Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Espaço Piolim (rua Augusta, 902, Cerqueira César, tel. 256-9356 e 244-4587). R$ 15,00 (estacionamento gratuito e 50% de desconto no jantar do Restaurante Piolim, mediante apresentação do canhoto do ingresso). Duração: 70 minutos.
9.8.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 09 de agosto de 1998. Caderno A – 4
Evento chega ao fim amanhã com missão cumprida de injetar novo “olhar” e “sentir”
São Paulo – Há algo de insondável num tema como “a presença do sagrado nas artes”, vertido pelo 7º Festival Internacional de Artes Cênicas, o Fiac, que chega amanhã ao seu derradeiro dia. O painel apresentado pelas atrações da Ásia tem tudo para consolidar de vez, e com relativo atraso, a “ponte” entre o oriente e o ocidente a partir de uma perspectiva brasileira.
Se depender da reação do público que lotou todas as apresentações; provocou algumas sessões extras, aplaudiu durante longos minutos; e subiu ao palco extasiado para “apaupar” a energia emanada dos artistas – caso dos simpáticos sul-coreanos do grupo Samulnori Hanulrim -, enfim, se depender do espectador, a assimilação já é uma realidade.
Até pouco tempo atrás, era comum atribuir às diferenças culturais, sobretudo à língua, a incompreensão e distanciamento diante de espetáculos “do outro lado do mundo”. Aos poucos, porém, as barreiras foram caindo e se revelaram menos técnica do que perceptiva.
Os poros da percepção, como quer William Barroughs, dilataram-se nos últimos anos. Gradativamente, o público tupiniquim tomou contato com a arte de dizer muito com o mínimo, quer verbal ou corporalmente falando.
Desde o primeiro Fiac, em 1981, com a presença do americano Robert Wilson, influenciado pelo teatro oriental e contaminando a carreira de ninguém menos do que Antunes Filho – o festival já acenava com sua veia instrospectiva.
Mais recentemente, na retomada do evento, a partir de 1994, a idealizadora Ruth Escobar passou a mirar com mais carinho para as manifestações artísticas que remontam há milênios. É claro que em 1986, oito anos antes, já estava entre nós o mestre japonês Kazuo Ohno e sua personagem La Argentina. Sem contar o pioneirismo de Takao Kusuno, hoje com sua Cia. Olho do Tamanduá, na busca de um butô de cores brasileiras.
De volta ao Fiac, tivemos os Derviches Rodopiantes da Turquia, a dançarina indiana Chandralekha e a companhia chinesa do diretor Zhang Yuan. Até desaguar, agora, numa edição totalmente dedicada ao teatro, à dança e à música praticada no continente asiático.
A abertura, conforme acompanhou O Diário, foi marcada pela memorável “Ópera de Pequim” encenada pela companhia da cidade chinesa de Dalian. Na última apresentação, os atores Zhang Dajun, encabeçando o número “O Rei dos Macacos”, e Li Ping, com “A Princesa Cem-Flores” demonstraram todo o virtuosismo que registraram em seus corpos e vozes ao longo de muitos anos de treinamento.
Os monges do Monastério de Shetchen, no Tibete, apresentaram suas “Danças Sagradas”, de forte conteúdo religioso. Naquele país incrustado em solo chinês, inclusive perseguido politicamente, os festivais de dança remontam à introdução do budismo, no século 18. O monastério de Shetchen foi fundado em 1735. O espetáculo-ritual é uma experiência indescritível, em que silêncio, sons e cores inventam um novo espaço-tempo diante dos olhos de quem contemnpla.
Quando o mestre sul-coreano Kim Duk Soo afirmou que a percussão do seu grupo tinha a ver com o candomblé destas plagas, a desconfiança não fez de rogada. Mas, na noite de estréia, o que se deixou embalar pelos tambores do grupo Samulnori Hanulrim. Sem contar a magia do canto p’ansori, com a primeira-atriz da Coréia do Sul, Mi Jung Chung, no que pode ser considerada uma versão operística arraigada na tradição daquele país.
A japonesa Carlotta Ikeda, que voltou ao Brasil pela segunda vez também transportou o público para outra dimensão no seu belo solo “Waiting”. Como vem fazendo nos últimos anos, a dançarina investe na (re)descoberta constante de novos caminhos para o butô – ela que foi discípula de Hijikata, um dos pais da “dança das trevas”, ao lado de Ohno. Mas o que Ikeda celebra no palco, na tenra relação do seu corpo com o espaço, na sua sensualidade à flor da pele, enfim, sua arte de gestos e movimentos é demasiadamente entranhada no espírito de presença da intérprete.
São algumas das atrações conferidas por este crítico, entre as muitas que passaram pelos palcos paulistanos nos últimos dias. Teve ainda o Chorus Repertory Theatre of Imphal (Índia), Trupe Nacional da Tailândia, Grupo de Percussão do Templo de Kerala (Índia), U-Theatre (Taiwan), Conjunto Panti Pusaka Budaya (Bali), Músicos e Poetas Manghaniyars e Langas do Rajastão (Índia), Monâjât Yultchieva (Uzbequistão) e, por fim, um workshop com a norte-americana Nina Wise, em sua segunda incursão pelos palcos do Fiac.
Entre as benesses do “pacote” asiático, está a convicção de que a velocidade dos tempos, em que “globalizar” é sinônimo de chegar em primeiro, a qualquer custo, conforme rege o mercado, felizmente não contaminou a todos. Há espaço para um olhar diferenciado, uma oxigenação da massa cinzenta ora poluída pelo excesso de informações – inúteis em sua maioria.
O 7º Fiac foi como uma aula para o “olhar”, o “sentir” e o “estar presente” no espectador brasileiro, que também padece do mal ocidental feito envelopinhos de bala…
É torcer para que o teatro brasileiro, em particular o paulista, abrace o sopro zen desta edição do festival, a propósito de um final de milênio virado de ponta-cabeça – e assustador.
Danças Tradicionais de Manipur – Com o grupo indiano Chorus Repertory Theatre of Imphal. Hoje, 20, e amanhã, 21h. Sesc Vila Mariana (rua Pelotas, 141, tel. 5080-3000). R$ 20,00 e R$ 10,00. Conjunto de Percussão do Templo de Kerala – Com trupe indiana. Hoje, 18h. Sesc Pompéia (rua Clélia, 93, Lapa, tel. 3871-7777). R$ 20 e R$ 10. Amanhã, 21h, dobradinha com as baianas da Didá Banda Feminina. Parque da Independência (Praça do Monumento, s/n, Ipiranga). Grátis. Retirar convites com antecedência do Sesc Ipiranga (rua Bom Pastor, 822, tel. 3340-2000). O Som do Oceano – Com grupo U-Theatre, de Taiwan. Hoje, 20h. Parque da Independência.
“Olhar para dentro dói muito”, diz Ruth
São Paulo – A seguir, o depoimento da atriz, produtora e idealizadora do Festival Internacional de Artes Cênicas, Ruth Escobar. Ela garante que esta é sua última edição à frente do evento. Quer delegá-lo à iniciativa privada ou pública. O tema da presença do sagrado nas artes é sintomático do momento pessoal de Escobar, conforme relata:
Ruth Escobar – “Estou muito emocionada com o sucesso de público do 7º Fiac. Era o sonho da minha vida, não esperava.”
Ruth – “O tempo não existe. A gente pensa que ele existe, mas não existe. Então eu fiquei tão influenciada que quis trazer essa coisa para o Brasil, para que meus colegas vissem.”
Ruth – “As pessoas dizem que aqui no Brasil o teatro é antes e depois de Victor García, com suas montagens ‘Cemitério de Automóveis’, ‘O Balcão’, encenadas no meu teatro. E hoje eu percebo… Tenho um vídeo do ‘Balcão’ de meia hora, e percebo toda a influência não só no simbólico das roupas, mas nas músicas. Há música do Paquistão. Na época eu vi que era uma música estranha, que te remetia a um estágio sagrado, transcendente – e a música no ‘Balcão’ tinha enorme importância.”
Ruth – “Ariane Mnouchkine é quem mais foi influenciada pelas tradições. Espetáculos dela que vi há 12, 15 anos, já trazia isso. E o Peter Brook que trouxe as técnicas da escola do pensador místico Gurdjieff, do filme ‘Encontro com Homens Notáveis’. Brook propõe uma forma de ser e estar no mundo que faz os seus atores entrarem nesse espaço de tempo e nessa coisa da presença, com uma simplicidade absoluta, sem grandes mágicas… E você fica fascinado com a presença dos atores em cena. E isso é coisa dos orientais.”
Ruth – “Quando trouxe os Dervixes Rodopiantes da Turquia pela primeira vez, em 1996, pensei: ‘Vou trazendo aos pouquinhos’. Eu vi as pessoas pirarem. Depois trouxe a Carlotta Ikeda, que agora voltou, e foi enorme sucesso. Daí eu trouxe a Chandralekha e um espetáculo da China, moderno, belíssimo…”
Ruth – “O Brasil passa por uma transição que remete a uma certa religiosidade que é perigosa, que vai da auto-ajuda às igrejas evangélicas. Mas você percebe hoje, em vários lugares, a quantidade de budistas, de pessoas que trabalham com meditação com respiração, com entendimento do desapego, da rigidez do ego. Quanto mais você se apega, pior você fica”
Ruth – “Estou doente há uma semana, num estresse, não consigo dormir de noite porque fico no ‘bombeiro’… Faço contatos com Ministério do Trabalho, Itamaraty, mas é uma coisa muito difícil para outra pessoa fazer um festival do tamanho e da proporção que eu faço.”
Ruth – “Quero escrever um livro sobre minha jornada, do que estou vivendo nesses 10 anos, do que estou revendo em mim, como estou tentando me trabalhar. Do sofrimento que é você se ver e se reconhecer. Esse olhar para dentro é uma coisa que dói muito. Para mim, especialmente. Quando olho para a trajetória da minha vida, vejo que a vaidade estava por trás, a soberba, a quase vingança da minha história com meu pai, aquela coisa toda com os militares – havia o lado da guerreira, mas havia o lado que era uma forma de dizer ‘papai vai à p.q.p.’… Porque os militares para mim representavam meu pai. Tudo isso eu não tinha consciência. Hoje, com esse trabalho profundo que faço, há 9 anos, é como se estivesse descascando uma cebola e entendesse, bem lentamente, como é que eu criei este personagem… Bem lá no fundo, ele cobre uma criança que se sente deficiente, desvalorizada, que não teve o que precisava ter enquanto amor… Enfim,
essa é a história da humanidade, a história de todo mundo.”
26.7.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 26 de julho de 1998. Caderno A – 4
Mário Bortolotto enfoca solidão na peça encenada pelo Cemitério de Automóveis
VALMIR SANTOS
São Paulo – Existe uma marca Cemitério de Automóveis, o grupo fundado em Londrina há 16 anos, desde 96 ancorado em São Paulo. Existe sobretudo a marca do ator, diretor e dramaturgo Mário Bortolotto. Arrisque-se uma definição, uma palavra para traduzir a trajetória de ambos: a insolência. |
Ela está lá, no “Aurélio”: “5. Que por seu caráter incomum, é como uma provocação, um desafio à condição humana”. Está lá também na mais recente montagem, “Postcards de Atacama”, com seus personagens limítrofes; seres soltos no deserto da vida que se vive.
Bortolotto enquadra a solidão nesta que é a segunda peça, escrita este ano, da trilogia que começou com “Medusa de Ray Ban” (96), jogando luz sobre a violência, e vai fechar em breve, em texto ainda sem título, colocando a morte em xeque.
E uma solidão crua, sem tintas. Às vezes o que se insinua como uma estilização das linguagens dos quadrinhos, do cinema noir ou mesmo da despretensão rock’n’roll, logo é dissimulada no silêncio, no movimento centrífugo dos personagens e suas inquietações interiores.
Jasão (Bortolotto) é um detetive metido a besta. Cansada das traições, sua mulher, Nico (Gabriela Schwab) o abandona. Em seguida, ele é contratado por Mae (Fernanda D’Umbra), uma mulher misteriosa que deseja encontrar seu marido, Toddy (Everton Bortotti), desaparecido do mapa – a única pista são os postais enviados do deserto do Atacama, no Chile.
O encontro de Jasão e Toddy catalisa boa parte da peça. Aliás, ela abre com o diálogo desconexo de ambos, recheado de silêncios a la Beckett. E a tríade cerveja-arroto-poesia compõe o fluxo vital de um Toddy suicida em potencial.
“Postcards de Atacama” fala da saudade, da distância que separa as pessoas longe de um lugar que não existe (Richard Bach).
Fala da impossibilidade de ceder e definir um território mútuo. Na sua distensão afetiva, avesso ao apego, Jasão é tão solitário quanto Toddy, desconcertante na falta de aceno para a vida.
Em transe
As mulheres de ambos não ficam atrás. Mae e Nico compartilham, retro-alimentam as neuroses. Parecem sonâmbulas diante da realidade. Estão, igualmente, em transe. Nico, por exemplo, curte andar na chuva, andar de carro com o cara que ela gosta. Mae prefere pregar os postais “dele” na parede, onde o olhar não os alcança.
E não é apenas o quarteto em si quem conduz a peça. Bortolotto criou subtextos que constituem verdadeiros torpedos contra a moral e os bons costumes que a tudo e a todos cegam.
Há o incrível quadro do comercial de aparelho de ginástica, cuja presença da gordinha atriz Carla Meneguella rouba a cena. Há a fixação do rapaz pela masturbação. Há o sujeito que vai vender a alma ao diabo e nem este a aceita. Há o fã que morre de amores por Brad Pit e briga com duas indefesas garotas por ele, o galã hollywoodiano.
São os tiros perpetrados por Bortolotto em “Postcards de Atacama”. Em mais um painel estilhaçado pelo instinto passional, capaz de amar e odiar, sua atuação não se distingue das anteriores. O ator Bortolotto foge de qualquer traço de psicologismo. Os personagens que vive em cena, depois de criá-los no papel, constituem o próprio no limite.
Bortotti compõe um Toddy entorpecido. O intérprete deixa muito claro o tênue fio que separa a loucura da razão. Suas indagações são pertinentes àqueles que não passam pela vida à toa, sem que a tenha nas mãos, por inteiro, ou deixe escorregá-la feito água.
Fernanda D’Umbra também faz da sua Mae um ser em suspenso. Seu oinar enxerga o infinito, mas não sabe como chegar lá. E uma atuação digna de poeta pertubada. Gabriela Schwab, como Nico, é a outra mulher etérea, dona de si e submissa a quem ama. A atriz espelha essa impulsividade em movimentos corporais bruscos, acrescentando elementos à cena.
Aos coadjuvantes Joeli Pimentel, Carla Meneguella, Aline Abowski e Pedro Fiori, compete a veia cômica. E dá-lhe esquetes estriônicos, algo escatológicos, que funcionam muito bem como válvula – e complemento – do drama.
A direção de Bortolotto é a mais solta possível. Dentro desse “à vontade”, porém, ergue-se a empatia do Cemitério de Automóveis com o público. São atores despojados, intensos, dispostos a dar o melhor de si para ganhar o personagem, primeiro, e depois o espectador, como conseqüência.
O blues está na trilha e no coracão do diretor e ator, cutu cando tristeza e alegria esmaecidas nos quatro cantos do quarto e do mundo.
Postcards de Atacama – Texto e direção: Mário Bortolotto. Com Cemitérios de Automóveis (Aline Abowsky, Everton Bortotti, joel Pimentel, Pedro Fiori e outros). Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo (rua Vergueiro, 1000, tel. 277-3611). R$ 12,00. Duração: 60 minutos.
Bortolotto diverte-se com coisas sérias
São Paulo – Divertir-se falando de coisas sérias – eis o axioma que melhor define a dramaturgia do paranaense Mário Bortolotto, 35 anos. Segundo ele, sua obra, composta por 25 textos até aqui, se afina mais com a de Plínio Marcos (“Navalha na Carne”, “Dois Perdidos Numa Noite Suja”).
Mas o “maldito” Bortolotto não liga muito para a pecha. Não lhe ocorre, por exemplo, perambular pelas portas de teatro com seus livros debaixo do braço, oferecendo para os espectadores. “Há momentos em que eu gostaria de jogar tudo para o alto e ficar em casa jogando videogame”, confessa. E o tipo de artista que prefere o boteco da esquina a paparicadas estréias de teatro.
Para o dramaturgo, uma história sempre começa com “o umbigo da gente”. Ou seja, tudo o que se vê em cena tem relação direta ou indiretamente com sua vida.
Boa parte dos textos – senão todos – foi montada pelo Cemitério de Automóveis. Junto com “Postcards de Atacama”, recém-estreada, o auto lança o segundo volume de “Seis Peças de Mário Bortolotto” – que inclui aquela, mais “Nossa Vida Não Vale um Chevrolet”, “Uma Fábula Podre”, “Curta-Passagem – Quatro Pocket Peças”, “À Queima-Roupa” e “A Lua é Minha” – esta inédita, que também deve ser montada até o final do ano.
A crítica ainda não deu a devida atenção ao dramaturgo. Sua obra retrata com precisão o tanto de angústia que aflige a geração que está na casa dos 30. Sexo, droga, rock’n’roll, política, universidade, solidão, insegurança, enfim, suas peças vão direto ao assunto, sem concessão e com saco cheio da retórica herdada.
O Bortolotto diretor não desenvolveu propriamente uma técnica. Tem afinidade com marcação de cena, mas suas montagens são pobres em recursos cenográficos ou visuais. Pobres no sentido em que seu trabalho comporta. Daí a ênfase no trabalho de ator.
Neste quesito, o ator Bortolotto é dono de um forte carisma em cena. Há um deboche, um “estar nem aí”, um lampejo de explosão facial, um gesto brusco, enfim, a tensão é regra em suas interpretações, como se viu em “Santidade”, dirigido por Fauzi Arap.
Há também o Bortolotto vocalista de banda. Canta levadas de blues e rock na Garagem Hermética, de Londrina (PR), sua cidade natal. O primeiro CD da banda sai em breve. Ah, sim, há também o poeta Bortolotto…
5.7.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 05 de julho de 1998. Caderno A – 4
Comédia musical se passa num bar; deixa público à vontade e resulta em experiência rara
E não o seria, com certeza, sem a participação de um elenco não menos afinado com a comédia musical de José Antônio de Souza. Cada um em sua medida, quer atuando, cantando ou tocando algum instrumento – ou ainda fazendo as duas coisas -, Rafael Leite, Rogério Bandeira, Luiz Montes e Dagoberto Feliz transformam a montagem em experiência única.
O clima de taberna se instala completamente no bar localizado no saguão do Teatro Ruth Escobar. Ao contrário, das filas convencionais, aqui a platéia permanece distribuída em mesas, descendo bebida goela abaixo ou fumando à vontade. O horário das sessões – sempre à meia-noite – colabora ainda mais para o cordão intimista. (Não se cobra ingresso, mas pede-se uma colaboração do espectador, ao final, conforme seu entusiasmo e bolso).
“Cantos Peregrinos” rompe a dicotomia bem/mal para trazer à tona o céu e o inferno que habita o coração de cada um. Há uma humanização sensível de Deus (Feliz) e de Lúcifer (Bandeira), por surpreendente que seja, expondo esses entes como meros mortais, sujeitos às vicissitudes de toda sorte.
Lilith é quem mede as forças e, no fundo, faz valer as suas próprias no embate entre Deus e Lúcifer, ambos prostados diante da musa comum.
O “trio de velhos flutuantes” espelha o triângulo que os seres humanos carregam como cruz, graças à moral religiosa. O que o autor faz é uma ode à liberdade bruta e possível, sim, mas há anos luz do que se concebe o viver.
Não é à toa que o teatro, a música, a poesia, a arte em si, representam searas em que o conteúdo humano resplandece na sua essência mais palpável. A noitada de “Cantos Peregrinos” atinge esse estado de imanência, de bem-estar entre os seus, de comunhão de vida no riso solto e no canto suave.
Põe-se um pé na realidade, com seu Muro de Berlim, sua pseudo-nova ordem mundial, o velho truque da porta do aeroporto como única saída diante do avanço da esquerda, enfim, mas trata-se de um pé na realidade que não está dissociado da alegria de viver (a conjugação insistente do verbo reflete a natureza do espetáculo) – fim último a que deveria ser condenado todo ser vivo.
Em sua festa dionisíaca, a comédia musical tem o mérito de não enveredar tanto pelo plano do insondável. Ao contrário, tudo se passa às claras; as palavras recebem todos os pingos nos “is”; tudo flui sem a mácula da possessão, do tangenciamento do público.
A alcova abriga Deus, Lilith e Lúcifer com harmonia celestial. Nem o “divino impostor”, nem “sua face feminina” e nem o “soberbo, orgulhoso e vaidoso” decepcionam na banda que os unem. Instigam ouvidos e olhos do espectador, envolto em uma sensualidade à flor da pele que – pasmem! – em nenhum momento abusa de mostrar a bunda, por exemplo, como se vê agora até nos programas infantis.
O furacão Lilith devassa o território de Adão e Eva, dança com a serpente, desdenha da queda do homem, brinca com fogo, cisca com Lúcifer, incita os desejos secretos de Deus e provoca um fuzuê nas certezas religiosas que continuam privando o homem de ser mais honesto com seu quinhão de maldade e bondade – um existe necessariamente em função do outro.
Renata domina a cena ao bel-prazer. Dança, canta, corre pra lá e pra cá, mas sua Lilith nunca perde o fôlego. A atriz possui o carisma de um diva de cabaré.
Dagoberto Feliz é também um grande ator. Seu Deus tem o timming certo, transita com facilidade entre o teclado, o personagem-mor e o malandro subentendido. Investe do gogó à comicidade inerente.
Rogério Bandeira é outro que não perde a deixa para o escracho com seu Lúcifer. Cabe a ele a exploração do espaço, exigindo bastante expressão corporal – o que não lhe falta. É a melhor prova de que o mal está em todo canto…
Responsáveis pela percussão e violão, Luiz Montes e Rafael Leite também não se contentam como meros coadjuvantes. Leite chega ao cúmulo de fazer uma “ponta” como Anjo Gabriel, “primeiro dedo-duro da história”. A interação deles com os demais é dinâmica e faz jus ao gênio musical.
O diretor Marco Antonio Rodrigues, que faturou o prêmio Mambembe 97 com o espetáculo, extrai uma latinidade pulsante que costuma passar ao largo da cultura brasileira. Certamente, há um tanto de indicação disso no texto de Souza, na bela trilha musical executada praticamente ao vivo. Mas a identidade do continente se expressa sobretudo no conjunto.
Quem sabe, residam aí – na veia latina e ao mesmo tempo tão nossa – o envolvimento e a paixão que “Cantos Peregrinos” desperta.
Cantos Peregrinos – De José Antônio de Souza. Direção: Marco Antônio Rodrigues. Sexta e sábado, à meia-noite. Teatro Ruth Escobar (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 289-2358). Entrada franca (pede-se uma contribuição ao final da apresentação). São servidos bebidas e aperitivos durante o espetáculo. Duração prevista é de 60 minutos. A peça ficará em cartaz até o próximo dia 1º de agosto.
Fraternal Cia. de Artes estaciona com “Iepe” correto
São Paulo – Já no programa do espetáculo, o autor Luís Alberto de Abreu e o diretor Ednaldo Freire assumem a mudança de rumo da Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes.
Depois da tetralogia (“O Parturião”, “O Anel de Magalão”, “Sacrafolia” e “Burundanga”) que imprimiu a marca da genuína comédia popular brasileira, a pesquisa agora estabelece uma ponte entre a cultura escandinava e a tupiniquim, com direito a uma pitada de Rabelais, influência declarada do dramaturgo.
Explica-se: a nova montagem da trupe, “Iepe”, é uma adaptação do clássico “Jeppe”, do dinamarquês Ludwig Holbert (1684-1754). O que Abreu propõe é uma espécie de globalização da veia popular.
A estrutura do texto é rica em informações universais, mas a sua concepção fica aquém do esperado.
Um dos melhores dramaturgos do País na atualidade, Abreu vem mostrando no Projeto Comédia Popular Brasileira, da Companhia Fraternal, uma habilidade peculiar em lidar com o genero.
Ele que, aliás, demonstra igual segurança com o drama, como se viu em “A Guerra Santa” e “O Livro de Jó”.
Mas o problema de “Iepe” é antes, como se disse, sua concepção. Para quem já ganhou platéias em ebulição – geralmente público que vai pela primeira vez ao teatro -, com seus tipos de forte apelo popular, como o quarteto Matias Cão, João Teité, Mateúsa e Marruá, “Iepe” representa um recuo no repertório e estanca a evolução que a companhia experimentava a cada encenação.
Trata-se da história do beberrão Iepe, maltratado pela mulher Neli e coroado rei da noite para o dia, na melhor tradução do sábio chinês que sonhou que era uma borboleta e, depois, não sabia se era ele mesmo uma borboleta sonhando que era um sábio chinês.
Os dois personagens surgem em duplo: dois atores (Gilmar Guido e Ali Saleh) interpretam o balofo Iepe, enquanto duas atrizes (Izilda Rodrigues e Mirtes Nogueira) se encarregam da buchuda Neli.
Mesmo com essa duplicidade, a dinâmica do jogo cênico, ao longo de cerca de 100 minutos, não chega aos pés da ligeireza que um Matias Cão (já interpretado pelo próprio Saleh), por exemplo, cometeu nas encenações anteriores.
A direção de Ednaldo Freire, até então projetada de dentro para fora, com o elenco em movimento de expansão, surge agora como que racionalizada, O elenco é basicamente o mesmo da tetralogia e, portanto, tem potencial suficiente para ir de encontro ao público com mais tarimba, desenvoltura; sem se deixar intimidar pelo aura amadora que ainda persiste, aqui e ali.
Em “Iepe”, tudo está tão armado em função do tempo e doespaço cênico que o brilho individual é ofuscado na interpretação. Em troca do desabuso, a contensão.
Saleh ainda se esforça, como na cena em que tenta “andar” com a barriga, com a cabeça, com o bumbum, enfim, com tudo, menos com as pernas.
Estão lá também um tanto de cacoetes, gírias e até uma dose considerada de escatologia, Porém, falta o magnetismo que a Fraternal não poupou sequer em seu dublê de auto de natal, “Sacra Folia”, um desbunde.
Os figurinos e adereços de Luis Augusto dos Santos e Fábio Lusvarghi capturam as cores da região escandinava e encontram uma fusão interessante com a perspectiva camponesa do brasileiro.
“Iepe” é, numa só palavra, um espetáculo correto, capaz de “segurar” sua platéia de estudantes – público alvo. Mas é uma merenda arroz-com-feijão. Sinceramente, o currículo da Companhia Fraternal a credencia para muito mais.
Iepe – De Ludwig Holberg. Adaptação: Luís Alberto de Abreu. Direção: Ednaldo Freire. Com Companhia Fraternal de Artes e Malas-Artes (Nilton Rosa, Edgar Campos, José Bezerra, Nelson Belintani, Fábio Visconde, Keila Redondo e outros). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Teatro Ruth Escobar (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 289-2358). 100 minutos. R$ 10,00 (entrada franca para terceira idade). O espetáculo poderá ser visto até o dia 2 de agosto.